(Os pastores discutem
entre si onde se havia de deitar o menino, acabado de nascer. Um deles
olha a manjedoira. Mostra-a à mãe. Ela acena afirmativa, toda iluminada
de alegria. É Mateus quem o deita. Cobre-o com as palhinhas finas. O
menino acomodado, de olhos cerrados, sente cada uma delas em todo o seu
corpinho).
O MENINO − Oh suaves
palhinhas… umas tão macias, outras tão quentinhas… com certeza o frio
cobriu-se também com elas… e eu, como me enrosco em cada uma de vocês,
depois de sair da esférica morada de minha mãe!
(As palhinhas
elevam-se devagar, com espanto. Como pode o menino, acabado de nascer,
falar com elas? E logo decidem também falar-lhe, como fizera o menino,
até antes de falar com a própria mãe.)
PALHA OURO-VELHO
−
Que honra falar com alguém tão pequenino e de tão alta estirpe,
provindo de gente sábia e bela…como tu, menino acabado de nascer!
MENINO − Que palavras
lindas estou a ouvir de uma tão frágil palhinha. Como gosto do teu
grande esforço para me falares!
PALHA MAIS-DESFIADA
(dirigindo-se ao menino) − És um menino acabado de nascer e já
queres conhecer-nos, como se fossemos como tu és, um humano, esses
humanos que possuem poderes que não entendemos…
PALHA OURO-VELHO (num
esforço mil vezes maior do que o seu tamanho para que fosse ouvida)
− Nunca escutei nada de semelhante da vaca ou do burro, que dos nossos
filamentos se vêm alimentar todos os dias!
PALHA MAIS-DESFIADA − Os
animais não sabem falar com o coração como o menino aqui deitado e,
afinal, também não nos ligam nenhuma importância…
PALHA MANSINHA-DEMAIS
(com tristeza) − Acham que nada valemos, que de nada importante
somos capazes.
PALHA OURO-VELHO − Não
saberão que até existimos para eles não morrerem de fome?!
PALHA MAIS-DESFIADA −
Será que nem disso se apercebem? o que somos, é igual a nada entre os
seus dentes, dentes que nem o sabor nos tomam, na sua voracidade…
(Nesse instante, a
palhinha Toda-Alongada sentiu a mãozinha do menino a puxá-la para os
olhinhos semi-cerrados. E num impulso inesperado, estendeu-se neles como
se nada pesasse).
O MENINO − Como é bom o
teu auxílio, Palha Toda-Alongada! sou ainda desajeitado nestas coisas da
matéria. Pegar, tocar, sentir… que difícil é tudo isto do mundo das
coisas, sobretudo das coisas mais pequenas como é o vosso aconchego…
PALHA TODA-ALONGADA −
Nada te fiz de importante e que não merecesses!
PALHA MAIS-DESFIADA −
Nada será demais para com este menino que nos dirigiu a palavra pela
primeira vez desde que existimos, nós que apenas somos pobres fios de
palha.
PALHA OURO-VELHO − A
verdade é que somos simples demais para falar com um menino de humana
natureza…
O MENINO (sem o mais
ínfimo ruído) − Não sou só de natureza humana, mas também de divina
natureza…
PALHA MAIS-DESFIADA
(olhando, circunspecta, o menino) − Ah! não só humana mas também de
divina natureza?!
PALHA TODA-ALONGADA −
Como isso é estranho! tens um corpinho humano e, ao mesmo tempo, de
divina natureza?! como pode ser?
PALHA OURO-VELHO
(olhando o menino, de soslaio) − Minhas irmãs, duvidam daquele que,
pela primeira vez desde que existimos, pôs em nós confiança?! talvez por
ele ter essa altíssima natureza, quisesse logo falar connosco, o que nem
os rudes animais que se alimentam de nós, querem!
O MENINO (cerrando
mais os olhos) − Que nervosismo, mesmo agitação, estão a viver as
palhinhas só porque ouviram no seu coração as minhas palavras, as minhas
palavras que só podem ser escutadas por aqueles que são capazes de falar
e ouvir com o coração!
PALHA TODA-ALONGADA −
Ouvi-te de novo! agora percebo porque te escutamos! É que tu falas só
com o teu coração… e como o teu coração ainda tão pequenino, acabado de
nascer, transmite tanto amor e, logo por nós, as tuas companheiras e
primeiras testemunhas no mundo, nós, digo eu, umas simples palhinhas de
manjedoira, num apagado estábulo de uma hospedaria de Belém!
PALHA OURO-VELHO − Estou
a viver, por todo o meu filamento, um sentimento que nunca imaginei, o
sentimento da paz comigo própria… que força espantosa transborda do teu
coração, meu pequenino, a entrar por nós adentro como um raio de
trovoada, a cair na estrebaria e a incendiá-la toda!
PALHA MANSINHA-DEMAIS −
Sinto-me uma palha ardente de amor por este menino! com um coração cheio
de amor por nós… por nós, ressequidas ervas de tão ténue valor…
PALHA MAIS-DESFIADA −
Ah, minhas irmãs, atenção! ele não é só humano; como disse, é também
divino!
PALHA TODA-ALONGADA − Eu
serei sempre sua testemunha fiel porque sendo o menino de natureza
divina, aquela que está mais alto, nos valorizou; e como sabem nenhum
humano tem tido a humildade suficiente para nos dar qualquer valor!
