Desde os mais recuados tempos que os solstícios são simbolicamente
imaginados e representados como aberturas ou portas no céu, opostas,
obrigatoriamente, porque, como portas, o sol por ali entrava e saía no
princípio e no fim do seu percurso em ciclo. Correcções científicas à parte,
veremos que, em termos simbólicos, já a sabedoria, em forma de intuição,
acompanhava os nossos antepassados.
O solstício de Capricórnio coincide, praticamente, com o nosso Natal, o que,
simbolicamente, não me espanta nem escandaliza, pois devemos compreender que
as datas não devem amarrar-nos, mas libertar-nos. Este solstício é, na
mitologia, a porta cruzada pelas almas imortais, a Porta dos Deuses.
E por João, que propagou a palavra do Sol cuja vinda um João, outro,
anunciara. No fundo, João Evangelista, o de agora, ou o Baptista, o
iniciador, são o mesmo, com diferentes funções: Janus, ou Joannes, ou ainda,
em hebraico “Iehohanaam” (Graça de Deus). Ambos são a dualidade, e
ultrapassada a polaridade tornam-se, pelo amor (ao alcance, também, de todos
nós), o Um, o princípio da vida. Assim sendo, começam por ser dois, e
unindo-se, multiplicam-se em três, a única possibilidade de voltarem a ser
Um.
É o solstício de Inverno que inaugura a fase ascendente do ciclo anual; daí
o simbolismo greco-latino das portas solsticiais, representado pelas duas
faces de Janus, posteriormente pelos dois ícones de João, o de Inverno e o
de Verão, sendo o de Inverno identificado com o Evangelista.
A personificação deste conceito no Panteão romano foi esse Deus Janus,
representado como divindade bifásica, graças à oscilação pendular entre os
trópicos; o próprio nome, “janua” palavra latina que significa porta, leva-o
a ser considerado “janitur”, o porteiro, munido de um molho de chaves.
Paradoxalmente, como o são todas as grandes verdades da vida, é a porta
invernal que introduz a fase luminosa do ciclo, tal como o nascimento de
Cristo é associado a este solstício. Refiro-o como facto simbólico
incontornável, tal como não posso deixar de referir que, curiosamente, no
simbolismo chinês, o trigrama “li” que é o fogo e o sol, corresponde ao
solstício de verão, o que me leva a pensar, ou a confirmar, que a tendência
luminosa é preexistente. O solstício de Inverno é a despedida da morte,
porque representa o renascimento perpétuo, o momento favorável a qualquer
tipo de criação.
Enquanto símbolo cósmico, o sol domina o culto de praticamente todas as
grandes civilizações: Osíris, Mithra, Apolo, Cristo, etc.
Nos povos que possuem uma mitologia astral, ele é o símbolo do Pai.
Nos cultos solares, o sol, como fonte de calor e de luz a ser proclamado
como o rei dos céus e soberano do mundo, teve uma crença marcante em todas
as religiões e crenças da humanidade. Mas não só aí. Também está nos
desenhos infantis, mesmo nos das crianças ocidentais, e nos sonhos dos
adultos, porque corresponde à região do psiquismo instaurada pela influência
do Pai: a educação, a consciência, a disciplina e a moral, desde a
interpretação limitada ao constrangimento social, à de Freud no sentido de
censura, a civilização e a ética, bem tudo o que é grandioso no ser, até à
nossa própria interpretação: o calor que nos envolve, a luz que nos orienta,
o amor que nos transforma. Ele é o grande e poderoso fogo alquímico.
Por herança recebida dos membros das organizações de ofício, que,
tradicionalmente, costumavam comemorar os solstícios, essa prática chegou às
sociedades iniciáticas modernas, mas já temperada pela influência da Igreja
sobre as corporações operativas. Muitas corporações acabaram por adoptar os
dois S. João como padroeiros, fazendo chegar esse hábito à moderna
maçonaria, onde existem, segundo a maioria dos ritos, as Lojas de S. João.
Essas datas solsticiais são representadas, simbolicamente, por um círculo
entre paralelas verticais e tangenciais, o que significa que o sol não
transpõe os trópicos, o que sugere àquele que trabalha a sua consciência,
que esta, na sua camada profunda, é inviolável. As paralelas representam os
trópicos de Câncer e de Capricórnio e também os dois S. João.
Esta ideia de porta estreita que simboliza o solstício de Inverno, ou o dia
mais curto do ano, representando a dificuldade na entrada, tem como
contrapartida levar-nos à invocação das portas solsticiais, estreitos meios
de acesso ao conhecimento simbolizados no círculo cósmico, no círculo da
vida, no zodíaco, pelo eixo capricórnio-câncer. A porta corresponde ao
início, ou ao ponto ideal de partida na elipse do nosso planeta. É um ponto
de esperança; pequena, mas possível. E ampliável.
O solstício de Inverno, ou, para os que preferirem, o Natal, é realmente, um
Natal, no sentido original de algo que nasce, logo, a esperança renovada. Na
manjedoura deste símbolo está o sol, novamente menino, novamente a crescer
dentro de nós connosco, a impulsionar-nos a deixar as trevas do medo, da
culpa, do desamor. Por nós mesmos.
Celebrar este nascimento é fazer dentro de nós a festa do crescimento do
sol, essa luz que sempre brilha, mesmo, ou sobretudo, no meio da obscuridade
de que estamos a sair.
Mesmo nos ostensivos e às vezes agressivos sinais exteriores de que tem
vindo a revestir-se esta época, é difícil não ver a desastrada e
inconsciente busca da humanidade em direcção à luz de que é feita, por
desencontrados caminhos. Hiper ilumina o exterior quando não vê a luz de
dentro, reveste-se de ouro quando não a aquece o sol, rouba, mente e calunia
quando se esquece da sua verdadeira natureza. Que a esperança, mais uma vez,
mas de forma cada vez mais consciente, se faça verbo e imagem e certeza e
que o amor e a compaixão se corporizem em nós, eventualmente em forma de
música, com que anualmente dramatizamos este teatro cósmico sempre renovado:
Com o Stabat Mater, ouçamos o choro da mãe terra, o sofrimento pelo
afastamento do filho, pelo luto da semente, com a música de oferenda, o
ritual do sacrifício, um canto vindo de oriente.
E já que estamos numa sociedade liberal, aproveitemos o algo que isso tem de
bom e integremos, não excluamos, ouçamos música profana, cristã, luterana,
música budista ritual.
Coisa que por aí não falta são músicas compostas e interpretadas por homens
e mulheres livres, verdadeiros benfeitores da humanidade. Ouçamos as canções
tradicionais de celebração do Natal, de todas as nacionalidades, e de todos
os tempos, e de todas as culturas, verdadeiras canções líricas, verdadeiras
canções heróicas, músicas solares que coincidem com a festa do nascimento
desse talvez maior herói da Humanidade.
Não se assustem os ateus ou agnósticos, não estou a referir-me ao fundador
de uma religião mas ao símbolo, a projecção íntima, esse sol interno, o sol
iniciático, Cristo e Janus, solstício dentro de cada um de nós, semente de
trigo dourada, alimento solar.
Na noite misteriosa, comamos o pão e bebamos o vinho, e assim engoliremos,
ainda que simbolicamente, o sol, porque sem ele, a substância não existiria.
Perante as palhas da manjedoura e sob o auspício da luz, ingeriremos o
mercúrio e o sal.
Comamos do sagrado; e do pagão; nada rejeitemos; assim ficaremos mais leves.
E livres. Juntemo-nos então ao ar, através da música, a mágica respiração.
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