Coeur sans frein/Coração à solta
(2012) da poeta brasileira Astrid Cabral, acaba de ser lançado pela
editora Les Arêtes, La Rochelle, França, em edição bilíngue traduzida pela
autora, e é um acontecimento não só para a atualidade literária, mas para
a própria literatura. Astrid Cabral pertence àquela linhagem de poetas
tocados pelo fogo e também pelo segredo, por aquilo que se condensa no
íntimo sem pressa, confiante de seu talismã: o amor.
Este segredo, oriundo da natureza de sua Manaus, em meio à floresta
e às margens do rio Amazonas, habitou o esplendor exuberante do corpo e
conheceu a maturidade incomum,
convenções e longos silêncios, o estigma da mulher, a tenacidade do
“arcaico feminino” (“Coração/mar”).
Astrid Cabral não publicou mais que uma dúzia de livros, mas os que
surgiram foram para ficar e dizer a todos que este amor “A tudo desafia/ e
mesmo sem troca/ tudo lhe brota. /Medra entre a falta de esperança/ e a
léguas do desespero. /Forte até a morte./ Inteiro.” (“Amor cacto”). Sim, a
morte total, absoluta, mas também o amor íntegro, o amor com o qual não se
negocia nunca. Os versos de Astrid são com frequência polissêmicos, curtos
mas variáveis, poderosos e delicados. De claro entendimento, usufruem do
prazer e da felicidade, mas longe do transbordamento. Caminham com pés de
chumbo.
Neste livro ela reuniu vários poemas já publicados em português e
alguns inéditos. Não se trata de uma antologia tradicional, pois se
organiza dentro de uma linha mais emocional que temporal. São as emoções
mais tocantes de seu percurso vital,
estético e espiritual que nos
conduzem do começo ao fim, porque este livro foi escrito sobretudo para o
“renome do amor”, retomando-se um título do poeta peruano César Moro, e
para confirmar que nada se perdeu enquanto o amor foi nosso mestre.
Os primeiros poemas trazem a magia do que vem da terra, das raízes,
das plantas e do mais elementar do corpo, e assim sendo a poesia, o amor,
a natureza e os estados primitivos se misturam com a força selvagem dos
minerais, das entranhas, dos dilúvios e incêndios, a poeta podendo dizer
sem rodeios: “Ao lixo com os frios raciocínios” (“Revolução”). Os amantes
são “animais sem coleira/ juntos acendemos o dia/ em cachoeiras de luz/
com as centelhas que nós/ seres primitivos forjamos/ com a pedra lascada/
dos sexos vivos.” (“O fogo”). São poemas do amor feliz, da fusão e
exaltação dos corpos, mas que guardam seu mistério e se mantêm em sua
certeza e em seu desabrochar. Como diria Astrid, são ao mesmo tempo de
amor “Lírico e lúbrico”.
Nesses primeiros poemas surge pouco delineado o tema religioso: o
jardim celeste em oposição ao jardim terrestre, onde os amantes sentem
prazer ao comer a maçã (“Paraíso”) e em “União”, o começo da criação é a
carne e não o verbo: “A carne, palavra prima”, a carne “glória divina”. Em
“Milagre”, é a surpresa, o maravilhar-se do corpo diante da luz: “e a
noite se fez dia no horizonte do corpo.” Uma religião que se contradiz
pela fé na natureza e no prazer. No clímax deste amor, o fogo e a luz se
fundem num único, surpreendente e preciso “lance de luz” (“Clímax”)
Nos poemas subsequentes, Astrid enfrenta um dos assuntos mais
elaborados de sua obra, a revolta contra o destino cotidiano da muher: o
lar, lugar maravilhoso que pouco a pouco se torna uma prisão,
principalmete para a mulher poeta. Todos esses poemas impressionam porque
apresentam em rigorosa exploração, a encenação e o balanço de uma vida
partida ao meio entre as exigências práticas e morais do cotidiano e a
necessidade de não se anular. Com frescor, franqueza e precisão, quem sabe
por que a dor “requer fino trato” (“A companheira”), a mulher poeta se
libera da carga, limpa o rosto, disseca a vida comum. Munida de fina
ironia, ela reflete sobre o tempo passado, a fragilidade do amor, o
cansaço, sobre “Deixar a ferida/ virar cicatriz”, ter “o sorriso
fraturado” (“Degraus no inferno”). Essa maneira de reagir, passo a passo,
segura de si mesma, nos diz que o segredo foi preservado, o amor resiste e
transforma o mundo: “O nada não é perdição/ mas estado de graça”
(“Desastres do amor”).
Lá pelo fim do livro, a revolta contra o tempo e a velhice. As
lembranças, a ausência e a morte se fazem presentes. Todos esses temas se
desdobram numa escrita plena de comparações, jogos de paralelismos
(“Carestia”), com grande riqueza de imagens e de metáforas como: “No breu
da noite/ vindo de outro mundo/ o morcego empurra-me/ em profundo poço”
(“Crime entre lençóis”). A poesia de Astrid Cabral não abandona jamais nem
imagem nem ritmo, parece prazerosamente protegida aqui e ali em meio a
rimas e estrofes. Sua poesia possui o rigor e a leveza da música.
Para encerrar, ao ler suas páginas, apodera-se de nós uma emoção
que nos reconcilia com a vida e o prazer, já que a voz de Astrid Cabral se
regozija, ela mesma, com sua feminilidade, exposta sem constrangimento,
orgulhosa de pertencer ao “arcaico feminino” dos elementos e de participar
da herança daquilo que, segundo César Moro,
as tochas de lenha resinosa clareiam “Em nome do mais velho amor”.
Sylvia Miranda Madri, outubro de 2012
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Sylvia Miranda Lévano (Lima, 1966) é Doutora em Literatura
Hispano-Americana pela Universidade Complutense de Madri. Suas pesquisas
tratam do imaginário urbano e da poesia peruana de vanguarda, em
particular da obra dos poetas Carlos Oquendo de Amat, César Moro e Emílio
Westphalen. Publicou ensaios e artigos em revistas especializadas. Entre
suas publicações figuram os livros de poemas:
Como todos anduve en el invierno,
Lima, 1990; Zita y otros poemas,
Madri, Catriel, 2001 (Premio Tomás Luis de Vitoria, Salamanca, 1994) e
Poemas del tigre y el mar,
Madri, Centro de Arte Moderno, 2004 (Plaquete ilustrada por água-forte de
Sylvain Mâlet). Tem poemas incluídos em várias antologias da poesia
peruana e ibero-americana. Memorias
de Manú obteve o Primeiro Prêmio para novela do Banco Central de
Reserva do Peru, em 1996. Entre suas últimas publicações figuram o ensaio
Caminantes por una tierra baldía.
T.S. Eilot e E.A.Westphalen; una lectura transtextual de las ínsulas
extrañas, Madri, Centro de Editores, e a coleção de relatos
Las mañanas sagradas, Madri,
Catriel, ambos de 2011.
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