O que é a palavra? O que são as palavras? Para que servem? Porque as usamos em todo o nosso pensamento mesmo sem ser dito, mesmo sem ser escrito? Como podem maravilhar e como podem ser cruéis? Como parecem um labirinto atroz e como se ordenam tão perfeitamente? Perguntas, muitas perguntas, colocava a nostalgia no espírito do jovem José.
Mesmo quando a mecânica ensinava as suas mãos a conceber ou a montar objectos de ferro forjado, interrogava-se sobre o sentido das estrelas a brilhar nos céus de Azinheira, procurava descobrir porque gostava tanto de livros - ele que só os conhecera para aprender, na escola, as primeiras letras - , tentava encontrar uma explicação para a morte ter colhido o avô Jerónimo, quando ele amava as próprias árvores do seu quintal, como se de pessoas amigas se tratassem.
Mais tarde, depois do trabalho, tornou-se assíduo leitor das bibliotecas públicas. Era preciso ler os poetas, os romancistas, aqueles que lhe podiam ensinar a arte da escrita, ainda que sem a orientação de professores, um pouco ao acaso, desorientado por vezes, mas sem desistir do seu intento, sempre incansavelmente. Como gostava de, um dia, começar a escrever, afinal, ser um escritor! E ser escritor era para o jovem José uma reflexão sobre a vida e os seus absurdos…
Guiado talvez pela beleza da persistência, ainda que trémula, de uma daquelas estrelas que vira no céu em casa do avô Jerónimo e da avó Josefa, decidiu ser todo uma só vontade, todo um atrevimento e lançou-se no voo alto de escrever. Aos vinte e quatro anos, enviou a um editor o romance A Viúva. Mas o editor chamou-lhe Terra do Pecado. Era o ano de 1947. O livro, ignorado pela crítica, acabaria a ser vendido numa padiola e o autor pensou que «o futuro não teria muito para lhe oferecer» («Aviso» inserido na 2ª edição, datada de 1997).
Assim, somente em 1966, ou seja, dezanove anos depois da primeira edição de Terra do Pecado, José Saramago publicou um conjunto de poemas cujo título sugere a insegurança com que aventurava, pela segunda vez, penetrar o campo das letras: Os Poemas Possíveis (Lisboa, 3ªed., Caminho, 1985). Possíveis, ou seja, que lhe pareciam capazes para os dar à estampa. Quereria fazer melhor, mas as palavras não tinham saído. Contudo, seria a rampa de lançamento para, de novo, regressar à narrativa longa, discursiva, de grande fôlego, o romance.
Como em Terra do Pecado, a grande temática, ou o tema-chave é a religião. Neste seu primeiro romance, toda a narrativa gira à volta do ritual religioso ou da religiosidade das personagens; mais do que uma fé virada para a acção, ou seja, tendo em vista a prática do bem, há nas personagens uma crença mais sujeita à superstição do que à fé, mais repetitiva do que espontânea, mais fictícia do que sincera.
É um certo tipo de sentimento religioso que José Saramago rejeita e condena vivamente, sempre numa busca incessante e obcecada de racionalidade para tudo o que o cerca. Neste contexto, surgiram muitos dos versos de Poemas Possíveis: «Ouvem-me calados os deuses» e «Aos deuses sem fiéis invoco e rezo» (poema «Aos deuses sem fiéis», p.84), são duas expressões que evidenciam bem como o autor olha a religião, mas mais do que a religião, aqueles que se lhe dizem fiéis. Afinal, há deuses sem fiéis, ou seja, há «fiéis» que não são fiéis aos deuses.
É a esses deuses que os fiéis desconhecem, porque não entendem o sentido da sua ética, que o poeta invoca e reza. Esses, que não têm quem diga adorá-los e servi-los são bem diferentes daquilo que essas pessoas julgam, porque, na verdade, esses é que existem, ou melhor, só esses são benéficos. São esses que os devotos ignoram, desprezam, silenciam, impiedosamente, se, de facto, existem: Ao verso «Deus não existe ainda, nem sei quando», acrescenta o autor, mais adiante, outro em que diz «Que o sentido da vida é este só: / Fazer da Terra um Deus que nos mereça, / E dar ao universo o Deus que espera» (poema «Criação», p.82).
