Era velho. Então datilografava o texto. Era louco.
Então não havia a máquina. E estava só. E as personagens eram reais.
Quase. Eram as que caminhavam a sua frente. E as que andavam às suas
costas. E as que não via. E as que não lembrava.
O escritório era o banco da praça. Sob a sombra da
árvore antiga. Do outro lado era a rua e o inferno. Gostava de assistir
o inferno. Relatar o inferno. Descrever o inferno. Na sombra. Era velho.
E datilografava o mundo. O seu mundo.
E o inferno era além da praça e da sombra. As latas
com rodas que apertavam e esmagavam “confortavelmente” as pessoas. Era
também as pedras que solidificavam todos os caminhos. Caminhos que
levavam sempre a um mesmo lugar.
Era velho. E adorava a sombra. Morreria quando o
levassem dali, quando a filha que já não agüentava suas esquisitices
resolvesse “aprisioná-lo” no quarto. “Prefiro a sombra” diria, mas de
nada adiantaria. Confinado ao quarto e ao olho vibrante da tv.
Mas agora estava ali. Escrevendo seu livro como fazia
todo o dia. Era isso que dizia: “O que o senhor estava fazendo pai?”
“Escrevendo.” E se dirigia para o fundo da casa. Sentava na cadeira de
praia e olhava as nuvens em metamorfose.
Mas estava, agora, na sombra da tabebuia. Aos pés o
amarelo. Cor. Gostava da cor. Mas gostava da cor fora do seu livro, fora
do seu texto. O texto devia ser duro. Seco. Mas o amarelo era bonito. E
ela. A árvore. Reinava única na praça. O resto de verde. Mas a sombra
não. Os sorrisos sim. A grande maioria. O da filha com certeza. Amarelo.
Do outro lado da rua o menino parou. “Me olhou como
se fosse – eu – uma criatura de outro planeta. Talvez fosse. Então
atravessou a rua e sentou do meu lado. Era da rua. Ou a rua era dele.
Com certeza. Era o dono da rua. Da rua e de todas as suas
possibilidades. Perguntou meu nome. Olhos que atravessam a imagem e
questionavam a alma. Grandes. Minha alma é minúscula. Não falei. Velho.
Tenho o medo como elemento de sustentação da vida. Minha vida. Ele
sorriu. Sabia que estava me intimidando. Perguntou o que eu fazia.
‘Escrevo’, respondi, ele deu uma gargalhada, quando parou de rir, já
outro moleque estava do meu lado. Cercado. ‘Quem é o velhote Língua?’
Língua era o apodo do primeiro. ‘Sei lá, disse, tava me olhando
estranho, vim conferir.’ O segundo aproximou o rosto do meu. Olhos
claros de ameaçar e intimidar. Os meus eram tão antigos que afogariam os
dele. Desviei. Meus olhos são de outros tempos, de fantasmas cheio. O
menino nada tem a ver com minhas dores. ‘Fala aí meu velho – e pôs
firmemente a mão sobre o meu ombro – Tá fazendo o quê por estas bandas?
Não sabe que é perigoso andar sozinho?’ Olhei o céu. Claro. O sol. O
amarelo das flores do ipê no chão. Tudo era perigoso. ‘Só estou
escrevendo’ falei. O primeiro gargalhou novamente: ‘O velhote é louco,
tá variando.’ O segundo já tava metendo a mão no meu bolso. ‘Melhor
passar a grana vovô...’ mas eu não era avô de ninguém. Minha filha não
queria. Não gostava de crianças. Ele abriu minha carteira; vazia.
Levantei, para ir embora, acabar com aquela cena, enfadonha, triste... o
primeiro empurrou. Meu corpo morreu no chão. O amarelo das flores como
colchão. Um homem correu. Os meninos atiraram. Pela boca. Palavrões que
eu nunca me animara proferir em público. E fugiram pelo verde.”
Parou de escrever. Onde estava o homem? A carteira
estava no bolso. A roupa limpa. As flores amarelas...
O que era real no texto?
Do outro lado a mãe apanhou a mão do menino e foram.
Ele ainda o olhava. Um E.T?
Foi então que ela chegou. A filha. Procurando. No
vento que se fazia. Brisa que desarranjava as flores do chão e
precipitavam outras da árvore. Ela não via. Não enxergava. Buscava em
vão. Olhos que tinham suas raízes na inquietação. Sentou no banco, mão
no rosto. Não via. Levantou e saiu. Os corpos não coabitavam os mesmos
espaços. Ela não o viu sair. Ele não a viu ficar.
Logo o vento sopraria um lençol de flores amarelas
pela memória.
O sol iria dizimando a sombra, clareando e iluminando
tudo. Ofuscando. Queimando. E não haveria mais ninguém escrevendo no
banco do Ipê-amarelo. |