Ronie Von Rosa Martins

Ipê-amarelo

Era velho. Então datilografava o texto. Era louco. Então não havia a máquina. E estava só. E as personagens eram reais. Quase. Eram as que caminhavam a sua frente. E as que andavam às suas costas. E as que não via. E as que não lembrava.

O escritório era o banco da praça. Sob a sombra da árvore antiga. Do outro lado era a rua e o inferno. Gostava de assistir o inferno. Relatar o inferno. Descrever o inferno. Na sombra. Era velho. E datilografava o mundo. O seu mundo.

E o inferno era além da praça e da sombra. As latas com rodas que apertavam e esmagavam “confortavelmente” as pessoas. Era também as pedras que solidificavam todos os caminhos. Caminhos que levavam sempre a um mesmo lugar.

Era velho. E adorava a sombra. Morreria quando o levassem dali, quando a filha que já não agüentava suas esquisitices resolvesse “aprisioná-lo” no quarto. “Prefiro a sombra” diria, mas de nada adiantaria. Confinado ao quarto e ao olho vibrante da tv.

Mas agora estava ali. Escrevendo seu livro como fazia todo o dia. Era isso que dizia: “O que o senhor estava fazendo pai?” “Escrevendo.” E se dirigia para o fundo da casa. Sentava na cadeira de praia e olhava as nuvens em metamorfose.

Mas estava, agora, na sombra da tabebuia. Aos pés o amarelo. Cor. Gostava da cor. Mas gostava da cor fora do seu livro, fora do seu texto. O texto devia ser duro. Seco. Mas o amarelo era bonito. E ela. A árvore. Reinava única na praça. O resto de verde. Mas a sombra não. Os sorrisos sim. A grande maioria. O da filha com certeza. Amarelo.

Do outro lado da rua o menino parou. “Me olhou como se fosse – eu – uma criatura de outro planeta. Talvez fosse. Então atravessou a rua e sentou do meu lado. Era da rua. Ou a rua era dele. Com certeza. Era o dono da rua. Da rua e de todas as suas possibilidades. Perguntou meu nome. Olhos que atravessam a imagem e questionavam a alma. Grandes. Minha alma é minúscula. Não falei. Velho. Tenho o medo como elemento de sustentação da vida. Minha vida. Ele sorriu. Sabia que estava me intimidando. Perguntou o que eu fazia. ‘Escrevo’, respondi, ele deu uma gargalhada, quando parou de rir, já outro moleque estava do meu lado. Cercado. ‘Quem é o velhote Língua?’ Língua era o apodo do primeiro. ‘Sei lá, disse, tava me olhando estranho, vim conferir.’ O segundo aproximou o rosto do meu. Olhos claros de ameaçar e intimidar. Os meus eram tão antigos que afogariam os dele. Desviei. Meus olhos são de outros tempos, de fantasmas cheio. O menino nada tem a ver com minhas dores. ‘Fala aí meu velho – e pôs firmemente a mão sobre o meu ombro – Tá fazendo o quê por estas bandas? Não sabe que é perigoso andar sozinho?’ Olhei o céu. Claro. O sol. O amarelo das flores do ipê no chão. Tudo era perigoso. ‘Só estou escrevendo’ falei. O primeiro gargalhou novamente: ‘O velhote é louco, tá variando.’ O segundo já tava metendo a mão no meu bolso. ‘Melhor passar a grana vovô...’ mas eu não era avô de ninguém. Minha filha não queria. Não gostava de crianças. Ele abriu minha carteira; vazia. Levantei, para ir embora, acabar com aquela cena, enfadonha, triste... o primeiro empurrou. Meu corpo morreu no chão. O amarelo das flores como colchão. Um homem correu. Os meninos atiraram. Pela boca. Palavrões que eu nunca me animara proferir em público. E fugiram pelo verde.”

Parou de escrever. Onde estava o homem? A carteira estava no bolso. A roupa limpa. As flores amarelas...

O que era real no texto?

Do outro lado a mãe apanhou a mão do menino e foram. Ele ainda o olhava. Um E.T?

Foi então que ela chegou. A filha. Procurando. No vento que se fazia. Brisa que desarranjava as flores do chão e precipitavam outras da árvore. Ela não via. Não enxergava. Buscava em vão. Olhos que tinham suas raízes na inquietação. Sentou no banco, mão no rosto. Não via. Levantou e saiu. Os corpos não coabitavam os mesmos espaços. Ela não o viu sair. Ele não a viu ficar.

Logo o vento sopraria um lençol de flores amarelas pela memória.

O sol iria dizimando a sombra, clareando e iluminando tudo. Ofuscando. Queimando. E não haveria mais ninguém escrevendo no banco do Ipê-amarelo.

Ronie Von Rosa Martins (Brasil). Professor - Português/Inglês - Pedro Osório/Cerrito – RS - Brasil. Pós-graduado em Literatura Contemporânea Brasileira - UFPEL. Pós-graduado em Linguagens Verbais Visuais e suas Tecnologias – IFSUL. Textos publicados em : Cronópios, Revista Entrementes, Revista Partes, Meiotom, Verbo21, Paralelo 30, Portal Literal, Recanto das Letras, Caos e Letras, Letras et Cetera, Literatura del Mañana, Arte Institucional número 5, Nerdescritor , Revista Capitu, Tiro de letra, Kplus , Revista Literatura em Debate, Outra Revista, Revista Nota Independente, Antologia Online da Câmera Brasileira de Jovens Escritores, Jornal O Lince, Clube do Livro, Veredas, Casa das Musas, Editorial Rove e na Revist’A Barata, Jornal Telescópio, Literatura em Foco, na Revista Germina – Literatura e Arte, Andar 21 Revista Poética em rede, Revista Corsário, na revista La Hojarasca,  Revista Letras Uruguay, Revista Literarte, Panfleto Negro, Substantivo Plural. Molino de Letras, Revista El Humo.Revista Narrador.es. Blocos online,  Palabras Diversas, Pedro osório net e CerritoRS. Revista La Nueva Urraka, Revista Transletralia, Revista Cerrado Cultural, Palavras, Todas Palavras, El Fantasma de la Glorieta, Creatora – Revista literária. Revista Blecaute.
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