A solidão envolvia o espírito do Mar como uma serpente de asfixiante
ondulação. Quase não podia respirar. Umas vezes, ficava ofegante, num
cansaço inexplicável, cheio de sofrimento. Outras, a sua respiração era tão
ténue que ele mesmo duvidava da sua existência. Quando as noites eram
chuvosas e os relâmpagos iluminavam as sombrias grutas do seu interior, as
nuvens espessas viam brotar lágrimas do seu olhar extasiado, a reflectir
aquele espírito esgotado de uma vaga saudade impenitente. Era o choro da
desdita, mascarando-se de chuva agreste, penetrando as suas profundezas.
Ondulando com violência brusca, revoltava-se contra o destino adverso de o
colocar frente à tempestade avassaladora, quem sabe se a pretender extinguir
a sua existência solitária.
A solidão não o enfraquecia. Dilacerava-o. Aprisionava-o. Mas, ao mesmo
tempo, criava nele energias desconhecidas, poderes fantásticos, vontades
indomáveis. E uma saudade emergia sempre, como um delírio tenebroso a
expandir-se na luz de uma eterna esperança. Saudade! Essa voz melodiosa a
sussurrar gritos de ousadia, essa lágrima vertendo salgados espaços sem
fronteiras, essas ondas de ausência sem passado, sôfregas de futuro.
Meditava, parecendo vergado pelo peso ciclópico de Titãs: «A que distância
estou de mim, tendo tudo no meu reino, além e aquém! Generosa divindade me
concebeu como a perfeita criatura! Tudo vive porque eu vivo! De tudo sou o
centro e o sustentáculo. Miro-me nas águas de mim próprio, porque tudo
existe, enquanto a vida pulsar neste coração salino e o meu espírito vegetal
perpetuar os mundos abismais das cristalinas águas da ausência. Mas esta dor
atroz, a penetrar como seta veloz e implacável no âmago do meu ser. Oh
fatalidade, oh desventura amarga e constante, porque me persegues? Porque
afrontas meu espírito sem uma trégua de tempo piedoso, sem uma ausência
dessa ausência. És cáustica, atordoante, por vezes, gélida, oh obscura, oh
misteriosa na minha interioridade plena de tudo! Quero lembrar-me e não
posso! Não há ainda lembrança, a saudosa lembrança. É a Idade do Ouro! E
sofro porque, sem memória, não sofro! Guardo tesouros imortais nesta arca
marítima. Nada existe fora dela. A beleza, o tempo, a vida, o espírito,
todos imortais, nas entranhas do meu ser infinito. Sinto-me na mansão
perdida, como se nada possuísse; vazio, vago, ausente e com uma tristeza a
crescer em castelos de vagas alterosas, num atropelo sem fim, num
esgotamento».
Assim o Mar passava o tempo na Idade em que o tempo não passa. Contudo, as
horas pareciam-lhe dias e os dias assemelhavam-se a anos. Que demora, que
prolongada espera... E o espírito sacudia a mágoa no excelso marulhar das
envolventes águas. Até que estranha sinfonia se escutou. Desusada, inaudita,
única. Algo emergia de um silêncio sepulcral. Algo estremecia o profundo num
fragor arrepiante. Desintegração do vigoroso Mar? Perturbação da sua alma
solitária em demasia? Ou um novo tempo, com um novo mundo, nascia? Aquele
corpo, a ecoar letárgicos clamores de retirada memória, adormecia num poente
de renovada luz.
Era o sono do Mar. Sono ímpar! Magnânimo! Perscrutador do desejo
inconsciente. E um sonho transpareceu em inesperado e idílico futuro.
Temendo perder a vida, jamais ousara dormir. Seria perigoso deixar de estar
vigilante! O céu imenso, o Sol brilhante ou até uma estrela longínqua lhe
podia retirar uma parte da essência. Naquele instante, porém, um silêncio
infinito pousou na superfície atenta; uma melancolia acabrunhada cobriu o
seu olhar sem sombra de vento. Embalado pela espuma breve dos momentos,
sorria docemente naquele sono intemporal e primeiro. E a felicidade invadiu
a expressão verde azulada do seu ansioso rosto. O sonho transparecia,
eloquente, na marítima face. A ideia milagrosa e salvadora da ausência
surgia no sereno encontro de duas formas entregando seus olhares furtivos,
totalmente. Assemelhavam-se a arraiais de fogo a eclodir nas suas almas
emudecidas e a rir, a rir, perdidamente. Na lembrança de um passado saudoso,
há tanto tempo! Na espera de um futuro de mil memórias renascidas.
E a voz do Mar, no sonho transfigurando-se, sibilava, em ondas cristalinas:
«Oh beleza divinal! Oh luz de Aladino! Oh harpa celestial! Será real visão
ou apenas miragem seduzindo e enganando, como a espuma das minhas águas
nostálgicas? Que maravilha o encontro daqueles seres solitários, que na
saudosa memória, viviam já um no outro; ao reverem-se, seus corpos esbeltos
somente trocaram aquelas palavras que a distância nebulosa jamais apagara
neles. O amor! Sim, agora entendo, é ele o astro sacro sem rival, que
derramando a ambrósia e o fino mel na alma pulcra dos amantes separados,
pela saudade os une com o selo da eternidade».