TEOLINDA GERSÃO
A CASA DA CABEÇA DE CAVALO
Cena 3

(Carlota e Umbelina passeiam, com sombrinhas abertas. Gaudêncio passa, tira o chapéu diante de Carlota, que deixa cair uma luva. Ele apanha a luva e devolve-lha, juntamente com um bilhetinho (um papel dobrado, suficiente grande para ser muito visível.) Carlota esconde-o, de modo algo desastrado, na bolsinha.

Carlota afasta-se, em ar de passeio. Gaudêncio segue-a. Saem ambos e depois Umbelina).

(Reentra Umbelina – boneca, ou actriz simulando ser uma boneca - com um vestido exactamente igual ao da personagem. É uma figura mirrada e sumida, que durante parte da cena seguinte se comporta como um boneco “sempre-em-pé”, tornando a endireitar-se depois de cada paulada de Duarte Augusto. Debate-se, põe as mãos diante da cara, grita, geme, tenta falar mas não consegue, só diz “eu não eu não”. Finalmente começa a não conseguir levantar-se.

Entra Duarte Augusto, com cabeça ou cara de gigantone, brandindo a bengala e batendo-lhe com ela.

A cena é deliberadamente exagerada e grotesca, de modo a tornar-se cómica)

Duarte August, batendo com a bengala em Umbelina –

Não é a mim que alguém vai encornar! A mim não! Pois a senhora volte para de onde veio! Mas antes disso vou parti-la em migalhas! Vou moê-la na mó e fazê-la em farinha! E deito a farinha às cabras e aos porcos! Ou nem a esses, porque até os bichos morriam de peçonha, com tanta malvadez!

As mulheres são perversas e falsas, e nem os ossos e a pele se aproveitam! Nem deitando-lhes cal viva se mata o veneno delas! Nem atiradas aos cães! As mulheres só no fogo do inferno, e é para lá que a senhora há-de ir! E sem demora! No fogo do inferno é que é o seu lugar !

(Vêm todos a correr tirar-lhe a bengala, agarrar DA e Umbelina e pôr-se entre ambos. Falam ao mesmo tempo, as vozes atropelam-se. Sobressai o vulto de Carlota,muito aflita)

  • Mas não é Umbelina que ele quer, é Carlota!
  • Não é Umbelina!
  • Gaudêncio namora Carlota !
  • Namora Carlota!

DA, estupefacto, esbugalhando os olhos – Carlota ?

Todos – Siiiiiiiim!!!

DA, com o ar mais estúpido do mundo – Pois não namora a minha mulher Umbelina?

Todos – Nããããããoooo!!!!

DA, sem poder acreditar – Mas não foi Umbelina que ele cumprimentou, à saída da missa? Não lhe tirou o chapéu sem quase olhar Carlota, pelo menos que eu visse ? Não foi a Umbelina que ele tirou o chapéu e disse : Os meus respeitos, minha senhora? E logo hoje, que ela foi à missa de vestido novo?Tudo isso era para namorar Carlota?

Todos – Siiiiiiiiiimm!!!

DA, caindo em si, furioso com a figura que fez, e descarregando a sua vergonha e fúria em Gaudêncio, voltando-se para este

O senhor é uma besta! Um bruto! O senhor é o autor moral, e bem vistas as coisas também o autor material, de tudo o que aconteceu! Fique sabendo! Foi o senhor que desancou Umbelina! Não fui eu!

Pois para seu castigo não torna a ver Carlota! Vá para o inferno ! Vá para o Brasil tirar o chapéu às senhoras! Isso mesmo,o senhor não tem onde cair morto, vá para o Brasil! Volte rico e honrado e depois se vê se merece Carlota. Desapareça!

A luz muda.

Vozes dos actores, Inácio, Januário etc.

- A partir daí, Carlota esperava à janela.

(pausa breve)

- Mas esquecemo-nos de alguns factos

- O atrevimento de Gaudêncio

- A confusão que ele armou antes de partir

Teolinda Gersão nasceu em Coimbra, estudou Germanística e Anglística nas Universidades de Coimbra, Tuebingen e Berlim, foi Leitora de Português na Universidade Técnica de Berlim, docente na Faculdade de Letras de Lisboa e posteriormente professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa,onde ensinou Literatura Alemã e Literatura Comparada até 1995.A partir dessa data passou a dedicar-se exclusivamente à literatura.

Além da permanência de três anos na Alemanha viveu dois anos em São Paulo, Brasil (reflexos dessa estada surgem em alguns textos de Os Guarda-Chuvas Cintilantes, 1984), e conheceu Moçambique, cuja capital, então Lourenço Marques, é o lugar onde decorre o romance de 1997 A Árvore das Palavras.

Escritora residente na Universidade de Berkeley em Fevereiro e Março de 2004.

LIVROS PUBLICADOS
(Publicações Dom Quixote, Lisboa)


O SILÊNCIO (Romance),1981, 4ª edição 1995

PAISAGEM COM MULHER E MAR AO FUNDO (Romance),1992,4ª edição 1996.

HISTÓRIA DO HOMEM NA GAIOLA E DO PÁSSARO ENCARNADO (literatura infantil),1982 (esgotado)
OS GUARDA-CHUVAS CINTILANTES (Diário Ficcional) 1984,2ªedição 1997

O CAVALO DE SOL (Romance),1989 ; edição Dom Quixote-Planeta 2001

A CASA DA CABEÇA DE CAVALO (Romance),1995,2ª edição 1996 ;
edição em Braille,1999


A ÁRVORE DAS PALAVRAS (Romance),1997
edição especial,com 50 ilustrações de Maia, 2000 ; 2ª edição, 2001
edição Dom Quixote- Círculo de Leitores 2001
edição Dom Quixote-Visão 2003


OS TECLADOS (Narrativa),1999 ,2ªedição 2001;edição em Braille,2003

OS ANJOS (Narrativa) , 1ª e 2ª edição 2000

HISTÓRIAS DE VER E ANDAR (contos) ,1ª e 2ª edição 2002

O MENSAGEIRO E OUTRAS HISTÓRIAS COM ANJOS (contos) 2003

Uma versão teatral de OS TECLADOS foi representada no Centro Cultural de Belém em 2001,com encenação de encenação de Jorge Listopad.

Uma versão teatral de
OS ANJOS foi representada em 2003 pelo grupo de teatro O Bando,com encenação de João Brites.

Uma versão teatral em língua romena de A CASA DA CABEÇA DE CAVALO foi representada em Bucareste em Abril de 2004.

Fonte: http://www.teolinda-gersao.com/bibiografia.html