TERESA FERRER PASSOS
A PROPÓSITO DE ALGUMAS HIPÓTESES DE CULTURA

Foi publicado pelo Professor Manuel Maria Carrilho, um conjunto de depoimentos e reflexões, que intitulou genericamente Hipóteses de Cultura. Resulta de uma série de entrevistas e artigos vindos a lume nos jornais Diário de Notícias e Público (então Ministro da Cultura). Enquanto nas conversas com os jornalistas podemos encontrar, sobretudo, todas as medidas de natureza cultural já postas em execução (ou para as quais foram criadas as condições para a sua viabilidade prática) pelo seu Ministério, nos outros textos aqui inseridos (vindos a lume nos jornais, ao longo de quase quatro anos), Manuel Maria Carrilho expõe, de modo claro e elucidativo, os seus pontos de vista acerca dos conceitos de cultura e política, aborda as suas relações com a União Europeia e os conflitos daí decorrentes, revela criticamente as suas ambiguidades e contradições, num contexto socio-cultural internacional.

Em Hipóteses de Cultura é dada especial atenção à questão das gravuras do Vale do rio Côa. Ora, se uns entenderam dever o Ministro preservá-las com o rigor científico necessário, outros houve que consideraram a sua conservação, em desfavor da construção de uma barragem, como uma atitude imbuída de estultícia.

A verdade é que estes se esqueceram, de certa maneira, que um país não vive só do aproveitamento material dos seus recursos, mas igualmente do prestígio da sua cultura histórica; esta não é hoje considerada pelas nações mais avançadas do mundo como algo a menosprezar, sobretudo se um país, por incúria ou desatenção, tem já a sua riqueza patrimonial bastante reduzida. «Criar uma nova filosofia do património em torno do Côa» tornou-se nas palavras de Manuel Maria Carrilho uma exigência, pois como acentua, «o Côa é uma das grandes raridades mundiais».

Além desta defesa deste património pré-histórico do rio Côa, Manuel Maria Carrilho procurou reincentivar o Instituto Português do Livro e da Leitura (este Instituto sob a Presidência do Professor Artur Anselmo havia desenvolvido uma importante política de criação de bibliotecas disseminadas pelo país, programas de rádio em que se faziam entrevistas a autores menos conhecidos, divulgavam livros, revistas, etc.), o qual perdera toda a sua dinâmica de apelo à leitura e de actividade divulgadora do livro com um acto de precipitada petulância da autoria de um Secretário de Estado da Cultura, Dr. Pedro Santana Lopes, que o integrou, sem qualquer justificação aceitável, na Biblioteca Nacional, fazendo-o assim perder grande parte da sua autonomia.

Tendo também Manuel Maria Carrilho dado a estas Hipóteses de Cultura um espaço para divulgar as suas reflexões críticas sobre a sociedade contemporânea, não deixaremos de salientar a importância do seu intuito de «valorizar a articulação das ideias com a transformação do mundo».

As transformações que se foram processando, ao longo das últimas décadas do século XX, no que diz respeito à concepção dos valores culturais, implicaram que o autor de Hipóteses de Cultura destacasse três aspectos fundamentais: a consensualização, que dificulta o espírito crítico, que o ludibria e que chega a confundir as mentes; a trivialização da ética que a minimiza, a banaliza e a pode tornar quase imperceptível; a mediatização comunicacional que alarga a comunicação a sectores sociais tão diversos como dispersos, na globalidade e na fragmentação civilizacionais.

Estes três planos em que o problema da cultura se coloca na sociedade contemporânea, transmitem-nos a sensação de que as políticas cada vez se sentem mais alheadas nas suas redomas governativas, incapazes de resolver problemas como o desemprego, a droga, a insegurança, entre outros, como o próprio autor lembra, citando o livro La Démocracie Virtuelle (Flammarion, 1994) da autoria de Léo Scheer. Os problemas políticos alheam-se da cultura, muito particularmente no Portugal integrado na Europa Comunitária.

Mas se cada país defender a sua identidade, sem se alienar, mesmo assim, da identidade dos outros países europeus, poderá criar-se um espaço de esperança; o diálogo com as outras culturas será proveitoso, sempre que não nos envergonhemos da nossa própria cultura, da nossa própria história.

Ao debruçar-se sobre a «Europa e o Argumento Cultural», Manuel Maria Carrilho admite que é fundamental que se questione cada vez mais o sentido e a significação de «toda a poderosa tecnocracia europeia», assim como «o modelo institucional global da União Europeia», esse «motor ideológico do projecto europeu».

Interrogando-se sobre o que poderá ser «a unidade cultural europeia», considera que «a cultura média na qual vivemos» é importante para «dar energia a uma cultura europeia», mas sem «inventar a Europa», ou seja, sem «suscitar uma experiência da Europa», sem a defesa do «multilinguismo», «sem o aumento da comunicação e do conhecimento dos povos europeus entre si», «sem o fim da diabolização mediática que os políticos tão abundantemente praticam», nada disso será provavelmente alcançado.

Nesta obra, Carrilho sublinha ainda que «as ideologias devem ser vistas (…), não como dogmas mas antes como conjuntos abertos de ideias, de hipóteses que visam a organização e a transformação da vida dos indivíduos e das comunidades». Não há duvida de que os dogmas, venham eles dos totalitarismos de direita ou dos totalitarismos de esquerda, prosseguirão triunfantes se forem sobrepostos às ideologias.

A política de governos que as não possuírem, que só vivam dos votos e para os votos, sem outro objectivo maior, e sem o espírito aberto que conduz às acções ousadas, em nada fará progredir as sociedades humanas.

Só governos capazes de defrontar, sem equívocos, a incompetência, a corrupção e a alienação patriótica, poderão criar condições para vencer os males da injustiça e a perda dos mais altos valores éticos que os percorrem e, assim, vão desgastando as sociedades, mesmo as denominadas avançadas.

NOTA: Este artigo sobre o livro Hipóteses de Cultura do Professor Manuel Maria Carrilho foi enviado, em 1999, a jornalistas de Expresso e Diário de Notícias que recusaram a sua publicação.

TERESA FERRER PASSOS *

* Também assina com o heterónimo Teresa Bernardino.






Hipóteses de Cultura

Manuel Maria Carrilho
Lisboa, Editorial Presença, 1999