quando Henriqueta Elisa lançou um jornal literário, José Vieira de Castro
anunciava na sua Biografia de Camilo Castelo Branco, a publicação de um
livro de versos de Ana Augusta. Procuro-o incessantemente e não o encontro.
Vejo-o só na minha imaginação. Na febre de mim. E deparo com o Almanach das
lembranças de Catarina Balsemão. Tropeço nas suas folhas e leio os seus
versos. Palavras vibrantes, plenas de musicalidade, de rimas ricas. Audácia
e emoção nesta poética do amor levado ao extremo que é a adoração. Apesar do
amado ser o motivo do seu sofrimento, esse penar é ainda a razão da sua
felicidade, da sua sorte ditosa e impossível noutras condições ou mesmo que
houvesse a possibilidade de fugir à dependência. Não há verdadeiro amor se
excluirmos a dependência. Ela nos torna as pessoas mais livres do mundo. O
amor autêntico é toda uma limitação que o outro nos provoca e se essa
limitação da nossa liberdade não existir o amor é apenas ou somente um
simulacro. Uma redundância perecível a cada instante de dádiva. Porque a
dádiva é entrega de uma parte de si ao tu que se tornou o eu mais largo e
complexo. Sem a sujeição ao tu ou seja sem o cativeiro de amor, o eu perde a
dimensão da relação em que impera o eros que comanda a essência mais
significante daquele que sabe. Amar. Perdidamente...
e eu que não soube o que era amar. Apenas perfis passageiros a percorrerem
as minhas alucinações de náufrago. Esgotei-me no meu corpo em sensações
vagas e bolorentas. A esculpir mulheres sensuais para alimentarem as minhas
enfermidades atravessei horizontes parcos e estéreis que me repugnam até à
exaustão. Mas não consigo escapar-lhes. Sou escravo do meu corpo. O tirano
exerce sobre o meu espírito um domínio incontrolável. Cedo-lhe sempre e cada
vez lhe sou mais submisso.
sou um vazio. Um sem sentido. Sou a perdição. E como me deixo seduzir ao
reler o Amor de Perdição... sufoco de ira e revolta e morte de amanhã. Só
esta palavra crime interiorizada nas lágrimas que dilaceram as minhas
vísceras até ao gigantismo fazem aplacar as minhas veias saturadas as minhas
artérias revoltas o inconformismo das magnéticas ondas do meu cérebro
inchado de pensamento... inconformado giro silencioso entre cruezas
irracionais e invisíveis ou a fome insaciável de conquistar uma mulher.
Invento-a nos desenhos com que encho os meus cadernos abandonados às
máscaras caricaturais. Atulhados com os meus revezes neles assoma só a
poeira dos córregos estreitos e os fios de prumo onde coloco os mochos e os
caleidoscópios assexuados nas sonatas traçadas com o esperma dos meus ossos
a estalarem de dor e uivos de distância no medo da luz intensa e violadora
de toda a intimidade em que movo as minhas desventuras cobertas de gotas de
pecado a rondar o inexcedível céu azul dócil e a esvoaçar os afectos sem a
mobilidade das fragas esmagadas pelos oceanos precursores do ritmo do órgão
penitencial com a pertinência das horas agrestes de secura aridez e
vertiginosa arma tão frágil como um jogo de contas vítreas e luminosas com
Ana e Camilo abraçados nos passeios do outeiro em que os vejo depois da
meia-noite a darem o braço nu das bandeiras incendiadas durante os dias de
imenso tédio silêncio e vergonha.
terrível é o amor no momento da decepção. Levanto-me cambaleante com uma
acidez na língua como nunca senti. Procuro um livro que me fale de Ana.
Selecciono. Chego à segunda prateleira do lado esquerdo sétimo volume de
lombada castanha. É o Diário de Guiomar Torresão. Quantas vezes o terá lido
Ana... na sua sagacidade o desalento morava. Como devia sentir-se irmã
espiritual dessa mulher de olhar felino e porte magro. Escuto a voz de Ana.
Lê a Torresão com a atenção de uma adolescente ingénua e sem perspicácia.
enovelo-me no fascínio da madrugada. Com a nitidez da loucura estremeço ao
desocultar o nome de A. A. no jornal Livre Pensamento. O calendário não nos
engana se não lhe recortarmos os contornos baços e intemporais. Imóvel, com
o olhar avermelhado e fixo na vela roxa penso a viscondessa perfilada no seu
longo vestido de veludo negro. Quase numa posição curva ou desviada do ponto
em que a descortinei, senti-lhe a boca a salivar uma espuma negra a
envolver-se no sombreado das rugas. Esperava o tempo. A pairar na imprensa
de novo. Como no tempo breve da novidade exulta entre ramais de letras
obscuras de fuga estonteante de hálito perfumado de puro incenso e
framboesas silvestres. Tem nos sons da palavra uma oração às folhas caídas
em tons de azul e verde e nada sob a agressão do espírito imperturbável do
carrasco impenitente de respiração a exalar todas as infidelidades do
desvairado amante. Para quê casar na hora do fim do tempo? tarde demais para
um cego doente alquebrado e à beira do desespero fatal... vinte e sete anos
sem a coragem de casar e agora sob a influência de amigos a cumprir apenas
um dever. Um dever, casar com a mulher que amei mais do que ao próprio Deus
venerado no altar e a quem rezava nas horas da perdição... naquele tempo
quis ser padre porque a amava. Quis morrer porque era um miserável perante
aquela mulher da alta burguesia portuense. Como garantir-lhe bem-estar,
comodidades, felicidade?! habituada ao requinte dos criados, à exuberância
fantasista no vestir, à exibição da sua beleza grega nos salões onde
ruflavam os veludos e os tafetás e as sedas moirés, onde se escutavam Chopin
e Schubert ou os poemas dos afortunados versejadores revolucionários e
românticos. Nada disso podia oferecer a Ana.