(Entra uma barriga descomunal, como a calote de um tenda, que enche toda a parte central do palco. O resto do corpo não é visível. Gritos e berros da parturiente.
À esquerda e direita da barriga gigante desenrolam-se pequenas cenas. Depois de cada uma as personagens saem, ou ficam imóveis no mesmo lugar, em volta da barriga)
Criada da casa, para uma mulher da aldeia
Ai a Dona Maria do Lado, coitadinha, muito tem trabalhado de manhã à noite, apesar da barriga. Não é que seja preciso, com tanto criado e criada em casa.
Mas a culpa também é do Sr. Duarte Augusto. Está sempre a pôr defeitos em tudo e a reclamar que está mal feito.
Mulher
E o senhor Filipe?
Criada
Ninguém o vê, passa a vida na caça.
Mulher
Coitada da Dona Maria do Lado.
Criada
Morre de medo e diz que não queria ter filhos. É verdade que nunca gostou de crianças. Ontem sonhou que lhe nascia um filho com cabeça de cão felpudo.
( Mª do Lado, gritando)
Aiiiiiiii!!!
Criada, sobressaltando-se
Tenho de ir ver o que é preciso. Até logo, vizinha
Mulher
Oxalá ela tenha uma hora pequenina.
DA entrando de rompante
Eugénia! Agripina! Criados! Criadas! Onde está o pessoal desta Casa ? Por causa de uma parida o mundo pára! Todos de cabeça perdida, escada acima, escada abaixo, desaustinados que parecem loucos.
Como se eu não existisse. Ainda me deixam morrer de fome, por incúria.
(Bate com a bengala no chão)
Acudam! Sou o Dono da Casa!
(aparece uma criada espavorida)
Duarte Augusto
Onde estão as fatias paridas?
Criada, tremendo
Não estão prontas, senhor. Só depois do parto Agripina as vai fritar, para a Dona Maria do Lado comer.
Duarte Augusto
Pois que as frite agora. Estou com fome. As fatias paridas são para mim.
(criada sai. Entra outra criada,com uma braseira acesa e um cobertor. DA senta-se numa cadeira, ela põe-lhe o cobertor nos joelhos. Ele adormece.
Outros criados correm, espavoridos,s obem e descem escadas à toa, abrem e fecham portas.)
Maria do Lado, gritando mais alto
Aiiiiiiii!!!!
(De um lado e do outro da barriga gigante aparecem pernas flectidas também gigantes, de pano. Agora o que se vê é o equivalente a um sexo de mulher, de pernas abertas, voltado para o público.)
Maria do Lado,gritando mais alto
Aiiiiiii!
1ª criada
(acendendo velas e lamparinas e ajoelhando diante de um Senhor dos Aflitos; é uma imagem grande, de madeira, com cabelos verdadeiros e um manto vermelho de seda, um bocado desbotado)
Meu Senhor dos Aflitos, ajuda-me nesta aflição. Bem sabes que eu ando contigo nas palminhas e te dou do bom e do melhor. Ele é missas, ele é velas de cera, ele é azeite para a tua lamparina. Não te regateio nada, assim Deus me ajude. Agora vê lá se me deixas ficar mal, Aflitinho da minh´alma. Vem cá abaixo depressa e ajuda ali a Dona a parir .
(olha para o sexo da mulher e depois para o santo e benze-se)
Não precisas de olhar, se não quiseres (vira para o lado a cara do santo). Volta-te para a parede se achas que é falta de respeito a gente deixar-te ver estas coisas. Mas vê se despachas o parto, senão a Dona ainda nos morre aqui.
Maria do Lado, altíssimo
Aiiiiiii!!!
(a partir de agora e ao longo da cena começa a ver-se um orifício no pano que vai alargando até se começar a ver uma cabeça de recém-nascido)
Criada, enervada, para Aflitinho
Despacha-te! Não cuides que ficas aí à boa vida e eu te dou as coisas de mão beijada. Já estás a lamber a beiça por um manto novo, de seda encarnada, mas ficas com o velho que te consolas. Vê lá como te portas, Aflitinho da minh´alma. Faz a Dona parir depressa e ofereço-te três galinhas. Amen.
