(Aparece a Casa, em cartão, mas agora com dois metros de altura ou maior.
Entra Gaudêncio, com uma coisa na mão, coberta por um pano. Levanta o pano e vê-se uma imagem da Virgem, ricamente vestida, com um manto azul bordado a ouro, resplendor etc. Só não lhe vê a cara nem os pés e as mãos, sumidos no fundo do manto.
Gaudêncio sobe acima de um escadote, põe a Virgem em cima do telhado, torna a descer e desaparece.
O sino começa a bater as trindades.
Os actores (e outros, que entram na altura) fazem o papel de pessoas da aldeia presenciando a cena. Soltam exclamações de espanto, benzem-se, ajoelham, levantam as mãos.
- Virgem santíssima!
- Nossa Senhora!
- Mãe do céu bendita!
- Nossa Senhora apareceu!
- Milagre!
- Milagre!
Chegam mais personagens, com terços e velas acesas.
- Depressa!
- Vão chamar o senhor padre!
- Milagre! Milagre!
- Nossa Senhora apareceu!
Chega o padre e o sacristão. Ouvem-se cânticos religiosos e música de igreja.
Todos – Milagre! Milagre! A Virgem apareceu!
A aparição esvoaça, flutua, quase dança, muito leve, em cima do telhado, de um lado para o outro. Por vezes chega-se tanto à beira que parece cair, depois desliza rápida para o ponto mais alto do telhado outra vez.
O povo reza, canta, murmura ahahahah… em êxtase.
Até que se vê, no cimo do telhado, um rabo sair de debaixo do manto e surgir um focinho de macaco.Tira o manto e coça a cabeça.
Vozes de escândalo:
- É o macaco! É o macaco!
- Não é Nossa Senhora! Fomos enganados!
- É o macaco dos saltimbancos!
- Fizeram pouco da gente!
- Foi o Gaudêncio!
- Agarrem o Gaudêncio!
- Prendam o Gaudêncio!
- Filho da puta!
- Matem o Gaudêncio!
Correm atrás dele, com tochas acesas, saem do palco.
Aparece no chão do palco um navio muito pequeno, com Gaudêncio (boneco) dentro. O navio atravessa o palco, Gaudêncio diz adeus, no convés, agitando o chapéu.
Carlota diz adeus da margem, acenando com um lenço branco a que vai limpando as lágrimas.
O barco desaparece. Carlota senta-se e espera.
(Vozes dos actores, Inácio, Januário etc.:)
- Gaudêncio tinha intenção de voltar e não teve culpa de esquecer Carlota
- No Brasil as mulheres tinham a pele tão quente que faziam as de cá parecerem frias
- Com tanto mar pelo meio o vulto de Carlota foi ficando cada vez mais longe. Não foi culpa de Gaudêncio. A vida é assim.
Carlota (falando para si mesma, como hipnotizada, ou sonâmbula)
O desespero da ausência. O desejo insatisfeito. O corpo ardendo no vazio.
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