TEOLINDA GERSÃO
A CASA DA CABEÇA DE CAVALO
Cena 9

(entra Virita, que não a vê)

Badala

Aluada de todo,nem vês um palmo adiante do nariz.  

Virita, distraída

Hãããhn???  

Badala

Precisas de dar com cabeça na parede, para ver se acordas. Nem calculas as ganas que tenho de te sacudir.

Virita

Hããããhn??

Badala

Casa-te com outro, menina. O que tu queres é um homem a sério, e que seja teu.

Virita

Mas é só dele que eu gosto. De Filipe.  

Badala

Não gostas nada. É tudo teimosia, orgulho e doidice. Marras nele que nem cabra em cepo só porque se casou com a outra, se fosse solteiro nem para ele olhavas. E além do mais, ele não te servia, nem para enfeite.  

Virita

Eu é que sei se não servia. Se me tivessem deixado -  

Badala

Pois era. Mas as coisas são o que são e não vale a pena a gente fingir que são outras. Pois para o tirares da cabeça é que eu te tenho aberto a porta. Porque essas coisas,quanto menos acontecem, mais ficam dentro a roer.  

Virita

(suspira) Jesus  

(Duarte Augusto – gigantone - atravessa com muita pressa a varanda, desabotoando as calças, correndo para a “casinha”. Em corte, vê-se ele baixar as calças, sentar-se no buraco da sanita.)  

Badala

Não te ponhas com ai Jasus. Quatro nalgas são dois cus e agora tens é de andar para a frente.  

(ruído de urina e fezes caindo, vêem-se cair no cubículo abaixo da casinha. V e B não dão conta)  

Virita

Mas mesmo que eu quisesse, nenhum homem me ia aceitar, agora que fui com Filipe para a cama.  

(Duarte Augusto levanta-se de um salto, na casinha. Durante todo resto da cena ele vai alternadamente sentar-se para se aliviar de necessidades fisiológicas – que de vez em quando vão caindo para baixo, ouvindo-se também por 2 vezes sons de gases intestinais - e para continuar a ouvir a conversa, e levantar-se, gesticular, arrepelar os cabelos, levantar os braços ao céu em desespero e fúria, etc. etc. A cena deve resultar muito cómica)  

Badala

Isso são desculpas para ficares na tua. Pois se os homens são assim, dá-lhes a gente a volta. Que para limparem em nós os pés, não servimos. Olha lá a Dona Isabela, que essa não era burra  

Virita

Isso são histórias  

Badala

Quais histórias, sua doida, verdadinha pura. Dona Isabela Bela estava prometida a Dom Beltrão Pantaleão, que era feio como a noite e muito velho. Mas ela tomou-se de amores por Dom Crispim Ritepramim e dos amores à cama foi o salto de uma cobra.  

(Duarte Augusto salta)  

Badala

Na véspera do casamento ela chorava : logo na primeira noite Dom Beltrão vai descobrir tudo. Não se aflija, menina, disse-lhe então a Marcolina Fina, que por ser velha sabia muito. Aqui tem um saquinho, feito de bexiga de porco, cosido com linha e cheio de sangue de galinha. A menina mete-o em certo sítio que eu cá sai  

(Duarte Augusto salta)  

E quando for ocasião espeta-lhe um gancho de cabelo e depois de amanhã Dom Beltrão Pantaleão vai orgulhar-se de mostrar o lençol a todo o reino e a mais cem léguas em redor.  

(Duarte Augusto salta)  

Dona Isabela assim fez e passado tempo esqueceu-se de Dom Crispim Ritepramim, que também já se tinha esquecido dela, e encontrou Dom Gaifás e Dom Gaifós Ritepranós. Eram novos e ricos e bem parecidos e ela logo se riu para os dois e daí em diante para todos os que lhe agradavam  

(Duarte Augusto salta)  

E tanto com eles ria e folgava que Dom Beltrão Pantaleão teve 14 filhos, todos machos,  

(Duarte Augusto salta)  

pois Dona Isabela ainda no dia em que ele fez 90 anos lhe deu mais outro herdeiro, que na verdade era de Dom Valente Andapráfrente, o que não fez mal a ninguém, antes encheu de alegria toda a gente.  