Maria do Lado
Aiiiiii!!!!
Criado
(acordando a pontapés o Cavês, que dorme na palha)
Acorda, homem, e vai buscar a parteira, que lá a fidalga se fina,
(o Cavês ronca)
berra que nem capado e o crianço não lhe sai das partes.
(dando-lhe outro pontapé)
Deixa a roncadeira e põe-te a andar
(O Cavês levanta-se estremunhado e resmungando; ata as calças com um cordel, põe um capote alentejano e sai com uma lanterna na mão; está chuva e vento)
Cavês
Lá por a fidalga parir aí se põe toda a Casa a gritar aqui d´el-rei e se mandam os criados para aqui e para acolá e é preciso a parteira para lho tirar do cu.
E eu é que vou para a chuva e pró frio e prá puta que o pariu, raio de fidalga, parisse sozinha como as outras, não é por um homem ir por montes e vales que o buraco lhe alarga mais depressa, os fidalgos é que cuidam que com eles é outra coisa e que a merda deles nem cheira mal.
(o buraco abre-se mais)
A minha Domingas que Deus tem é que era mestra em paridelas, punha a um canto as fidalgas todas. Olha lá se me acordava no meio da noite pra lhe ir buscar a parteira. Eu lhe dava a parteira com o pau da vassoura.
Raio de caminho, não se enxerga nem um palmo, raios partam a fidalga, se o crianço lhe está entalado no cu e não entra nem sai, que culpa tenho eu disso?
(bate a uma porta)
Celestina!! Ó Celestiiina!!!
(abre-se um postigo e depois a porta)
Celestina
Credo! Vocemecê com esta chuva inté pode morrer. Inda apanha uma pneumonia. Dispa-se aí ao borralho, que eu vou-lhe buscar umas roupas do meu defunto
(quando volta, ele está nu. Celestina chega por detrás e abraça-o)
Celestina
Credo! Vocemecê morre gelado, homem.
(Leva-o para a cama, enrolam-se um no outro e fazem sexo debaixo dos cobertores.
A chama sobe na lareira.
Depois riem ambos, saindo dos cobertores)
Cavês
Como as coisas são! Tiraram-me da cama no princípio da noite para acudir a uma parida e acabo a noite noutra cama, fazendo um filho. Que cá eu faço sempre um filho.
Celestina benzendo-se
Deus me livre!
Ai a Dona parida! Vamos embora!
Cavês, agarrando-a e rindo
Ainda não. Mais uma vezinha. Só uma.
(Recomeçam, rebolando-se de riso.
Finalmente saem a correr pela direita do palco.)
Celestina, saindo a correr com o Cavês
Ai meu Deus, que a Dona parida inda morre por lá
(o buraco vai abrindo e começa a ver-se a cabeça e parte do corpo do recém-nascido; é uma marionete que abre a boca e chora)
Quando a parteira entra, pela esquerda do palco, já só vai a tempo de aparar a criança para dentro do avental.
Celestina
Nasceu! É um menino!
Criadas
Nasceu! Nasceu!
(o menino chora)
Outras criadas
É um menino! E benza-o Deus, tão bonito!
(o menino chora)
Levam-no a Duarte Augusto
Criadas
Sr Duarte Augusto! É um menino!
Duarte Augusto acorda estremunhado
Um menino? Têm a certeza?
(mostram-lhe o sexo do menino)
Duarte Augusto, espantadíssimo, como se Maria do Lado não pudesse ter feito na vida uma coisa que ele achasse certa
Louvado Deus! É um menino! É meeeesmo!!! …
(depois em tom de comando, peremptório) Tragam-me vinho do Porto e as fatias paridas.
(Trazem-lhe uma travessa cheia de fatias, cálice e garrafa e saem. Ele bebe e come as fatias todas, sozinho. As fatias são comidas inteiras, e ouvem-se os maxilares a estalar, como os de um crocodilo, de cada vez que ele mete uma na boca).
(Duarte Augusto limpa a boca com a mão, senta-se outra vez na cadeira e começa a ressonar com estrondo, assobiando por entre dentes.)
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