Os actores estão novamente no palco. Entra o livro, agora muito pequeno, em tamanho normal.
I - Não podemos parar de escrever.
(Acendem uma vela enorme e grossa junto do livro.
Januário escreve
- Mas esquecemos tantas coisas
- Cada vez esquecemos mais coisas
(testando a memória)
- O que era a mão do regador?
- A parte dos furos, por onde saía a água
- De que cor era a flor do tremoço?
- Azul.
- Amarela.
- Não,era azul.
(som de passos de cavalo. Os actores olham-se, agora muito assustados)
- Meu Deus, ele vem aí
- Desta vez é a sério
- Ele vem
- É ele
- Meu Deus
- Já não temos tempo
- Escreve depressa
- Depressa
Januário - Não me lembro do que ia escrever
- Não me lembro
- Era sobre o primo Heitor
- Quem era o primo Heitor?
- Não me lembro de nenhum primo Heitor
- Nunca houve nenhum primo Heitor
- Meu Deus, começamos a esquecer tudo
(som de passos de cavalo, cada vez mais perto. A vela diminui visivelmente de tamanho)
- Depressa
- Depressa
(Falam com nervosismo, quase ao mesmo tempo)
- Lembro-me das festas
- A mais louca de todas
- O casamento de Armindo
- Que deixou para trás a noiva e o vestido
- E fugiu na véspera com uma das convidadas.
(trote de cavalo, vento)
- O meu vestido preferido era lilás
- António jogava as cartas com Roberto e perdia sempre
- O primeiro rádio que tivemos foi em mil novecentos e…
- Roberto queria vender a Casa e Gonçalo discordava, até que um dia -
(passos de cavalo mais fortes, a vela está quase extinta.
Eles diminuem de tamanho como a vela, flectem os joelhos e sentam-se nos calcanhares.
A luz quase se apaga, ouve-se um relincho, aparece por um instante uma cabeça de cavalo de fogo e uma luz muito forte, som fortíssimo de vendaval, as folhas do livro voam pelos ares, o livro desfaz-se. Há um estampido e tudo fica escuro.
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