TEOLINDA GERSÃO
A CASA DA CABEÇA DE CAVALO
Cena 10

(Entra uma barriga descomunal, como a calote de um tenda, que enche toda a parte central do palco. O resto do corpo não é visível. Gritos e berros da parturiente.

À esquerda e direita da barriga gigante desenrolam-se pequenas cenas. Depois de cada uma as personagens saem, ou ficam imóveis no mesmo lugar, em volta da barriga)  

Criada da casa, para uma mulher da aldeia  

Ai a Dona Maria do Lado, coitadinha, muito tem trabalhado de manhã à noite, apesar da barriga. Não é que seja preciso, com tanto criado e criada em casa.

Mas a culpa também é do Sr. Duarte Augusto. Está sempre a pôr defeitos em tudo e a reclamar que está mal feito.  

Mulher

E o senhor Filipe?  

Criada

Ninguém o vê, passa a vida na caça.  

Mulher

Coitada da Dona Maria do Lado.  

Criada

Morre de medo e diz que não queria ter filhos. É verdade que nunca gostou de crianças. Ontem sonhou que lhe nascia um filho com cabeça de cão felpudo.  

( Mª do Lado, gritando)

Aiiiiiiii!!!  

Criada, sobressaltando-se

Tenho de ir ver o que é preciso. Até logo, vizinha  

Mulher

Oxalá ela tenha uma hora pequenina.  

DA entrando de rompante

Eugénia! Agripina! Criados! Criadas! Onde está o pessoal desta Casa ? Por causa de uma parida o mundo pára! Todos de cabeça perdida, escada acima, escada abaixo, desaustinados que parecem loucos.

Como se eu não existisse. Ainda me deixam morrer de fome, por incúria.  

(Bate com a bengala no chão)  

Acudam! Sou o Dono da Casa!  

(aparece uma criada espavorida)  

Duarte Augusto

Onde estão as fatias paridas?  

Criada, tremendo

Não estão prontas, senhor. Só depois do parto Agripina as vai fritar, para a Dona Maria do Lado comer.  

Duarte Augusto

Pois que as frite agora. Estou com fome. As fatias paridas são para mim.  

(criada sai. Entra outra criada,com uma braseira acesa e um cobertor. DA senta-se numa cadeira, ela põe-lhe o cobertor nos joelhos. Ele adormece.

Outros criados correm, espavoridos,s obem e descem escadas à toa, abrem e fecham portas.)  

Maria do Lado, gritando mais alto

Aiiiiiiii!!!!  

(De um lado e do outro da barriga gigante aparecem pernas flectidas também gigantes, de pano. Agora o que se vê é o equivalente a um sexo de mulher, de pernas abertas, voltado para o público.)  

Maria do Lado,gritando mais alto

Aiiiiiii!  

1ª criada

(acendendo velas e lamparinas e ajoelhando diante de um Senhor dos Aflitos; é uma imagem grande, de madeira, com cabelos verdadeiros e um manto vermelho de seda, um bocado desbotado)  

Meu Senhor dos Aflitos, ajuda-me nesta aflição. Bem sabes que eu ando contigo nas palminhas e te dou do bom e do melhor. Ele é missas, ele é velas de cera, ele é azeite para a tua lamparina. Não te regateio nada, assim Deus me ajude. Agora vê lá se me deixas ficar mal, Aflitinho da minh´alma. Vem cá abaixo depressa e ajuda ali a Dona a parir .  

(olha para o sexo da mulher e depois para o santo e benze-se)  

Não precisas de olhar, se não quiseres (vira para o lado a cara do santo). Volta-te para a parede se achas que é falta de respeito a gente deixar-te ver estas coisas. Mas vê se despachas o parto, senão a Dona ainda nos morre aqui.  

Maria do Lado, altíssimo

Aiiiiiii!!!

(a partir de agora e ao longo da cena começa a ver-se um orifício no pano que vai alargando até se começar a ver uma cabeça de recém-nascido)  

Criada, enervada, para Aflitinho

Despacha-te! Não cuides que ficas aí à boa vida e eu te dou as coisas de mão beijada. Já estás a lamber a beiça por um manto novo, de seda encarnada, mas ficas com o velho que te consolas. Vê lá como te portas, Aflitinho da minh´alma. Faz a Dona parir depressa e ofereço-te três galinhas. Amen.  

Maria do Lado

Aiiiiii!!!!  

Criado

(acordando a pontapés o Cavês, que dorme na palha)  

Acorda, homem, e vai buscar a parteira, que lá a fidalga se fina,

(o Cavês ronca)

berra que nem capado e o crianço não lhe sai das partes.

(dando-lhe outro pontapé)

Deixa a roncadeira e põe-te a andar  

(O Cavês levanta-se estremunhado e resmungando; ata as calças com um cordel, põe um capote alentejano e sai com uma lanterna na mão; está chuva e vento)  

Cavês

Lá por a fidalga parir aí se põe toda a Casa a gritar aqui d´el-rei e se mandam os criados para aqui e para acolá e é preciso a parteira para lho tirar do cu.

E eu é que vou para a chuva e pró frio e prá puta que o pariu, raio de fidalga, parisse sozinha como as outras, não é por um homem ir por montes e vales que o buraco lhe alarga mais depressa, os fidalgos é que cuidam que com eles é outra coisa e que a merda deles nem cheira mal.  

(o buraco abre-se mais)  

A minha Domingas que Deus tem é que era mestra em paridelas, punha a um canto as fidalgas todas. Olha lá se me acordava no meio da noite pra lhe ir buscar a parteira. Eu lhe dava a parteira com o pau da vassoura.

