Havia ainda movimento no
Mercado Central, mas os comerciantes já não gritavam, anunciando as
virtudes de suas mercadorias. Nem havia mais necessidade de gastar a
garganta; no meio da tarde de sábado, muitos já haviam fechado os boxes;
outros ainda estavam lavando os azulejos, arrumando as caixas vazias e
juntando os restos de frutas e verduras naquela imensa pilha, visitada
por um ou outro cachorro curioso que deixava sua marca como contribuição
para as centenas de moscas que emprestavam movimento e inquietação
àquele emaranhado de cores, formas e cheiros que já começava a atrair
algumas mulheres e uns meninos barulhentos e raivosos, que se
encarregavam de espalhar tudo, à medida que buscavam algum tomate ou uma
manga ainda aproveitável.
Daniela pisou em um tomate
desprendido daquela massa confusa e ouviu um palavrão da mulher que
havia pensado em aproveitar a iguaria para dar um gosto ao feijão magro
do domingo. Assustada com o grito da mulher, Daniela tentou explicar que
não tinha visto o tomate e seguiu adiante com sua pequena sacola, pois
também tinha intenção de melhorar o almoço do domingo. Olhou em volta,
procurando outros boxs que ainda tivessem alguma coisa para vender.
- Oi, gatinha! A morena vai
querer levar bananas? Preço especial pra terminar o dia. Vai levar?
- Vou levar seis.
- Só meia dúzia?
- Tá de bom tamanho. Bota
aqui. – e abriu a sacola.
- Pera aí! Você não teve aqui
hoje cedo?
- Foi. De manhãzinha. Tava
comprando pra minha patroa. Agora, é pra mim. Tou com um menino com
problema de diarreia, e dona Dagmar, minha vizinha, disse que banana é
bom pra quem tem diarreia.
- Mas, olha quem tá’qui?!
Minha querida Daniela!
Era Jéssica. Alegre e
faladeira.
- Você não sabe, Bartô, essa
aqui é uma amigona. Me deu teto pra dormir quando eu tava na pior. Você
sabe. Foi naquela vez que fiquei na pior. Por causa daquele problema
que o miserável do Joca criou. Me botou pra fora de casa com a roupa do
corpo. Fez caso de ciúme, mas o que ele queria mesmo era botar aquela
baranga da Shirley no meu lugar. Se não fosse essa aqui, eu tinha
dormido na rua.
Tinham se conhecido na balada
do “Bola Preta”, o melhor “point” da comunidade nas noites de sábado.
Isso foi quando Daniela estava de namoro com um amigo de Joca. O namoro
não foi adiante e nunca mais Daniela teve notícia do amigo de Joca.
Dizem que foi tentar a vida em São Paulo. Mas, no meio tempo, Jéssica
bateu a sua porta, na madrugada, roupa rasgada, um olho roxo e um dente
quebrado. Daniela deixou entrar por aquele resto de noite e bem mais uns
três meses. Foi quando Jéssica se firmou com um soldado da polícia e
sumiu.
Bartô conhecia um pedaço da história e
gostou de olhar Daniela, a amiga que não deixou Jéssica na rua.
- E você ainda está com
aquele polícia?
- Não! Aquilo já acabou. O
cara é casado e cheio de filho. Queria mais era o bem bom de graça, sabe
como é... Agora, tou com um cara legal. Até já consertei meu dente;
veja! – e mostrou os dentes à amiga. A gente tem um bar aqui no Mercado.
Vamos lá. Tomar uma estupidamente gelada. Vem você também, Bartô.
- Vou, sim. Vou fechar aqui o
box e vou lá pra tomar uma gelada. Mas, olha aqui, gatinha, leva mais
meia dúzia pra seu garoto; é por conta da casa.
Damião, cara suada e camisa
encardida, abria mais uma cerveja para uma turma de 4 rapazes que,
impacientes, perguntavam pelo filé com fritas. Jéssica apresentou
rapidamente Daniela, e Damião respondeu “tá bom; fique à vontade”,
enquanto Jéssica corria para os fundos a fim de apressar o tal filé com
fritas.
Daniela evitou olhar para a
mesa dos rapazes impacientes, escolheu uma mesa perto do corredor,
colocou a sacola sobre uma cadeira, puxou outra e sentou-se.
- Você, hein! Chega, faz que
nem me conhece... E aí, gata? Como é que fica aquela minha ideia da
gente ficar junto? Não vai dizer que esqueceu.
Edney tinha deixado os amigos e trazia o
copo de cerveja. Era alto, forte, lábios grossos, pele tão negra que
brilhava na luz artificial do interior do Mercado. Era quase vizinho de
Daniela e tinha estudado na mesma escola, até que abandonou no quarto
ano. Puxou a cadeira e sentou-se.
- Oi, irmão! Traz uma gelada
aí, pra mim tomar com minha gata!
- Olha aqui, Ed. Já disse que
não vou ficar com você. Você só tem dezessete anos, não tem emprego e tá
pensando que a vida é mole nessa coisa em que se mete. Tenho duas
crianças em casa e não quero saber de polícia em minha porta. Minha avó
tá velha, e bala não pede referência de quem vai acertar. Já disse a
você que tou noutra.
- E daí?! Tou me lixando pra
dezessete anos. Sou melhor que muito cabra de trinta, de quarenta. Sou
safo. Você só tem vinte e um e já tem um filho de dois e outro de um e
meio daquele cara que te deu um pé na bunda e foi morar com aquela
cafetina horrorosa de peito caído. Aquele outro se mandou pra São Paulo
e te esqueceu; ele não ia mesmo criá filho do outro; deve tá no bem-bom.
Tá pensando o quê?! Tou disposto a ficá com você, as criança e a velha
de tua vó. Sou safo. Pode apostá.
Daniela tentou se levantar,
mas Edney segurou seu braço.
- Me solta, seu merda!
Bartô foi chegando e pouco entendeu do que
estava acontecendo.
- E aí, gata?! Algum
problema?
Tudo foi rápido. Bartô tinha
um furo na testa e outro na barriga por onde o sangue corria.
Na confusão, a sacola de
Daniela caiu da cadeira e o menino com diarreia ficou sem as bananas, o
domingo sem molho de tomate e sem almoço. Daniela saiu da delegacia na
madrugada e andou muito até chegar em casa na manhãzinha, depois de
repetir a mesma história uma dezena de vezes.
No início da manhã do
domingo, o corpo de Bartô foi entregue aos familiares e o velório
deveria ser rápido.
Daniela ainda não entendia
muito do acontecido. Mal conhecia Bartô. Ficou sabendo que era
Bartolomeu da Silva. Decidiu não ir ao velório. Queria dormir.
- Saiam de perto do caixão! –
o grito surpreendeu a mãe e as irmãs de Bartô que eram consoladas pelos
vizinhos.
No meio da tarde, a sala
estava invadida por quatro sujeitos armados, seguranças de Edney.
Edney descarregou a metralhadora. As
poucas flores que compunham a dignidade do morto espalharam-se pela
sala. Algumas balas marcaram a parede e outras atingiram o quadro do
Coração de Jesus, que era devoção da inconsolável dona Marta.
Todas as pessoas do velório
disseram não conhecer quem atirou. A mãe de Edney disse nunca ter visto
quem atirou contra o morto e o Coração de Jesus.
A avó de Daniela não soube
informar quem era o garoto que invadiu a casa no finzinho do domingo e
deixou Daniela dormindo na rede furada de balas.
Set. 2011 |