No poema «A um Cristo Velho» (p.86) sobressai a amargura, a revolta, a rejeição e mesmo o terror perante aquele Cristo: «De caruncho mordido, desprezado, / Coberto da poeira que envenena». Aí, aflora a crítica do poeta àqueles que fingem segui-lo, que dizem nele acreditar. Mas, no modo como nele acreditam não fazem mais do que reduzi-lo, inferiorizá-lo, humilhá-lo. E no poema «Judas» (p.87), José Saramago é ainda mais tempestuoso, mais acutilante e avança ao dizer que «Sem Judas, nem Jesus seria deus». À sua revolta junta-se a angústia.
O poeta procura, sem encontrar, um significado para o sacrifício de Judas e só o encontra no próprio Cristo (cujo sacrifício também não aceita): entre os doze fora o discípulo escolhido para ser o traidor; estava condenado, sem apelo, a não ter liberdade para escolher não o entregar àqueles que o queriam matar. Ele nem sequer sabia que se o não fizesse, Cristo não podia cumprir a sua missão, a missão que Deus lhe atribuíra. O problema da liberdade humana é aqui questionado tendo quase sempre por pano de fundo a crucificação de Jesus.
A religião surge em Os Poemas Possíveis como a expressão do que tanto preocupa José Saramago: a injustiça e os aviltamentos da liberdade humana, sem esquecer a desigualdade, existentes em muitas formas de religiosidade chamada cristã. Um mundo ocidental construído sob a égide da Igreja Católica e disposto a segui-la, desde há muitos séculos, não foi capaz de edificar uma verdadeira civilização, uma civilização de amor, em que por irmãos não nos tratássemos, mas como irmãos, sem o pensarmos, nos comportássemos.
Por isso, José Saramago escreve: «A qual de nós engano quando irmão / Nestes versos te chamo?» (poema «Fraternidade», p.75); «Este mal estar no mundo e nesta lei: / Não fiz a lei e o mundo não aceito» (poema «Não me Peçam Razões…», p.116); ou ainda: «Foi Deus chamado aqui e não falou» (poema «Sé Velha de Coimbra», p.88); «este mundo não presta, venha outro.» (poema «Demissão», p.78); «Não há mais horizonte. O silêncio responde. / É Deus que se enganou e o confessa» (poema «Não há Mais Horizonte…», p.92).
O poeta grita, em cada um dos seus versos, a angústia do sofrimento que o percorre, concluindo que só lhe resta «Viver iradamente como um cão» (p.75). Apesar disso, tem a esperança de tudo poder denunciar, ainda que mal-humorado, indiscreto, irado. Há muito tempo que calou a sua revolta. Chegou a hora de começar de novo, dizendo tudo o que recolheu na sua memória em agonia ao longo de uma vida desencantada e, por isso mesmo, plena de razões para a saber medir, a perscrutar até ao pormenor e até ao sem limite.
Os versos são a libertação depois de tanto tempo silencioso, aparentemente silencioso, por jamais aceitar a ideia de que a palavra do poeta se perderia. E, deste modo, cada verso é um longo discurso, cada verso possui dentro de si um romance longo, cada sílaba detém a letra de cada palavra à espera da hora de se alongar e dizer em mil páginas tanta coisa só esboçada no verso curto e nos curtos poemas deste livro preenchido por uns simples Poemas Possíveis.
Nesta amálgama de poemas, a religião surge enfatizada, já na linha do seu longínquo e promissor romance de juventude Terra do Pecado. Todos os seus romances, peças de teatro, novelas ou memórias publicados, posteriormente, reflectem como a temática religiosa tem um cariz obsessivo em José Saramago. Lembremos A Segunda Vida de S. Francisco de Assis, Memorial do Convento, Evangelho Segundo Jesus Cristo ou In Nomine Dei.
