Políbio Alves, respeitáveis damas e nobres senhores, está por aqui com O que resta dos mortos.
Desde que os fantasmas ganharam o corpo e a textura das palavras e se transmutaram em habitantes do papel, em 1983, o autor passou a lidar com eles na mágica convivência literária de amor e ódio, de aceitação e recusa, de confirmação e negação, no permanente jogo de velar e revelar. Dessa experiência nasceu a segunda edição, revista e modificada (João Pessoa: FCJA; Ed. Universitária/UFPB, 2003).
Daquele autor que do Rio de Janeiro retornava a João Pessoa (sua província natal), na década de 80 do século passado, surgiu um escritor traduzido em Cuba, estudado na Universidade Livre de Berlim, premiado na Itália, depois de participar de duas antologias publicadas em Trento. Nesse meio tempo, seu longo poema Varadouro foi retomado por Jomard Muniz de Britto e resultou no vídeo Anjos e demônios do Varadouro.
E são, justamente, anjos e demônios que o leitor encontra nesse “inventário” d’O que resta dos mortos, e que insistem em permanecer bem vivos em cada página de Políbio.
Íntimo dos desvãos da cidade de N. S. das Neves, o autor conduz o leitor através do labirinto de sordidez, de sonhos, de violência, de luxúria, de abandono e de solidão dos moradores da Ilha do Bispo e do Varadouro, com uma passagem por Várzea Nova. Não é o traçado urbano o que mais interessa. O mapa que se expõe é o da experiência cotidiana das criaturas. São criaturas confinadas em seus delírios e desesperos, no crime e na inocência, que circulam nas veias e artérias da criação de Políbio. Nessas páginas, o naturalismo cultiva o escatológico.
Estabelecendo cumplicidade com o receptor, o livro se abre com “Em segredo”. Em “Notas à margem”, a personalidade que assume a voz das narrativas divide com o leitor seu pacto literário. Fica clara sua relação com o Varadouro, seu território de eleição, habitado por seus fantasmas (“Vivos. Mortos”). Num texto que pode ser experimentado como veloz, pois se constrói de períodos simples e de frases nominais, subvertendo mesmo as regras da gramática, essa voz que escreve contempla criticamente as contradições e as hipocrisias provincianas e paroquiais de um mundo de horizontes estreitos. Longe de qualquer sugestão de tratado sociológico, a enunciação e o enunciado têm o mesmo sujeito. Portanto, o discurso confessional estabelece o ponto de vista do eu, que quer conduzir o visitante pelos becos e casarões de um mundo à margem da sociedade dita bem constituída. Muitos os cubículos sórdidos, marcados pelo odor de suor, de esperma e de sangue, que serão escancarados. Quem não tiver coragem ou tenha delicado olfato não deve ler/entrar; melhor é fazer de conta que a vida na cidade anda sempre nos trilhos da ordem e das boas maneiras.
O pórtico do livro, com as esclarecedoras “Notas à margem”, é uma armadilha da literatura de Políbio: avançando, o leitor torna-se partícipe da revelação. É impossível sair indiferente, depois de cumprido o percurso das páginas. As dores das criaturas de Políbio são dores universais: consomem os desesperados e os sonhadores de todos os quadrantes.
Quando saiu a primeira edição deste livro (1983), um crítico notou “o desprezo pelo enredo como suporte narrativo”. Acontece que a pressa da vida não permite a Políbio a leveza de alinhar episódios e estabelecer planos e tempos. A vida presente, os homens presentes (como disse o poeta) pulsam e exigem a voz que os presentifique a nossos olhos. Por isso, o autor esclarece: “Busco, no instante em que estou vivendo, o despudor matinal que habita a escrita. Desassossegando-a, de pronto.” Estrangeiro em sua própria aldeia, ele sabe que “fazer literatura por essas bandas é sobreviver a essa realidade que nos cerca e nos agride.” Dizendo-se “artífice prático”, confessa que “no espaço da folha em branco, me [se] planto[a] por inteiro.” Assim Políbio realiza seu projeto poético: vida e literatura são experiências viscerais para quem tem olhos de ver e discurso de libertação das conveniências.
O autor quer nos convidar a seguir os caminhos desse microcosmo. Com ele aprenderemos a driblar os tentáculos da inocência.