(Ao ouvir estas
palavras, o menino começa a esboçar um riso que acaba por se confundir
com um choro quase inaudível. Entreabre, muito ao de leve, os olhos. O
pastor Mateus, de joelhos, olha-o, atento, a cada instante. A mãe, a
pequena distância, adormecera de cansaço)
PALHA OURO-VELHO (com
entoação desgostosa) ─ O menino silenciou o seu coração connosco…
não terá gostado de alguma das nossas palavras?!
PALHA MANSINHA-DEMAIS ─
Acho que nada dissemos que lhe pudesse desagradar… eu duvidei, sim, um
pouco, mas comecei a acreditar nessa sua natureza divina, precisamente
porque ele, acabado de nascer, e pertencendo ao distante divino, logo
quis falar-nos!
PALHA MAIS-DESFIADA − A
nós, em primeiro lugar, talvez por sermos as mais desprezadas ervas da
criação, os homens nos arrancam da terra onde vivíamos e nos deixam
morrer pela segunda vez debaixo do sol ardente para depois ainda
voltarmos a morrer pela terceira vez entre os dentes dos carneiros
felpudos a berrar, dos burros a sacudir as moscas e das vacas
indiferentes ao seu doce leite.
PALHA OURO-VELHO − Logo
emendaste o erro da tua dúvida, mas não sabes se o magoaste com a tua
reserva quanto a ser ele também divino.
PALHA MUITO-ALONGADA −
Eu também tive dúvidas acerca da sua natureza divina; mas que saudade já
tenho do seu coração pronto a envolver-nos em estatuto maior, bem maior
do que aquele que até agora nos foi dado…
PALHA MAIS-DESFIADA −
Seja qual for a razão do seu silêncio connosco, também já tenho saudade
desses primeiros esgares de amor para cada uma de nós, tão pobres de
espírito e indignas da sua atenção, mesmo que ele fosse apenas de
natureza humana...
PALHA TODA-ALONGADA −
Todo ele era sorriso cheio de afecto pela nossa presença junto dele, sem
ligar à nossa baixa condição de palhinhas…achou-nos tão apagadas neste
mundo que nos quis compensar, e como nos compensou de verdade!
PALHA MANSINHA-DEMAIS
(com ar assustado) − …falando connosco elevou-nos até ao sagrado, à
divina natureza! lembrar-me eu dos pastores pretensiosos, que nem sequer
nos olham ao encherem com os nossos finíssimos corpos a manjedoira,
todas as manhãs!
PALHA OURO-VELHO − E os
não menos indiferentes animais que não se preocupam com o nosso fim nas
suas barrigas, nem sequer por nos verem tão frágeis e sempre ao dispor
dos seus desejos…
O MENINO (ficando
sério, de súbito) − Não estou ofendido, não…sei que nunca vos deram
afecto porque o valor de uma palhinha parece aos olhos do mundo muito
insignificante…
(o menino afastou a
palhinha Toda-Alongada dos seus olhinhos, já a tentarem romper a luz
amena da manhã)
PALHA TODA-ALONGADA −
Não ouviram? o menino voltou! que alegria sentir-lhe o corpinho dócil, a
pele ávida de calor, os dedinhos retorcendo-se nos nossos fios, agora só
envolvidos no seu coração de amor a rodos!
PALHA MANSINHA-DEMAIS –
Como me sinto alguém, como já não me preocupa a tripla morte, só por o
menino nos olhar com o seu coração divino, e, agora até me parece que é
bem mais divino do que humano...
PALHA MAIS-DESFIADA – Só
pode ser divino, como ele próprio nos disse com o seu coração pequenino.
PALHA TODA-ALONGADA −
Eu tenho a certeza de que o menino, se fosse só humano… não nos
envolveria com tanta subtileza no seu coração de amor.
O MENINO – Como estou
contente porque acreditam em mim, acreditam na minha palavra, a soprar
tão ao de leve do meu coração; mereceram ser os primeiros seres a quem
entreguei a minha palavra, a palavra do meu Pai, o Criador de todo o
Universo, e não só da Terra!
PALHA OURO-VELHO
(inclinando-se para a Palha Toda-Alongada) – Que humilde é o teu
coração, tu que és o Filho do Criador de tudo o que existe no Universo…
PALHA MANSINHA-DEMAIS –
Estou aqui toda para ti, menino portador de tanto amor, o amor imenso
vazado no teu coração, pelo Pai… só quero saber como te podemos
recompensar da tua generosidade.
PALHA MAIS-DESFIADA – A
sensação de estar junto de um coração a bater com a graça de uma
criatura que vem do Altíssimo Criador…
PALHA TODA-ALONGADA − E
como é diferente dos seres que estão muito abaixo d’Ele… como é humilde!
MENINO – Foi com
humildade que meu Pai criou todas as coisas; por isso ele me recomendou
que começasse por vos falar e seriam assim as primeiras testemunhas da
minha natureza divina!
SEREMOS AS TUAS MAIORES
TESTEMUNHAS, ATÉ AO FIM DOS TEMPOS! FOMOS NÓS QUEM PRIMEIRO TE ESCUTOU!
QUEM SOUBE, EM PRIMEIRO LUGAR, QUE ERAS DE ORIGEM DIVINA! QUEM PRIMEIRO
ACREDITOU EM TAL ORIGEM! (respondem, em coro, todas as palhinhas da
manjedoira, onde o menino se acalenta e sente feliz, no dia em que chega
ao mundo das humanas criaturas). |