(entra de rompante Badala, soltando uma enorme gargalhada.Traz na mão pequenos vultos confusos que pousa num canto e só depois se percebe que são marionetes vestidas de Virita, Carlota e Maria do Lado)
Badala.
É preciso abrir as portas desta Casa, ou elas morrem sufocadas. As meninas. Ou, de tanto estarem presas, endoidecem.
(Desce do tecto um cenário com um corte da Casa, em que se vê uma varanda de madeira assente em estacas e um pequeno lance de uns cinco degraus que desce para o jardim onde Badala se encontra. Ao fundo da varando fica um cubículo, que depois se percebe que é a retrete, ou “casinha”. Em corte, vê-se uma prancha de madeira que, como depois se nota, tem um buraco no meio e funciona como sanita. Quando alguém lá se senta, os excrementos caem para baixo, para um cubículo igual, ao nível do jardim).
Badala
Não sabem rir, as meninas.
(gargalhada)
Fica a gente leve, depois de rir. Capaz de desafiar o mundo.
(enquanto ela ri, a Casa treme. Ruído de janelas estremecendo, de portas oscilando nos gonzos, de louça e vidros tilintando).
Eu bem lhes ensinei,desde pequenas:
Põe a mão na anca. Deita para fora a cabeça. Enche o peito de ar, a garganta, a boca, a barriga. Enche, enche. Agora solta, larga de uma vez. Como se estivesse um cão ou uma cobra lá dentro. Vomita, deita fora, atira para longe. Assim.
(Pega nas marionetes e põe-as “vivas”, como se as ensinasse a rir. Pousa-as, e elas desmoronam-se.)
Mas elas riem sempre tão mal, as meninas. Feitas de louça, sentadas nos banquinhos.
(Senta as marionetes em banquinhos)
(Suspira). Só mesmo Deus descendo dos céus e mudando as coisas. Porque elas por si não fazem nada. Ali estão, sentadas nas cadeira. As meninas.Têm vergonha de rir, aquelas sonsas.
Se ao menos levantassem a saia, deixassem cair um sapato. Dissessem um palavrão, se espreguiçassem, no meio da sala. Se arrotassem, aproveitando um silêncio, uma pausa na conversa. Zás (barulho de instrumento de sopro, imitando um arroto). Um arroto como um pano rasgado, um buraco na cortina.
Mas elas não. Bonecas, que só ganham vida quando alguém as sacode.
(põe as marionetes “vivas” por um instante e larga-as.)
Eu sacudo-as muito mas não adianta, ficam logo outra vez de louça. E quanto mais adultas pior. Em crianças ainda roubavam açúcar, espreitavam pela janela do curral quando se metiam lá dentro os porcos de cobrição, espreitavam pelas frinchas quando ia alguém à “casinha”, cantavam alto : da botica a Mirandela - espeta o cu numa sovela - da botica a Mirandela – espeta o cu numa sovela.
Mas depois esqueceram-se de tudo, sentaram-se na sala e nunca mais se riram.Tal é o peso da Casa e das leis do mundo.
E assim endoidecem. Já não espero nada de Maria do Lado, sempre a correr pela Casa à procura de tarefa atrás de tarefa, nem de Carlota, esperando dia e noite à janela. E agora também Virita endoidece. Aquela ideia de Filipe dá-lhe volta ao juízo. Anda a dormir em pé e não acorda.
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