Desde seu primeiro livro, Sérgio de Castro Pinto encontra tempo para dar uma espiada, pelo buraco da fechadura do paraíso, na paisagem dos tempos primordiais. Naquele tempo, as feras nem eram feras e até o leão era, antes de tudo, um “sol de pêlos/ ao redor da cabeça” e nem assustava ninguém. De tanto espiar, Sérgio recria, neste Zôo imaginário (São Paulo: Escrituras, 2005), o paraíso, usando a argamassa do verbo, com toques de humor, ingenuidade e economia de palavras, povoando-o de bichos.
Como não aceito que apenas as crianças possam apreciar o lúdico, revisitar o paraíso, não leio esses poemas como literatura infanto-juvenil. Adulta, tenho me esforçado para não perder a esperança no jogo, no riso, no brinquedo. De repente, vem esse poeta e me devolve um paraíso perdido, trazendo-me uma leveza, que, sem esquecer a atitude crítica, recolhe um detalhe de cada criatura e lhe confere beleza, com acentuado humor. Prenhe de significados, esse espaço poético remete à fugacidade do “glamour” das passarelas e do encantamento do cinema, chegando a, “tijolo por tijolo/ num desenho mágico” (pego de Chico Buarque), dar vida à girafa.
Espírito de seu tempo, Sérgio não foge à fragmentação da realidade. Assim desde seu boi, em “as frações do boi” (1967), esquartejado em botão e pente, contempla a parte para construir o todo, fixa-se no resultado, como diretrizes de seu projeto criador. Por isso, a girafa ou a zebra ou a coruja, por exemplo, parecem formar rebanhos ou bando; na verdade, cada um desses bichos é exemplar em sua unicidade; acontece, porém, que o olhar poético se fixa numa parte cada vez que contempla ou recontempla essas criaturas; logo, não se trata da multiplicação dos bichos, mas de variadas miradas poéticas dos mesmos bichos. Sérgio reconstrói o paraíso, mas para reencontrar a unidade perdida, seu gesto se faz metonímico. Da coruja, por exemplo, destaca os olhos, para reafirmar sua relação com a sabedoria, fechando-a e fazendo-a em voto de silêncio: monja. Sem deixar de destacar o “canto” das cigarras, afasta-se da repetição da fábula, ainda que a confirme em “guitarras trágicas”. Destacando o pêlo e o pescoço da girafa, vai nos dando a configuração desse animal, através de comparações elegantemente tecidas, antecipando a metáfora “aéreo caniço pensante do nada”.
E, assim, Sérgio faz seu bestiário, incluindo mesmo um elefante, tão pouco selvagem que lembra um bichinho de pelúcia. Não creio que seja sobre a construção de um bestiário que repouse o principal sentido desses poemas. É possível que o poeta nos esteja revelando, com seu olhar inaugural, uma nova “jungle”, que se nutre também dos ditos populares, na retomada do casamento da raposa com o rouxinol, e de nossas lendas, ao ver na garça a lembrança do saci, e do diálogo com Cassiano Ricardo, Edgar Allan Poe, além de Kipling e de Chico Buarque.
Dono do verbo, esse demiurgo precisa de vários níveis de linguagem para completar seu “fiat”; atualiza o erudito “nefelibata”, passa pela linguagem especializada (“autista”, “nau à deriva”), não evita a frase feita (“a olhos vistos”) e nem o tão corrente “deu zebra” ou o radicalmente coloquial “não girar bem” e muito menos o pós-moderno empréstimo “plugar”, além do charmoso “gris”, entre outras situações, contaminado cada palavra e expressão sobejamente conhecidas com novos significados. E tudo nesse mundo de Zôo imaginário se movimenta ao som da música (“guitarras”, “canto”, “semicolcheias”, etc.).
Enquanto a girafa “rumina brisa”, no espaço poético, a fera é apenas aquele travestido de cordeiro.
© Copyright by Sônia van Dijck, 2005
|