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SÔNIA VAN DIJCK..
O TEMPO PERDIDO
Para EDIVAL VARANDAS

Aos domingos, a rua, que se tornara comercial, ficava deserta. Clínicas, edifícios de escritórios, pequenas lojas de alto luxo, tudo estava fechado. Aqui e ali, algum vigilante conversava com um colega, para matar o tempo.

Ao entrar na rua, diminuiu a velocidade e passeou o olhar pela paisagem alterada. Faltava um sobrado.

Em casa, todos estavam na piscina e faziam enorme algazarra, de risos, falas, gritos e música. Talvez nem tivessem notado ainda que saíra. Estacionou diante do monte de entulho.

- Agora, não dá pra entrar aí, não, doutor. É perigoso! Tem muito prego velho, pedaço de azulejo e outras porcarias.

- “Porcarias”. Pensou: - O coitado não disse por maldade.

Acendeu um cigarro e estendeu a mão para o vigilante que se aproximava.

- Agradecido, doutor. Mas, não tem mais nada que preste aí, não. Agora, tá tudo quebrado, destruído.

Ofereceu o isqueiro ao outro.

- Não se preocupe, amigo. Vou tomar cuidado e olhar onde piso.

O vigilante, lentamente, foi em direção ao amigo que ficara na porta de uma seguradora, observando a cena.

Ele passou por debaixo da corda que marcava a fronteira daquela massa ilógica e olhou as árvores que permaneciam de pé no espaço que já fora o quintal.

Quando o pai morreu, decidiram que a mãe fosse morar com Das Neves, a filha mais nova e solteira. Ficaram umas tralhas de móveis, pequenos objetos de decoração sem muito valor, brinquedos esquecidos, porque, na divisão entre os irmãos, ninguém queria levar para os apartamentos coisas que não combinavam com a decoração ou já não tinham serventia diante dos novos hábitos. Sua mulher tinha sido radical e fez coro com os cunhados.

Quem tinha ficado com a chave da porta? Com o tempo, ninguém se lembrava de ter guardado. Mas, havia aquela janela do escritório do pai, que sempre tivera o ferrolho fora do lugar.

Em muitos domingos, ninguém notava que saíra, entretidos com as brincadeiras na piscina. Só a mãe, que sempre era trazida para o fim de semana, lhe endereçava um sorriso cúmplice, quando via que ele se dirigia à garagem.

A janela fazia um barulho como se fosse desabar e o vigilante dizia:

- Cuidado, doutor! pode cair em cima do senhor!

A escada gemia a cada degrau.

Em seu antigo quarto, ainda havia uns papéis com desenhos descoloridos e um boné de cor indefinida pelo tempo, uma camisa do time da Faculdade e umas revistas emboloradas. Pelo resto da casa, muitas coisas esquecidas, gavetas jogadas nos cantos, cadeiras que não se agüentavam nas pernas, um sofá que era casa de ratos, uma bailarina de louça, um porta-retrato vazio. Reouvia vozes e risos e sua mãe gritando que o almoço estava servido. Gostava de abrir o quarto do pai e da mãe e imaginava o cheiro de lavanda do passado. As teias de aranha cobriam a grande cama sem colchão. Descia até a cozinha e reencontrava Luíza, a mulata fogosa que lhe dera lições de amor e lhe servia café, quando estudava, na madrugada, para as provas na Faculdade.

- Que terá sido feito de Luíza? Era seca; não emprenhava. Ficou velha aqui em casa. Já deve estar morta. – Pensou olhando o espaço onde estivera a cozinha.

Pisou a ponta do cigarro, chutou um caco de azulejo e olhou a velha mangueira. Um rato desabrigado fugiu para debaixo de um monte de coisas impossíveis de identificação.

Ao passar novamente pela corda da fronteira pensou:

- Felizmente, mamãe está morta.

O vigilante estava diante do entulho. Ofereceu-lhe outro cigarro e acendeu mais um.

- Que mal lhe pergunte: o doutor é da construtora do edifício?

- Sou.

 
Publicado em
Correio das artes, João Pessoa, ano 54, n. 17, 22 jan. 2006, p. 19-20.
Suplemento literário de A União.