TERESA FERRER PASSOS
«A CRIAÇÃO DO MUNDO»

Cada vida humana repete a obra da criação. O «paraíso» da existência fazemo-lo nós, cada um de nós. Cada homem é um mundo - mundo de hoje, de ontem e de amanhã. Mundo contraditório e complementar, verosímil e inverosímil, mundo fechado e aberto, fictício e real, mundo absurdo e inteligível, de fantasia e de realidade. É neste jogo da realidade e da ficção que se define a obra de Miguel Torga, que se afirma o homem e o escritor, usando a palavra na sua ambivalência intrínseca de simplicidade e de profundeza. Neste contexto do romance pragmático, existencial e imaginoso se delineia o genius de Miguel Torga. Capaz de transferir o divino para o humano e o humano para o divino, Torga constitui um caso sui generis da nossa literatura contemporânea. Sem sofismas fáceis, sem contornar a realidade, sem omitir o que lhe poderia ser prejudicial, assume na ficção, a autenticidade que confere não só à obra A Criação do Mundo, mas a toda a sua produção literária, um carisma universal. Escritor inconformado com a pátria sonhada do tamanho do mundo, mas, na realidade, do tamanho da «pequena casa lusitana», angustiado com o isolamento que as montanhas pirenaicas da península impõem aos seus habitantes, utiliza, com frequência, a expressão dialogada para mais directamente comunicar, integrar, vivificar a palavra escrita. De estilo sólido e fluente, profundo e flexível, Miguel Torga no V volume de A Criação do Mundo é também o escritor que faz história, mais, que assegura aos vindouros uma das mais sintomáticas e uma das mais significativas posições do tempo em que viveu. Fazendo romance, Miguel Torga é historiador do presente, sub-repticiamente, de um modo quase imperceptível, mas simultaneamente com uma grande força psicológica, com uma grande sensibilidade ao que outros banalizam, secundarizam ou mesmo se esquecem.

Mas para além das dimensões já entrevistas no escritor e que, são hoje raras, há ainda a dimensão ética que caracteriza cada pensamento que formula. Neles poderíamos encontrar toda uma filosofia portuguesa, pelo meio em que se insere, mas universal pela grandeza da sua mensagem. Na verdade, Miguel Torga é daqueles escritores que não se deixaram corromper pelas modas da nova literatura, em que ao barroquismo do estilo corresponde a escassez das ideias. Torga não é, pois, um escritor de vanguarda, tal como é hoje concebida, porque não se deixou conduzir pelas fórmulas que a sociedade de consumo engendrou e que tentam anular o homem, tentam destruir os seus valores sagrados, amesquinhando a palavra e a própria vida até às suas formas mais rudimentares. A literatura, como todas as outras expressões culturais, está em risco de perder o homem se este não se opuser, com veemência, ao que pretendem fazer dele. Baluartes das ideias e da cultura acabam por esmagar aquelas e corromper esta. São os novos «vendilhões do Templo» que proliferam, que se impõem e ganham fama. Então Miguel Torga não é um escritor revolucionário? Em nosso entender, é. Mas esta resposta será considerada por muitos uma loucura. Porquê? Porque Torga não se integra no conjunto da novíssima literatura, daquela em que se enchem páginas de palavras ligadas segundo os afluxos ou refluxos do subconsciente ou do inconsciente... Segundo a inteligência nacional, revolucionário não é o que tem ideias próprias, o que cria, o que constrói um sistema cujos métodos ou objectivos não são os dessa conceituada camada intelectual, mas os que a repetem, a continuam disciplinadamente, sem atropelos nem contestações.

Revolucionário é, como nos ensina o dicionário, e se ele ainda serve para alguma coisa, o que é capaz de se opor quando não está de acordo, o que é capaz de fugir ao esquema, quando vê nele uma ameaça para a liberdade, o que não teme ser perseguido por defender as suas crenças, porque a sua consciência ainda é um valor sem preço.

Mas demos, finalmente, a palavra àquele que no limiar da idade, conclui o Sexto Dia de A Criação do Mundo deste modo desafrontado: «Passara a vida a sonhar um Portugal melhor, uma península melhor e um mundo melhor. Para que essa aspiração fosse verdade, julgava que bastaria o desaparecimento das tiranias que aqui, ali e além oprimiam os povos. Ora a verdade é que os tiranos carismáticos, um a um, iam desaparecendo e quanto mais parecia debelada, mais a opressão se enraizava no corpo social e mais sólida e subtilmente se implantava nele. E olhava sem antolhos os horizontes promissores da democracia. Cada vez se tornavam menos nítidos no meu desespero (...) A hora (…) era dos fanáticos partidários, das ambições desmedidas, das hegemonias económicas, das competições nucleares, das guerrilhas urbanas (...) Assistia ao espectáculo degradante de um mundo massificado e agressivo, que confundia a liberdade com o seu desejo irresponsável de permissividade e impunidade, incapaz de reconhecer na arte qualquer significação perene e sagrada».

Palavras que não passam, que não podem passar, porque nelas a razão fez a sua morada.

[Fonte: Teresa Bernardino (pseudónimo de Teresa Ferrer Passos), «Ensaios Literários e Críticos», Lisboa, Universitária Editora, 2001, pp.161-163]