Nova Série

 
 

 

 

 

 

RODRIGO ARAÚJO

Clarice, o corpo e os fragmentos

LISPECTOR, Clarice. As Palavras. Curadoria de Roberto Corrêa dos Santos. Ilustrações de Mariana Valente. Rio de Janeiro: Rocco, 2013. 305.p.

“Como escritor espalho sementes”.
Clarice Lispector (2014, p.14)

 

As Palavras (2013), de Clarice Lispector, com curadoria de Roberto Corrêa dos Santos, laçado pela editora Rocco, funciona, como na epígrafe, feito um jogo de citações de várias obras da escritora, agora compiladas nesse volume. Espalhando sementes ou “semeando a todos os ventos”, a disseminação clariciana não opera ao deus-dará: desde o inaugural Perto do coração selvagem ao crepuscular A Descoberta do Mundo, a escritora de A paixão segundo G.H. enceta um horizonte insofismável, ainda que recuse uma sistematização, incompatível com o caráter estilhaçado de sua escritura, sempre em aberto.

A força dos fragmentos de Clarice e do trabalho dessa obra confirmam, de certa forma, o que a escritora registrou no seu romance Água viva, também ele estruturado em fragmentos: “Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais”(LISPECTOR, 1993, p.17) ou mesmo, um outro excerto de Um sopro de vida que funcionou como contracapa da obra:

Queria escrever frases que me extradissessem, frases soltas: "a lua de madrugada", "jardins e jardins em sombra", "doçuras adstringentes do mel", "cristais que se quebram com musical fragor de desastre". Ou então usar palavras que me vêm do meu desconhecido: trapilíssima avante sine qua non masioty - ai de nós e você. 

O trabalho do professor Roberto Corrêa dos Santos, também leitor e crítico da obra da escritora, sabe que essa semeadura poderia coroar a obra clariciana, na medida em que, tangida por várias teorias e métodos diversos - o feminismo, o existencialismo, a linguística, o estruturalismo, a semiologia, a psicanálise, a fenomenologia, o biografismo -, enfoca um corpus extremamente diversificado, abrigando a literatura, a pintura, a música, a voz, a arte, a crítica, a fotografia, a escrita ou escritura, os objetos, enfim, todos os temas da cultura de sua (e nossa) época.

A ficção de Clarice, aos olhos e ouvidos de Roberto, extrapola a literatura, porque segundo ele:

Trata-se de literatura em sentido ampliado e aberta em obras que fazem a vida falar; nelas, inquietude, silêncio, sopro, e sabedoria; nelas, operações delicadas para expor atos e gestos do pensar e do sentir, movendo, em modos únicos, os solos da letra; nelas, um poder linguístico e filosófico, cuja materialidade se expressa pelo pulsar-tremor de palavras e frases, acumuladas umas sobre as outras, gerando uma linha próxima à da espiral; em grande luz, linguagem e pensamento vão-se formando, nascendo ali, à vista nossa.[...] E o escrito prolifera, mesmo no que se interrompeu: os textos comportam as marcas das paradas, da respiração ofegante e exausta e alegre, do tédio, da luta do escrever; cada retorno à página produz camadas de suplementos. Incontroláveis. As frases-sentenças-aparições saltam, erguem-se, voam.  

As Palavras, de Clarice Lispector e curadoria de Roberto Corrêa, é uma (re)leitura da obra da escritora aos fragmentos. Ao acompanhar o mundo contemporâneo e a sua fragmentação, o crítico e curador reforça que a imprescindível ferramenta  da Internet veio, sobretudo nos blogs e nos twitters, para multiplicar e potencializar a escritura fragmentária, o gênero fragmentário, a estética do fragmento, a virtualidade do fragmento, o texto descontínuo e estilhaçado. Os fragmentos, nesse contexto, abrem-se a leituras, releituras, significações e ressignificações, porque o texto de Clarice agora dialoga com rupturas, interstícios, disseminação.

Enquanto obra, As Palavras serve, por outro lado, como leitura e testemunha do passado memorialístico, que ajuda a compreender e a reconstituir a poética da escritora brasileira. A partir disso, potencializam-se outras discussões, como a crise do gênero (também, anunciado ou sugerido pela própria escritora), da totalidade, do sujeito, do autor e do leitor; espécie de gênero que engendra uma estética do fragmento, sem referência a uma organização globalizante, cunhado numa forma lapidar, e, muitas vezes, paradoxal e circular, reação  contra a estrutura e a totalidade da leitura. Nesse caso, a fragmentação da obra de Clarice, proposta pelo crítico, questiona o processo do acabado e, de alguma forma, do “fechado”, uma discussão retomada do pós-estruturalismo, e que, por sua vez, elege o inacabado e o fragmento como características fulcrais.

