As
Palavras
(2013), de Clarice Lispector, com curadoria de Roberto Corrêa dos Santos,
laçado pela editora Rocco, funciona, como na epígrafe, feito um jogo de
citações de várias obras da escritora, agora compiladas nesse volume.
Espalhando sementes ou “semeando a todos os ventos”, a disseminação
clariciana não opera ao deus-dará: desde o inaugural Perto do coração
selvagem ao crepuscular A
Descoberta do Mundo, a escritora de A paixão segundo G.H.
enceta um horizonte insofismável, ainda que recuse uma sistematização,
incompatível com o caráter estilhaçado de sua escritura, sempre em aberto.
A força dos fragmentos de Clarice e do trabalho dessa obra confirmam, de
certa forma, o que a escritora registrou no seu romance
Água viva, também ele
estruturado em fragmentos: “Inútil querer me classificar: eu simplesmente
escapulo não deixando, gênero não me pega mais”(LISPECTOR, 1993, p.17) ou
mesmo, um outro excerto de Um sopro
de vida que funcionou como contracapa da obra:
Queria escrever frases que me extradissessem,
frases soltas: "a lua de madrugada", "jardins e jardins em sombra",
"doçuras adstringentes do mel", "cristais que se quebram com musical
fragor de desastre". Ou então usar palavras que me vêm do meu
desconhecido: trapilíssima avante sine qua non masioty - ai de nós e você.
O
trabalho do professor Roberto Corrêa dos Santos, também leitor e crítico
da obra da escritora, sabe que essa semeadura poderia coroar a obra
clariciana, na medida em que, tangida por várias teorias e métodos
diversos - o feminismo, o existencialismo, a linguística, o
estruturalismo, a semiologia, a psicanálise, a fenomenologia, o
biografismo -, enfoca um corpus extremamente diversificado,
abrigando a literatura, a pintura, a música, a voz, a arte, a crítica, a
fotografia, a escrita ou escritura, os objetos, enfim, todos os temas da
cultura de sua (e nossa) época.
A
ficção de Clarice, aos olhos e ouvidos de Roberto, extrapola a literatura,
porque segundo ele:
Trata-se de
literatura em sentido ampliado e aberta em obras que fazem a vida falar;
nelas, inquietude, silêncio, sopro, e sabedoria; nelas, operações
delicadas para expor atos e gestos do pensar e do sentir, movendo, em
modos únicos, os solos da letra; nelas, um poder linguístico e filosófico,
cuja materialidade se expressa pelo pulsar-tremor de palavras e frases,
acumuladas umas sobre as outras, gerando uma linha próxima à da espiral;
em grande luz, linguagem e pensamento vão-se formando, nascendo ali, à
vista nossa.[...] E o escrito prolifera, mesmo no que se interrompeu: os
textos comportam as marcas das paradas, da respiração ofegante e exausta e
alegre, do tédio, da luta do escrever; cada retorno à página produz
camadas de suplementos. Incontroláveis. As frases-sentenças-aparições
saltam, erguem-se, voam.
As Palavras, de Clarice
Lispector e curadoria de Roberto Corrêa, é uma (re)leitura da obra da
escritora aos fragmentos. Ao acompanhar o mundo contemporâneo e a sua
fragmentação, o crítico e curador reforça que a imprescindível ferramenta
da Internet veio, sobretudo nos blogs e nos twitters,
para multiplicar e potencializar a escritura fragmentária, o gênero
fragmentário, a estética do fragmento, a virtualidade do fragmento, o
texto descontínuo e estilhaçado. Os fragmentos, nesse contexto, abrem-se a
leituras, releituras, significações e ressignificações, porque o texto de
Clarice agora dialoga com rupturas, interstícios, disseminação.