(Duarte Augusto salta. Sai da casinha, meio despido, ainda vestindo e abotoando as calças, à pressa; bate a porta com um pontapé e proclama do alto da varanda para Badala:)  

Duarte Augusto

A senhora está despedida. Nunca mais se atreva a entrar nesta Casa.

(Para Virita, que treme de susto)

E a senhora, vá ter comigo ao salão.  

(Na varanda, aparecem Virita, Maria do Lado e Carlota, em marionetes. Dizem adeus e choram.

Em baixo, Badala chora também e afasta-se, arrastando um baú.)  

(Enquanto dizem adeus, vozes de Inácio, Januário etc.)  

  • Assim, Badala não estava na Casa, quando nasceu o primeiro filho de Mª do Lado
  • Voltaria depois da morte de Duarte Augusto
  • E seria ela a criar os outros : Antónia, que morreria menina, Tina e Eugénio.
  • Mas Badala não estava na Casa quando nasceu Francisco.

Teolinda Gersão nasceu em Coimbra, estudou Germanística e Anglística nas Universidades de Coimbra, Tuebingen e Berlim, foi Leitora de Português na Universidade Técnica de Berlim, docente na Faculdade de Letras de Lisboa e posteriormente professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa,onde ensinou Literatura Alemã e Literatura Comparada até 1995.A partir dessa data passou a dedicar-se exclusivamente à literatura.

Além da permanência de três anos na Alemanha viveu dois anos em São Paulo, Brasil (reflexos dessa estada surgem em alguns textos de Os Guarda-Chuvas Cintilantes, 1984), e conheceu Moçambique, cuja capital, então Lourenço Marques, é o lugar onde decorre o romance de 1997 A Árvore das Palavras.

Escritora residente na Universidade de Berkeley em Fevereiro e Março de 2004.

LIVROS PUBLICADOS
(Publicações Dom Quixote, Lisboa)


O SILÊNCIO (Romance),1981, 4ª edição 1995

PAISAGEM COM MULHER E MAR AO FUNDO (Romance),1992,4ª edição 1996.

HISTÓRIA DO HOMEM NA GAIOLA E DO PÁSSARO ENCARNADO (literatura infantil),1982 (esgotado)
OS GUARDA-CHUVAS CINTILANTES (Diário Ficcional) 1984,2ªedição 1997

O CAVALO DE SOL (Romance),1989 ; edição Dom Quixote-Planeta 2001

A CASA DA CABEÇA DE CAVALO (Romance),1995,2ª edição 1996 ;
edição em Braille,1999


A ÁRVORE DAS PALAVRAS (Romance),1997
edição especial,com 50 ilustrações de Maia, 2000 ; 2ª edição, 2001
edição Dom Quixote- Círculo de Leitores 2001
edição Dom Quixote-Visão 2003


OS TECLADOS (Narrativa),1999 ,2ªedição 2001;edição em Braille,2003

OS ANJOS (Narrativa) , 1ª e 2ª edição 2000

HISTÓRIAS DE VER E ANDAR (contos) ,1ª e 2ª edição 2002

O MENSAGEIRO E OUTRAS HISTÓRIAS COM ANJOS (contos) 2003

Uma versão teatral de OS TECLADOS foi representada no Centro Cultural de Belém em 2001,com encenação de encenação de Jorge Listopad.

Uma versão teatral de
OS ANJOS foi representada em 2003 pelo grupo de teatro O Bando,com encenação de João Brites.

Uma versão teatral em língua romena de A CASA DA CABEÇA DE CAVALO foi representada em Bucareste em Abril de 2004.

Fonte: http://www.teolinda-gersao.com/bibiografia.html