Cada vida humana repete a obra da criação. O «paraíso» da existência
fazemo-lo nós, cada um de nós. Cada homem é um mundo - mundo de hoje, de
ontem e de amanhã. Mundo contraditório e complementar, verosímil e
inverosímil, mundo fechado e aberto, fictício e real, mundo absurdo e
inteligível, de fantasia e de realidade. É neste jogo da realidade e da
ficção que se define a obra de Miguel Torga, que se afirma o homem e o
escritor, usando a palavra na sua ambivalência intrínseca de simplicidade e
de profundeza. Neste contexto do romance pragmático, existencial e imaginoso
se delineia o genius de Miguel Torga. Capaz de transferir o divino para o
humano e o humano para o divino, Torga constitui um caso sui generis da
nossa literatura contemporânea. Sem sofismas fáceis, sem contornar a
realidade, sem omitir o que lhe poderia ser prejudicial, assume na ficção, a
autenticidade que confere não só à obra A Criação do Mundo, mas a toda a sua
produção literária, um carisma universal. Escritor inconformado com a pátria
sonhada do tamanho do mundo, mas, na realidade, do tamanho da «pequena casa
lusitana», angustiado com o isolamento que as montanhas pirenaicas da
península impõem aos seus habitantes, utiliza, com frequência, a expressão
dialogada para mais directamente comunicar, integrar, vivificar a palavra
escrita. De estilo sólido e fluente, profundo e flexível, Miguel Torga no V
volume de A Criação do Mundo é também o escritor que faz história, mais, que
assegura aos vindouros uma das mais sintomáticas e uma das mais
significativas posições do tempo em que viveu. Fazendo romance, Miguel Torga
é historiador do presente, sub-repticiamente, de um modo quase
imperceptível, mas simultaneamente com uma grande força psicológica, com uma
grande sensibilidade ao que outros banalizam, secundarizam ou mesmo se
esquecem.
Mas para além das dimensões já entrevistas no escritor e que, são hoje
raras, há ainda a dimensão ética que caracteriza cada pensamento que
formula. Neles poderíamos encontrar toda uma filosofia portuguesa, pelo meio
em que se insere, mas universal pela grandeza da sua mensagem. Na verdade,
Miguel Torga é daqueles escritores que não se deixaram corromper pelas modas
da nova literatura, em que ao barroquismo do estilo corresponde a escassez
das ideias. Torga não é, pois, um escritor de vanguarda, tal como é hoje
concebida, porque não se deixou conduzir pelas fórmulas que a sociedade de
consumo engendrou e que tentam anular o homem, tentam destruir os seus
valores sagrados, amesquinhando a palavra e a própria vida até às suas
formas mais rudimentares. A literatura, como todas as outras expressões
culturais, está em risco de perder o homem se este não se opuser, com
veemência, ao que pretendem fazer dele. Baluartes das ideias e da cultura
acabam por esmagar aquelas e corromper esta. São os novos «vendilhões do
Templo» que proliferam, que se impõem e ganham fama. Então Miguel Torga não
é um escritor revolucionário? Em nosso entender, é. Mas esta resposta será
considerada por muitos uma loucura. Porquê? Porque Torga não se integra no
conjunto da novíssima literatura, daquela em que se enchem páginas de
palavras ligadas segundo os afluxos ou refluxos do subconsciente ou do
inconsciente... Segundo a inteligência nacional, revolucionário não é o que
tem ideias próprias, o que cria, o que constrói um sistema cujos métodos ou
objectivos não são os dessa conceituada camada intelectual, mas os que a
repetem, a continuam disciplinadamente, sem atropelos nem contestações.
Revolucionário é, como nos ensina o dicionário, e se ele ainda serve para
alguma coisa, o que é capaz de se opor quando não está de acordo, o que é
capaz de fugir ao esquema, quando vê nele uma ameaça para a liberdade, o que
não teme ser perseguido por defender as suas crenças, porque a sua
consciência ainda é um valor sem preço.
Mas demos, finalmente, a palavra àquele que no limiar da idade, conclui o
Sexto Dia de A Criação do Mundo deste modo desafrontado: «Passara a vida a
sonhar um Portugal melhor, uma península melhor e um mundo melhor. Para que
essa aspiração fosse verdade, julgava que bastaria o desaparecimento das
tiranias que aqui, ali e além oprimiam os povos. Ora a verdade é que os
tiranos carismáticos, um a um, iam desaparecendo e quanto mais parecia
debelada, mais a opressão se enraizava no corpo social e mais sólida e
subtilmente se implantava nele. E olhava sem antolhos os horizontes
promissores da democracia. Cada vez se tornavam menos nítidos no meu
desespero (...) A hora (…) era dos fanáticos partidários, das ambições
desmedidas, das hegemonias económicas, das competições nucleares, das
guerrilhas urbanas (...) Assistia ao espectáculo degradante de um mundo
massificado e agressivo, que confundia a liberdade com o seu desejo
irresponsável de permissividade e impunidade, incapaz de reconhecer na arte
qualquer significação perene e sagrada».
Palavras que não passam, que não podem passar, porque nelas a razão fez a
sua morada.