Raio de caminho, não se enxerga nem um palmo, raios partam a fidalga, se o crianço lhe está entalado no cu e não entra nem sai, que culpa tenho eu disso?  

(bate a uma porta)  

Celestina!! Ó Celestiiina!!!  

(abre-se um postigo e depois a porta)  

Celestina

Credo! Vocemecê com esta chuva inté pode morrer. Inda apanha uma pneumonia. Dispa-se aí ao borralho, que eu vou-lhe buscar umas roupas do meu defunto

(quando volta, ele está nu. Celestina chega por detrás e abraça-o)  

Celestina

Credo! Vocemecê morre gelado, homem.  

(Leva-o para a cama, enrolam-se um no outro e fazem sexo debaixo dos cobertores.

A chama sobe na lareira.

Depois riem ambos, saindo dos cobertores)  

Cavês

Como as coisas são! Tiraram-me da cama no princípio da noite para acudir a uma parida e acabo a noite noutra cama, fazendo um filho. Que cá eu faço sempre um filho.  

Celestina benzendo-se

Deus me livre!

Ai a Dona parida! Vamos embora!  

Cavês, agarrando-a e rindo

Ainda não. Mais uma vezinha. Só uma.  

(Recomeçam, rebolando-se de riso.

Finalmente saem a correr pela direita do palco.)  

Celestina, saindo a correr com o Cavês

Ai meu Deus, que a Dona parida inda morre por lá  

(o buraco vai abrindo e começa a ver-se a cabeça e parte do corpo do recém-nascido; é uma marionete que abre a boca e chora)  

Quando a parteira entra, pela esquerda do palco, já só vai a tempo de aparar a criança para dentro do avental.  

Celestina

Nasceu! É um menino!  

Criadas

Nasceu! Nasceu!  

(o menino chora)  

Outras criadas

É um menino! E benza-o Deus, tão bonito!  

(o menino chora)

Levam-no a Duarte Augusto  

Criadas

Sr Duarte Augusto! É um menino!  

Duarte Augusto acorda estremunhado

Um menino? Têm a certeza?  

(mostram-lhe o sexo do menino)  

Duarte Augusto, espantadíssimo, como se Maria do Lado não pudesse ter feito na vida uma coisa que ele achasse certa

Louvado Deus! É um menino! É meeeesmo!!! …

(depois em tom de comando, peremptório) Tragam-me vinho do Porto e as fatias paridas.  

(Trazem-lhe uma travessa cheia de fatias, cálice e garrafa e saem. Ele bebe e come as fatias todas, sozinho. As fatias são comidas inteiras, e ouvem-se os maxilares a estalar, como os de um crocodilo, de cada vez que ele mete uma na boca).  

(Duarte Augusto limpa a boca com a mão, senta-se outra vez na cadeira e começa a ressonar com estrondo, assobiando por entre dentes.)

Teolinda Gersão nasceu em Coimbra,estudou Germanística e Anglística nas Universidades de Coimbra, Tuebingen e Berlim, foi Leitora de Português na Universidade Técnica de Berlim, docente na Faculdade de Letras de Lisboa e posteriormente professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa,onde ensinou Literatura Alemã e Literatura Comparada até 1995.A partir dessa data passou a dedicar-se exclusivamente à literatura.

Além da permanência de três anos na Alemanha viveu dois anos em São Paulo, Brasil (reflexos dessa estada surgem em alguns textos de Os Guarda-Chuvas Cintilantes, 1984), e conheceu Moçambique, cuja capital, então Lourenço Marques, é o lugar onde decorre o romance de 1997 A Árvore das Palavras.

Escritora residente na Universidade de Berkeley em Fevereiro e Março de 2004.

LIVROS PUBLICADOS
(Publicações Dom Quixote, Lisboa)


O SILÊNCIO (Romance),1981, 4ª edição 1995

PAISAGEM COM MULHER E MAR AO FUNDO (Romance),1992,4ª edição 1996.

HISTÓRIA DO HOMEM NA GAIOLA E DO PÁSSARO ENCARNADO (literatura infantil),1982 (esgotado)
OS GUARDA-CHUVAS CINTILANTES (Diário Ficcional) 1984,2ªedição 1997

O CAVALO DE SOL (Romance),1989 ; edição Dom Quixote-Planeta 2001

A CASA DA CABEÇA DE CAVALO (Romance),1995,2ª edição 1996 ;
edição em Braille,1999


A ÁRVORE DAS PALAVRAS (Romance),1997
edição especial,com 50 ilustrações de Maia, 2000 ; 2ª edição, 2001
edição Dom Quixote- Círculo de Leitores 2001
edição Dom Quixote-Visão 2003


OS TECLADOS (Narrativa),1999 ,2ªedição 2001;edição em Braille,2003

OS ANJOS (Narrativa) , 1ª e 2ª edição 2000

HISTÓRIAS DE VER E ANDAR (contos) ,1ª e 2ª edição 2002

O MENSAGEIRO E OUTRAS HISTÓRIAS COM ANJOS (contos) 2003

Uma versão teatral de OS TECLADOS foi representada no Centro Cultural de Belém em 2001,com encenação de encenação de Jorge Listopad.

Uma versão teatral de
OS ANJOS foi representada em 2003 pelo grupo de teatro O Bando,com encenação de João Brites.

Uma versão teatral em língua romena de A CASA DA CABEÇA DE CAVALO foi representada em Bucareste em Abril de 2004.

Fonte: http://www.teolinda-gersao.com/bibiografia.html