Enquanto obra, As Palavras
serve, por outro lado, como leitura e testemunha do passado
memorialístico, que ajuda a compreender e a reconstituir a poética da
escritora brasileira. A partir disso, potencializam-se outras discussões,
como a crise do gênero (também, anunciado ou sugerido pela própria
escritora), da totalidade, do sujeito, do autor e do leitor; espécie de
gênero que engendra uma estética do fragmento, sem referência a uma
organização globalizante, cunhado numa forma lapidar, e, muitas vezes,
paradoxal e circular, reação contra a estrutura e a totalidade da
leitura. Nesse caso, a fragmentação da obra de Clarice, proposta pelo
crítico, questiona o processo do acabado e, de alguma forma, do “fechado”,
uma discussão retomada do pós-estruturalismo, e que, por sua vez, elege o
inacabado e o fragmento como características fulcrais.
Dos
fragmentos da obra de Clarice, então, ressurge a leitura como signo da
modernidade, em busca de uma nova linguagem, num mundo onde a unidade e a
certeza não são, definitivamente, evidentes, e onde vigem a aporia, as
contradições, a fluidez, inscritas, como modos de dispersão e
justaposição, no texto clariceano.
Não é
casual que outra forma de expressão seja a pluralidade desses fragmentos,
pois a individualidade é, antes de tudo, a da multiplicidade que é
inerente ao gênero. Mas esse modo plural de ler Clarice, ou mesmo divulgar
sua poética, é o modo pelo qual o fragmento visa, indica e de certo modo,
põe o singular da sua totalidade. Pluralizar Clarice é, nesse caso, pôr o
texto ficcional em processo de dissolução das confrontações e dos
paradigmas, de tal modo que o sentido, a partir dessas pluralidades, não
ficará preso a nenhuma tipologia.
Embora
essas considerações se refiram à organização do crítico-esteta, a
escritora, também, credita a inexistência ou a fragilidade de seus enredos
à sua própria natureza fragmentária. “Sou aos poucos”(1),
ela mesma afirma, ao falar de sua produção literária. Nesse sentido,
As Palavras agora dialoga com a
prática da escritora, em fragmentar-se dentro de sua própria obra, quando
retoma fragmentos de sua autoria, dentro de seu contos, coletâneas e
crônicas, ou ainda, de uma obra dentro da Obra.
De
qualquer forma, os livros da escritora que ilustram esse processo
escritural e fragmentário por excelência são
A Cidade Sitiada,
Um Sopro de Vida (pulsações),
A Descoberta do Mundo
(totalmente fragmentário) ou por fim,
Uma aprendizagem ou O livro dos
Prazeres, que se inicia com uma vírgula, e termina com dois pontos,
considerando a narrativa a ser contada como um fragmento da vida dos dois
personagens, uma mulher (Lóri) e um professor de filosofia (Ulisses);
pode-se, também, ver, nessa estratégia discursiva, uma figuração de todo
livro como fragmento do Livro.
A capa
e ilustrações internas da obra, de Mariana Valente - também elas,
fragmentadas e intertextuais - instigam, feito a ficção clariciana, o
olhar detalhista, sensível e perspicaz; elas capturam a cena ou capítulo,
para traduzi-los numa imagem ou movimentos, feito um fotograma que
reproduz o instante do discurso, a tensão narrativa, os ruídos do cenário,
a dramaticidade do texto. Esse recurso plástico, todavia, não anula a
sensibilidade literária, pelo contrário, aproximam-se para a construção
dos fragmentos; são já fragmentos visuais dos capítulos.
As
Palavras,
de Clarice, aos olhos sensíveis do leitor e crítico Roberto Corrêa dos
Santos revelam-se como tratados de poesia, literatura, prática escritural,
movimento contínuo de encaixe de peças que falam uma das outras ou mesmo
de outros livros da autora. Nesse plano, como se vê, engloba os
anteriores, na medida em que falar do livro como cena ou montagem é
produzir já uma linguagem segunda.
Ler ou
reler Clarice, aos fragmentos, portanto, e a partir d’As
Palavras, é já perceber, como o próprio curador afirma, um
livro-exposição, uma obra como espaço artístico expositivo, uma “ordem” -,
ou desordem como quer o leitor -, em que as vibrações e os acordes de
pensamento/sensação mostram-se como as potentes alternâncias da vida do
pensar e do sentir na arte de Clarice.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BORELLI, Olga. Clarice Lispector:
esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
LISPECTOR, Clarice. Água viva.
Rio de Janeiro. Francisco Alves.
1993.
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