Dos fragmentos da obra de Clarice, então, ressurge a leitura como signo da modernidade, em busca de uma nova linguagem, num mundo onde a unidade e a certeza não são, definitivamente, evidentes, e onde vigem a aporia, as contradições, a fluidez, inscritas, como modos de dispersão e justaposição, no texto clariceano.

Não é casual que outra forma de expressão seja a pluralidade desses fragmentos, pois a individualidade é, antes de tudo, a da multiplicidade que é inerente ao gênero. Mas esse modo plural de ler Clarice, ou mesmo divulgar sua poética, é o modo pelo qual o fragmento visa, indica e de certo modo, põe o singular da sua totalidade. Pluralizar Clarice é, nesse caso, pôr o texto ficcional em processo de dissolução das confrontações e dos paradigmas, de tal modo que o sentido, a partir dessas pluralidades, não ficará preso a nenhuma tipologia.

Embora essas considerações se refiram à organização do crítico-esteta, a escritora, também, credita a inexistência ou a fragilidade de seus enredos à sua própria natureza fragmentária. “Sou aos poucos”(1), ela mesma afirma, ao falar de sua produção literária. Nesse sentido, As Palavras agora dialoga com a prática da escritora, em fragmentar-se dentro de sua própria obra, quando retoma fragmentos de sua autoria, dentro de seu contos, coletâneas e crônicas, ou ainda, de uma obra dentro da Obra.

De qualquer forma, os livros da escritora que ilustram esse processo escritural e fragmentário por excelência são A Cidade Sitiada, Um Sopro de Vida (pulsações), A Descoberta do Mundo (totalmente fragmentário) ou por fim, Uma aprendizagem ou O livro dos Prazeres, que se inicia com uma vírgula, e termina com dois pontos, considerando a narrativa a ser contada como um fragmento da vida dos dois personagens, uma mulher (Lóri) e um professor de filosofia (Ulisses); pode-se, também, ver, nessa estratégia discursiva, uma figuração de todo livro como fragmento do Livro.

A capa e ilustrações internas da obra, de Mariana Valente - também elas, fragmentadas e intertextuais - instigam, feito a ficção clariciana, o olhar detalhista, sensível e perspicaz; elas capturam a cena ou capítulo, para traduzi-los numa imagem ou movimentos, feito um fotograma que reproduz o instante do discurso, a tensão narrativa, os ruídos do cenário, a dramaticidade do texto. Esse recurso plástico, todavia, não anula a sensibilidade literária, pelo contrário, aproximam-se para a construção dos fragmentos; são já fragmentos visuais dos capítulos.

As Palavras, de Clarice, aos olhos sensíveis do leitor e crítico Roberto Corrêa dos Santos revelam-se como tratados de poesia, literatura, prática escritural, movimento contínuo de encaixe de peças que falam uma das outras ou mesmo de outros livros da autora. Nesse plano, como se vê, engloba os anteriores, na medida em que falar do livro como cena ou montagem é produzir já uma linguagem segunda.

Ler ou reler Clarice, aos fragmentos, portanto, e a partir d’As Palavras, é já perceber, como o próprio curador afirma, um livro-exposição, uma obra como espaço artístico expositivo, uma “ordem” -, ou desordem como quer o leitor -, em que as vibrações e os acordes de pensamento/sensação mostram-se como as potentes alternâncias da vida do pensar e do sentir na arte de Clarice.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 

BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro. Francisco Alves. 1993.

 
(1) Apud Olga Borelli, Clarice Lispector: Esboço para um possível retrato. p.15. “Eu não tenho enredo. Sou inospidamente fragmentária. Sou aos poucos. Minha história é viver”.

Rodrigo da Costa Araújo é professor de Literatura Infantojuvenil e Teoria da Literatura na FAFIMA - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé, Mestre em Ciência da Arte (2008-UFF) e Doutorando em Literatura Comparada [UFF]. Ex-Coordenador Pedagógico do Curso de Letras, da FAFIMA, pesquisador do Grupo Estéticas de Fim de Século, da Linha de Pesquisa em Estudos Semiológicos: Leitura, Texto e Transdisciplinaridade da UFRJ/ CNPq e do Grupo Literatura e outras artes, da UFF/ CNPq. Coautor das coletâneas Literatura e Interfaces, Leituras em Educação (Opção 2011), Saberes Plurais: Educação, Leitura & Escola e Literatura infantojuvenil: diabruras, imaginação e deleite. (Opção-2012) E-mail: rodricoara@uol.com.br