Com uma introdução de Daniel Pires, foi publicado o 1º volume (Sonetos) da Obra Completa de Bocage (Ed. Caixotim, 2004). Nascido nessa espraiada cidade de Setúbal, bordejada pelo belo rio Sado a abraçar o vasto Atlântico, Bocage foi o poeta da palavra eloquente, em ebulição contínua, em sofrimento e sempre a desvanecê-lo, como se nada pesasse.
Salientando o facto de, ao longo de 200 anos, apenas terem sido feitas três edições da sua obra completa (a primeira de Inocêncio Francisco da Silva, a segunda de Teófilo Braga e a última de Hernâni Cidade), Daniel Pires traça o percurso da edição dos seus sonetos, durante a vida e póstumos, não esquecendo a acentuada vertente versificatória de Bocage, em contraste com a sua escassa produção prosaica. Afirmava António Feliciano de Castilho, num excesso decorrente da grande admiração que nutria pelo poeta sadino, que «o soneto português nasceu com Bocage e com Bocage morreu» (Introdução, pág. X).
Livre pensador, incapaz de se deixar vergar pelas modas ou pela oportunismo de alcançar benefícios económicos, preferindo a liberdade de expressão do pensamento às honrarias dos literatos que cultivavam a fama e a glória do momento imediato, Bocage não se deixou intimidar pelos lápis censórios que se erguiam sem peias, mesmo perante a qualidade dos seus escritos poéticos.
Sendo a poesia um género menos vulnerável do que a prosa aos golpes da censura, mesmo assim, Bocage não escapou às grades do cárcere dos já tradicionais e proliferantes “Pina Maniques” de meados do século XVIII: entre o tribunal da Inquisição e a Real Mesa Censória, Bocage ia mesmo assim, publicando: o 1º tomo das Rimas, publicado quando o Poeta tinha vinte e seis anos (reeditado em 1794 e em 1800), o 2º tomo, em 1799 e o 3º em 1804, um ano antes de falecer. Este último será dedicado à Marquesa de Alorna, um dos poucos alicerces das Letras que não o vilipendiava, antes o protegia. O 2º volume, intitulado Improvisos, virá a lume em Agosto de 1805. Com o Poeta às portas da morte, a Gazeta de Lisboa, jornal oficioso, refere a publicação do 2º volume dos Improvisos de Bocage. Talvez um acto de contrição pela ignorância a que o votava, e, pior ainda, o desprezo com que encarava a sua poesia. A Virtude Laureada será a sua última publicação, ainda no ano de 1805 (o ano da sua morte). Trata-se de uma obra que é formada por um drama e seis sonetos de Bocage; junta também uma breve antologia de poemas de homenagem da autoria de Pato Moniz, Francisco José Freire, entre outros.
Na Introdução, Daniel Pires refere, designadamente, o facto de ter havido «diversas tentativas de atribuir ao escritor um grande número de poemas que não eram da sua lavra» (pág. XXIX). Por outro lado, acentua que muitos sonetos foram publicados após a sua morte e, logicamente, a sua poesia mais transgressora só veio a lume muito mais tarde. É o caso do título Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas, publicadas por Inocêncio Francisco da Silva em 1854, ou seja, cinquenta anos depois da sua morte. Daí a dificuldade de «fixar o corpus dos sonetos de Bocage» (pág. XXVII). Para o conseguir, recorreu a publicações póstumas (um quarto dos poemas foram editados após a morte) que tornaram mais fácil a sua identificação, por confronto.
«Sendo a transcrição (dos poemas) feita a partir de manuscritos autógrafos oferecidos pelo poeta aos amigos, de cópias credíveis (…), alguns de cópias duvidosas e outros beneficiando, exclusivamente, da memória de pessoas que estavam presentes no momento em que Bocage (…) incendiava tudo e todos» (pág. XXXI), o problema da selecção e da autenticidade não tornaram fácil a tarefa do autor desta Introdução aos «Sonetos». Pormenores sobre as diferenças de ortografia, de pontuação, de métrica, e relativos aos títulos dos sonetos foram também considerados de relevo. Assim, surgiu, neste volume exclusivamente dedicado aos sonetos, uma divisão metodológica de acordo com as temáticas que versavam: autobiográficos, amorosos, políticos, filosóficos, satíricos, religiosos, etc.
Nesta breve recensão, destacamos, como exemplo para o leitor que está mais afastado da poesia de Bocage, o primeiro soneto, um soneto de natureza autobiográfica. Incisivo e um pouco mordaz, como quase sempre, neste caso para consigo próprio, transcrevemos a primeira quadra: «Magro, de olhos azuis, carão moreno, / Bem servido de pés, meão n’altura / Triste de facha, o mesmo de figura, / Nariz alto no meio e não pequeno;». Depois, na segunda quadra, delineia os seus sentimentos, as suas ambiguidades psicológicas, o seu carácter tempestuoso: «Incapaz de assistir num só terreno, / Mais propenso ao furor do que à ternura, / Bebendo em níveas mãos por taça escura / De zelos infernais letal veneno;». Inconformado e sensual, diz no primeiro terceto do mesmo poema: «Devoto incensador de mil deidades / (Digo de moças mil) num só momento / E somente no altar amando os frades» (pág. 3).
Destacando treze temas inspiradores de Bocage, neste volume dedicado aos sonetos, Daniel Pires chama a atenção para a riqueza da temática Bocageana, apesar de só um deles ser bem conhecido e afamado: o tema satírico. De facto, este tema talvez seja o único que imortalizou o Poeta, precisamente pela simpatia que a psicologia dos Portugueses lhe consagra.
Ainda nos nossos dias, a vida político-cultural a que assistimos através dos artigos dos comentadores dos actuais meios de comunicação social, em especial os jornais, se rege pela mordacidade, o sarcasmo, a má fé em relação a tudo aquilo que se afirma ou se podia ter afirmado e não afirmou. Todo e qualquer pormenor de uma entrevista, de um discurso ou de uma conferência de um político é considerado uma falha, um oportunismo, uma má intenção, uma falsidade.
Por isso, Bocage só deveria continuar a ser famoso pela sua vertente satírica. Que interessarão as outras, se não se riem de alguém, se não estigmatizam, se não são maledicentes?! Este Bocage deve ser considerado o mais interessante entre os nossos conceituados escritores e comentadores de política nacional. E, como poderia ser de outro modo, se até a retirada de alguns Cristos, esquecidos em uma ou em outra parede de uma perdida escola primária de aldeia ou cidade do interior, foi logo motivo de diatribe, de chacota, de azedo e sarcástico conflito entre os defensores do Cristo e os opositores ao Cristo? Precisamente Cristo, essa magnífica imagem de Fraternidade humana e de Humildade, essa espantosa imagem de grandeza humana ante o sofrimento, Ele, o Cristo, vítima da injustiça de um poder de Estado (Romano) «laico», que já fez gastar muita tinta aos operários da opinião nacional.
Esta publicação de mais doze temas, além da sátira, versados por Bocage nos sonetos mostra bem que nem só esta temática inspiradora tinha significado na poética do autor de alguns dos mais belos sonetos escritos em Portugal. Ao menos, lembremo-nos disso!
Teresa Ferrer Passos
|