De facto, toda a obra romanesca de José Saramago pode encontrar-se, nas suas linhas mestras, esboçada em Poemas Possíveis. Como o próprio Saramago reflecte em «Nota» da 2ª edição desta obra, «nele teriam começado a definir-se nexos, temas e obsessões que viriam a ser a coluna vertebral (…) de um corpo literário em mudança».
E é precisamente na arte poética que o escritor encontra a primeira forma de se afirmar, de se definir sem ludibriar, sem se esconder sob qualquer subterfúgio menos sincero. Essa será uma das características mais fortes de toda a sua escrita. Nos seus discursos narrativos está sempre presente a espontaneidade, a transparência, como se o seu eu se revelasse a si próprio, com toda a lhaneza, ao revelar-se aos outros, sem disfarçar a rudeza das palavras e dos sentimentos, sem omitir o inconveniente, sem saber sofisticar, antes revelando-se, expondo-se até ao íntimo, como se tudo lhe faltasse dizer, como se tudo ainda estivesse por declarar.
Está preparado para receber o juízo mais duro, a condenação mais cáustica. Mas não abdica da irreverência num desesperado impulso de, criando, transformar o mundo que o intimida pelo ódio que respira e lhe provoca toda a agressividade da vítima da agressão, da vítima da humilhação vil e dolorosa. Decide avançar para a batalha da acção e, sem medo, quer criar a consciência de que contentar-se é morrer, não desesperar é acomodar-se ao mal vencedor.
E critica desapiedadamente. É a única arma que lhe resta: mundos novos elevem-se depressa, antes que já nada seja possível, antes que a humanidade se contente com a miséria, com a fome do corpo e do espírito. Na palavra e pela palavra se elevam os ideais que se têm de tornar realidade, que devem ultrapassar os sonhos, porque «Há que dar sem medida como o sol» (poema «Regra», p.112). Como dizia já José Saramago em Poemas Possíveis, «Um novo ser me nasce em cada hora. / O que fui já esqueci. O que serei / Não guardará do ser que sou agora / Senão o cumprimento do que sei». E guardou, guardou até à hora de receber o Prémio Nobel da Literatura em 1998.
Então, o narrador sem cansaço persistiu na guerra de dizer o que no mais íntimo de si guardava ainda: a memória da sua infância a que o avô Jerónimo e a avó Josefa souberam abrir os belos livros das suas almas, das suas sensibilidades, a serem lidas pelo pequeno José nas estrelas, na calma dos crepúsculos, na finura da terra, no saber das árvores e das flores e de cada erva onde encontrava os tesouros maiores da Criação.
Nesses tesouros desenhou a sua vontade férrea. Paradigmaticamente, como se trabalhar o ferro lhe fosse familiar, aprendeu a dar a forma desejada como se de simples grãos de areia se tratasse. Depois, com o ferro a transmutar-se, mais e mais, na sua alma, sem vacilar, foi caminhando e abrindo sulcos sobre as palavras como se fossem a terra arada. A partir de breves versos, ensaiou meditações que podemos descobrir nos discursos narrativos dos seus futuros romances, eivados de dialéctica e labirinto e criados na mágoa e na paz de toda uma nova ordem para o mundo.
Em Poemas Possíveis, o poeta é veemente: «Não há morte. Nem esta pedra é morta, / Nem morto está o fruto que tombou» (p.135). Na imortalidade de escrever, José Saramago é o acto sem fim. E, na metáfora da vida subiu ao Olimpo dos humanos que não vergam e são fiéis aos deuses porque a si próprios são fiéis. Tudo, enquanto existe, é a eternidade e nada morre só porque a lei da morte ainda persiste.
TERESA FERRER PASSOS
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