Com o caderno cada
Aluno aprende
Dá
Enquanto
Recebe
Na medida
Optima. Oculta.
Do dicionário: na entrada: “Caderno”, a etimologia aparece como remontando ao latim “quaternus”, que significa “de quatro em quatro”. Quádruplos, constante de quatro elementos, porque eram as partes em que se dobrava um “folio” (folhas de impressão com quatro páginas impressas).
O que faz todo o sentido. O quatro é o número da estabilidade e da matéria. O caderno é a matéria na qual nós podemos construir/observar o nosso mapa/processo/estrada. É ele, bem esquadrado no solo, que vai permitir-nos voar. Sem esse solo, poderemos elevar-nos ao sol, mas em breve estaremos no solo. Bem estatelados. Não quadrados, mas esborrachados.
Na música, o compasso quatro por quatro é de uma grande regularidade e equilíbrio. Curiosamente, ou não, também se representa por um “C”.
Enfim, podemos ficar por aqui no que toca a especulações, embora fosse possível continuar assim durante umas horas…
Qual é afinal, a ideia, com esta conversa?
- Não vou dizer como se deve fazer um caderno
- Não vou dizer como se faz um caderno
- Pensei não dizer, tão pouco, como não se faz, porque isso seria dizer como eu faço; mas depois, pensando melhor, decidi fazê-lo, porque pelo menos sempre se fica a saber como é que não se faz, o que é útil, porque pode sempre aparecer quem queira fazer assim, o que também é bastante legítimo… Mas fica adiado mais para a frente…
- O que não vou certamente dizer é como é que acho que se deveria fazer. Primeiro porque não acho nada, segundo porque não sei, terceiro porque não devo.
PORQUE:
- Não está no meu feitio dizer às pessoas como devem fazer as coisas
- Ainda que estivesse no meu feitio, não sei dizer como se deve fazer uma coisa destas
- Ainda que fosse possível dizer uma coisa destas, não o faria, porque o caderno representa acima de tudo uma emocionante DESCOBERTA PESSOAL
O QUE POSSO DIZER:
- Como já fiz…
- Como fui fazendo…
- Como venho fazendo…
- Como gostaria de conseguir fazer…
- Como fazem algumas pessoas que conheço…
Um caderno é como o ADN, como a voz, como as impressões digitais: não existem dois iguais. Se houver, ou um deles está a mentir, ou talvez estejam os dois.
Então, a ideia, é o caderno ser o mais parecido possível com aquele/aquela que eu sou, com a verdade deste meu momento. Mas isso vai mudando, e assim, o caderno irá, certamente registar uma sucessão de verdades, ele irá ser diferente ao longo do tempo. Se assim não for, é mentira.
DIÁRIO DA LUZ E DA PELE
Foi um caderno que os meus alunos fizeram.
Pensei falar sobre isto porque talvez abra horizontes relativamente ao caderno.
Texto- próprio ou alheio
Escolha da cor que vai acompanhar este processo (uma cor em todos os cambiantes, modulações e tons possíveis) - O tema, que apenas excepcional e justificadamente poderia ser alterado durante o processo
Forma, matéria objectos, texturas, fotografia, desenho, colagem, pedaços de coisas, da natureza, ou não (dar exemplos: pacotes de açúcar, flores, sementes, incensos, fechos eclaires, etc), sempre na cor escolhida.
- O nome pode ser importante; neste caso ele foi dado por mim e era imutável, porque os ajudava a orientarem-se, era a sua bússola.
- Mas dar um nome ao caderno pode ser uma forma de tomar consciência do processo. Seria interessante que houvesse espaço para ir rebaptizando o caderno. No final, uma análise dos vários nomes que o caderno foi tendo, pode ser um indicador interessante de muita coisa e pode ensinar muito.
- Em que consistia este caderno: Alunos de uma escola de ensino artístico (artes plásticas) na disciplina de Português.
- O que se pretendia:
Basicamente, o mesmo que em relação a todos nós: que os alunos tomassem consciência do seu crescimento. Crescer, cresce-se sempre, mas às vezes não se dá por isso e portanto cresce-se menos. Se se crescer com um irmão gémeo, que neste caso é o caderno, sabemos do nosso crescimento através do nosso irmão. Que é a imagem. O caderno é um espelho. E eu posso intervir em mim através do caderno, intervindo nele, porque o espelho funciona nos dois sentidos.
- Para que servia o nome, que também era um tema:
Para não se perderem, para terem um fio condutor
Todos têm um fio condutor, podem é não saber disso, mas se formos ver bem, não anda muito distante da luz e da pele. Se calhar, a pele é o nosso caminho para a luz. Caminhamos sobre a pele com o olhar, com as mãos, com as agulhas, com o olfacto, com a pele, com a nossa pele. A luz que procuramos é a que está dentro do corpo e num local secreto que o corpo ilumina. Mas temos de passar pela pele, enterrar, aprofundar, mergulhar nos poros, e penetrando no interior do corpo, rectificá-lo, trazer à luz a preciosa pedra unitária.
Quando falo em luz não me refiro àquela luz artificial dos catecismos antigos, mas à luz que realmente ilumina o interior do corpo, a luz de profundidade, a visão do bem estar, da saúde, da compreensão do eu como um ser único, íntegro, indivíduo (in-dividuo), que significa o que não está dividido, porque “in” é um prefixo de negação.
A doença é quando o corpo se encontra fragmentado dentro de si e em relação ao todo, ao mundo, aos outros. No fundo, é isso que se pretende: pelo mapa da pele mas penetrando para lá da pele, mergulhar e percorrer os misteriosos corredores internos.
