Sem julgares os pecados de teus irmãos, sofres pelos teus, e são tantos, dizes. Percorres as ruas da cidade como um louco, para se rirem de ti, o pecador. Chamas a atenção do povo por actos impróprios da lucidez. Queres ser o algoz de ti próprio, precisamente tu, tu que foste tão contrário a Jesus. Tu que participaste nas guerras ao serviço dos grandes, queres fazer justiça contra ti próprio, por tuas próprias mãos, tu que pecaste tanto naquelas guerras «santas»…
Cobres o corpo de ridículo para que te chamem ridículo, cobres o corpo de escárnio para que te escarneçam, cobres o corpo de desprezo para que te desprezem. E o povo chama-te louco e criva-te de pedras, na cidade. Na bela cidade de Granada. Acusam-te de louco porque te comportas como se o fosses, porque desejas esse insulto, tudo isto depois de te teres convertido ao Sacro Coração Jesus.
Para ti, a guerra deixou de ter sentido, depois de ouvires o sermão de João de Ávila. Agora, convertido, a tua vida já só tem um sentido, o sentido do amor, de que Jesus falava. E com pedras de escândalo te adornas nas ruas pejadas de insultos, nas gentes estultas gritando a tua demência.
É assim que segues, coberto de dores físicas e dores do espírito, esse espírito tão arrependido. Segues a orar por mais castigos, talvez precises até dos tormentos infligidos aos loucos arredados do convívio da lucidez. E provocando, mais e mais, as pessoas lúcidas, és conduzido ao hospício, o lar dos loucos. És só mais um deles e, como eles, és açoitado com o baraço de cordas, é assim que os enfermeiros os «curam» das fúrias e das angústias…
Então, sabes como é cruel esse «tratamento», e como, só por isso, se impõe deixares que te continuem a supliciar, mesmo merecendo, porque é preciso terminar os suplícios infligidos sem justeza, a esses pobres loucos.
Mostras, célere, uma paz seráfica, uma passividade sã, uma fisionomia conformista. Vêem-te numa harmonia contigo próprio, espantas aqueles que, com crueldade, dizem poder «curar» os doentes do espírito. Dão-te por «curado» da loucura… Agora, sabes que tens de trazer, enfim, aos loucos do hospício, um tratamento todo feito de grande carinho, de grande amor, conforme a palavra de Jesus. E deixam-te sair de entre aqueles doentes, seguir para as ruas. Entregam-te até uma carta de liberdade por estares são, estares «curado». Então, deixas o hospício nefando, livre e com o amor no coração para o dares a todos os doentes, sejam eles do corpo ou da mente, sem diferença, porque não há verdadeira diferença entre eles.
É preciso ser rápido porque aqueles doentes sofrem sem razão, sem ter pecado, como dizes ter tu pecado. Tens a certeza que, afinal, Jesus não quer que sofras o ódio contra ti próprio, apesar de, como proclamas, tantos pecados teres cometido. Jesus quer ver-te, a ti, a quem ele, num certo dia da tua aventurosa vida, ouviste chamar «João, João de Deus!», ao seu serviço. Mas servir só com amor, só com amor a ti e aos desvalidos. O que Jesus, afinal, quer, é que espalhes amor pelas vítimas da injusta loucura que não é pecado, mas inocência.
Como carregas aos ombros as suas dores e descobres o néctar da suavidade que sara as feridas da sua alma.
Como susténs o desalento negro em que mergulham.
Como esvazias o vazio que acossa as suas vidas.
Como agarras as suas mãos fracas com ternura.
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