Entra Badala trazendo um berço pequeno de madeira, com o fundo abaulado, que põe no chão.No berço está uma boneca com uma touca aos folhos. Badala senta-se a fazer meia e vai embalando o berço com o pé. Dentro de um cesto, também no chão, está o novelo, que ela faz rebolar puxando o fio.
Vai falando e de vez em quando levanta-se, anda de um lado para o outro, etc. e depois torna-se a sentar-se, retomando a meia.
Badala
As mulheres não têm corpo. O corpo, roubaram-lho. Deixaram-lhes as rendas, os folhos, os vestidos. Mas o corpo não. Porque não mandam nele. Não mandam nelas.
Isso, eu sei. Porque sempre tive corpo e o usei – embora tivesse pago um alto preço por o ter usado. Eu, que só porque ria e falava fui expulsa desta Casa. Mas nem por isso deixei de falar alto como um sino – não é por isso que me chamam Badala?
Pois é,Tina – mas espera aí que deixei cair as malhas, com a conversa, onde é que eu ia, cinco malhas azuis,cinco malhas brancas, cinco malhas azuis,cinco malhas brancas, espera aí se não caem, que já estou a ver mal com esta luz –
Não fiques presa nesta Casa,Tina. Não faças como as mulheres desta Casa. Olha a tua avó, que levou uma tareia só porque o teu avô pensou que o Gaudêncio lhe fazia a corte,nem precisou de tirar a limpo, bastava a suspeita, olha a tua tia Virita, feita boneca e perdida em sonhos, e a tua tia Carlota, emparvecida à janela. Não faças como elas. Vai procurar o amor onde o houver, e a vida onde ela estiver. Desejo que encontres o amor, porque não se pode ser feliz sem amor, e o maior pecado do mundo é não amar ninguém.
Por isso nunca te vou dizer mal dos homens. São tão bonitos, com aqueles pêlos no peito e nas pernas e aquele riso e aquele cheiro deles.Viver sem homens não tinha graça. A vida tem outro gosto com um homem em casa, o lume fica mais forte e a luz do candeeiro sobe até ao tecto, e o pão tem mais sal e o vinho mais sabor. Dos homens eu sei, porque os amei. Mas só alguns valeram a pena, porque tinham coração e cabeça e com eles é que eu me entendia. Os outros esqueci, mas esses não vou esquecer nunca. Um dia te conto,Tina, um dia te conto.
Mas também tenho que te dizer que há homens que deliram muito e cuidam que as mulheres não podem dar um passo sem lhes pisarem o pauzinho. És muito bonita? Estás a pisar-lhes o pauzinho. És admirada, estimada, dão-te atenção? Estás a pisar-lhes o pauzinho. E assim por diante, o que quer que tu faças. Mas não acredites,Tina, faz da tua vida o que quiseres e não tenhas medo.
Olha o que vem nos livros santos: Cristo defendeu uma mulher adúltera contra um bando de homens em fúria. Mas isso nem dois mil anos depois as pessoas entenderam.
E os da igreja também deliram muito e não atinam melhor solução do que arrancar os pauzinhos, por causa das mulheres. Não admira, assim, que lhes tenham tanta raiva, já que arrancar os pauzinhos é uma coisa tão bruta e má e lhes dá tanta dor e canseira que a vida se lhes gasta nisso e não sobra força nem tempo para o que importava, que era o amor e a justiça.
Como se Cristo os mandasse arrancar os pauzinhos – logo Cristo, que tratava tão bem as mulheres, como vem nos livros santos, que são muito bonitos.
Agora dorme e não acredites nos da igreja, Tina. Eles não sabem ler nos livros santos nem no coração da gente.
Mas tu lê no teu coração e lembra-te que Deus é teu amigo.
Deus também tem mulher e foi com ela que gerou o mundo. É do amor de Deus que vem a vida, como é do pau de Deus que vem a chuva.
E agora dorme ,Tina, está a ficar noite e vejo mal as malhas. Tenho de ir para a cozinha ajudar a Agripina e a Libânia, mas conto-te mais coisas outro dia.
(Badala levanta-se e dá alguns passos de costas para o público. O berço é puxado por um fio para trás da cortina e desaparece.
Badala pára e fica de costas para o público, enquanto se ouvem as vozes dos actores, Inácio, Januário etc :)
- Tanta coisa se passou nesta Casa
- E nas outras casas
- Porque esta não é diferente das demais
- Tanta coisa no tempo em que este Casa pertenceu à família
- Mais de um século
- A História com H maiúsculo envolvendo e atropelando a pequena história
- As Invasões Francesas
- A fuga da Corte para o Brasil
- A regência
- As lutas liberais e miguelistas
- A independência do Brasil
- As modificações sociais
- A saída de casa das mulheres
- Pois é, a emancipação das mulheres
(pequena pausa)
- A Casa desmoronando-se quando os criados desapareceram
- A percepção assombrosa de que eram os criados que mantinham a Casa e que sem criados de nada servia ser Dono
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