OUTROS CADERNOS
O CADERNO DOS SONHOS:
O lugar dele é sempre à cabeceira, Às vezes debaixo da almofada, às vezes ao lado da almofada, deve ter uma capa resistente para resistir ao corpo dos sonhos. É inseparável da caneta, que nunca deve afastar-se. Um caderno à cabeceira sem uma caneta (já me aconteceu) não serve para nada.
No caderno dos sonhos tanto posso escrever como desenhar, porque há sonhos que são desenháveis, que só podem mesmo ser desenhados…
Mas há O CADERNO DAS ESCRITAS, que deve colar-se ao meu corpo, porque posso escrever a meio da noite à saída de um sonho, na casa de banho, a fazer o jantar, a estender a roupa, a ver um filme, a andar na rua….
Daria jeito ao nosso caderno ter um corpo que lhe permitisse habitar vários meios: da banheira à cama passando pela rua, pelo autocarro ou pelo… cinema.
O factor presença, proximidade, intimidade, é muito importante. Não me serve de nada ter o caderno em casa se estou na rua, ou no carro se estou no teatro, ou na escola se estou a ver uma exposição.
Tenho também O CADERNO DA MEMÓRIA, onde colo coisas: bilhetes de espectáculos, postais que me enviam, moedas encontradas na rua, fotografias que me oferecem, espécies vegetais, cartões de visita, pequenos catálogos de exposições, e um sem número de coisas. (Este aprendi-o com um amigo)
O CADERNO DAS VIAGENS, onde escrevo percursos, sítios, desenho coisas que vi, frases que retive, frases que criei, pessoas que conheci, ideias que surgiram. Nesse caderno preparo as viagens, vivo as viagens e recrio as viagens. (Este aprendi-o com… talvez com Deus)
Um caderno pode ser utilizado como um diário, com a regularidade do sol, mas pode ser quase um horário, se o usarem com a mesma frequência com que eu o faço. E não tenham receio se emudecerem um dia. O caderno, se é quadrado, pelo menos na origem, não tem de ser rígido. Pode ser a quadratura do círculo, e ser flexível, móvel, girar.
É claro que eu posso ser caótica, totalmente indisciplinada e anarquista, porque eu apenas tenho que o mostrar a mim mesma, que foi quem docemente me ordenou que o fizesse.
Quanto ao que se deve lá pôr, eu diria: tudo!
Mesmo que pensem que não sabem desenhar, não devem ter pudor em desenhar, se isso fizer sentido para vós, se o impulso do desenho saltar para a vossa mão
Eu não sou um bom exemplo, porque não tenho um caderno, tenho vários, um em cada sítio: cozinha, quarto, mochila, pasta, ao pé do PC, carro, etc. Nem sei quantos tenho. Se eu tivesse de fazer um caderno por me mandarem fazer, ou teria de agrafar os cadernos todos, arquivá-los num dossier, ou arrancar-lhes as folhas e dar-lhes uma organização. Realmente eu não sou um bom exemplo. Tenho o caderno dos sonhos, o caderno dos exercícios, o caderno de qualquer coisa que ando a escrever (que pode ser romance, cantata, musical, poemas, crónicas, este texto que estou aqui a transmitir-vos hoje, foi escrito assim, aos bocados…), o caderno dos alunos, o caderno das reuniões, o caderno das coisas que ando a estudar, o caderno dos desenhos, o caderno onde colo coisas, e acho que não acaba aqui… Se vocês forem assim pessoas dispersas terão de arranjar um truque para parecer que têm um caderno. Na verdade vocês têm um caderno, e mais outro, e mais outro…
Para as reuniões muito chatas (desde que não estejamos nós a dirigir), à falta de caderno, é sempre possível fazer poemas à margem das notas oficiais. Fiz imensos poemas numas reuniões assim… depois recortei os poemas e colei num caderno… que já não sei por onde anda.
E também podem dobrar em quatro os vossos fólios, à maneira da palavra latina “quaternum”, e fazerem, e até ritualizarem, o momento de criação do vosso caderno. Para quem isso for importante. Não há nada que seja proibido se for para ampliar e crescer.
Alguns cadernos que referi são cadernos parciais: de sonhos, de escrita, mesmo o dos meus alunos, com escrita e objectos e fotografia, mas o caderno é potencialmente, não obrigatoriamente, mas potencialmente, mais amplo, porque como terapeutas holísticos de nós mesmos ( e por extensão, do mundo) que todos deveríamos ser, nada poderá ficar de fora, e, de acordo com as características de cada um, que, naturalmente, dará diferente peso às várias possibilidades, aí poderemos incluir sonhos, reflexões, intuições, citações, revelações, esquemas, grelhas, questionários, listas, argumentações, entrevistas, reportagens, notícias, crónicas, críticas, apontamentos, descobertas, interrogações, dúvidas, possibilidades, bílis, cartas de amor…
Sob as formas de texto, traço, desenho, fotografia, objecto, colagem, corte, rasgão, cheiro, sabor, beijo e até… som (por que não poderá uma gravação num suporte qualquer fazer parte de um caderno assim? Ou um suporte multimédia?)
Enfim… acho que comecei a falar do quadrado e terminei a falar do infinito, porque o “problema” ou o encanto (depende do ponto de vista) do quatro é que pode sempre transformar-se num oito deitado, o sinal do infinito. Cabe-nos a vós decidir se queremos um caderno atado com uma corrente a uma secretária, ou um caderno a voar por aí e nós agarrados a ele a sobrevoarmos o mundo, ao estilo Super-Homem, Mary Poppins, anjo ou folha de árvore em outonal dia de vento e da desarrumação que precede a ordem, o compasso quaternário…
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