Risoleta Pinto Pedro
A construção do Templo

Triste de quem vive em casa/Contente com o seu lar,/Sem que um sonho, no erguer de asa/Faça até mais rubra a brasa/Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!/Vive porque a vida dura./Nada na alma lhe diz/Mais que a lição da raiz/Ter por vida a sepultura.[…]

F Pessoa, Mensagem

Não tenho o hábito de citar-me a mim própria, até costumo esquecer-me de tudo o que escrevi e já me aconteceu não reconhecer ou ficar surpreendida com textos meus, mas dei-me conta, ao iniciar a reflexão de aproximadamente uma folha A4 sobre este tema, como me foi proposto, e só nesse momento, que já escrevera um livro, uma ficção/ensaio sobre o tema, a que dei o título de O Arquitecto. Que encontrei agora, como leitora e que, confesso, me comoveu. Primeiro percebi que não fui eu que o escrevi. Depois percebi que fui eu que o escrevi. E que tudo isto é verdade. Ajudou-me a encontrar-me mais um pouco comigo e a sentar-me confortavelmente no lugar que me pertence, ocupado por aquela que ao longo da vida, insinuante e sinuosa, foi tomando o meu lugar.

De qualquer modo, é sempre um desafio interessante, após ter escrito um livro sobre o assunto, ver-me limitada a uma página ou uma folha.

O excerto de um poema de Pessoa, da Mensagem, com que inicio esta reflexão, fala da necessidade de abandonar a falsa segurança que é a casa, aqui tomada no seu sentido mais fechado, e fala da insatisfação que funciona como mola para que nos desencostemos da parede húmida da casa fechada. O mesmo se passa com os templos. Também o templo, se mal entendido, pode tornar-se claustrofóbico, bolorento e húmido, por isso há que cuidar de ventilá-lo, deixar que o sol e o ar entrem, e que a chaminé liberte o que deve sair. Que o templo se enraíze mas ao mesmo tempo se eleve e se aprofunde e assim se afunde.

Que o templo seja leve como tenda. Sólido como túmulo. Requintado como palácio imperial. Perfumado como jardim. E que não esqueça o esgoto. Por causa da arrogância. E da tolerância. Deve o templo ter o chão esquadrado e no chão alternados quadrados. Deve ser quente e ter gente. Fala-se de Salomão, mas não foi ele o primeiro.

O templo pode ser uma arca, como a de Noé, uma barca, como as do Infante, um castelo, como o de Gualdim Pais, um balão como o do Padre Bartolomeu, um coração como o de todos nós. O templo mais estável, que não é o mais fixo, mas o mais flexível, é o que se constrói sobre uma pedra de sabão, da cor do coração.

Nós somos um templo vivo, em carne, linfa, osso e outros materiais de tecnologia de ponta com que o homem e suas maravilhosas criações nunca conseguirá rivalizar. No mais interior de nós existe uma estrutura gótica que é a coluna. A coluna do meio, ladeada de outras duas, superiores e inferiores. Esta é a estrutura. Para cá desta estrutura está a carne. Para lá desta estrutura está o supremo mistério, o milagre da vida que anima o pó. Somos um templo de carne antes de se transformar em pó.

Os templários realizaram-no em pedra, transportando o Templo de Jerusalém para a Charola de Tomar, mas essa seria agora para nós uma forma muito fácil de construir um templo. O Templo físico de Jerusalém e dos Templários está para o templo coronário, este tão profundamente mais alto, tão profundamente mais fundo, como as viagens de navegação estiveram para as viagens que nos compete agora fazer: tão profundamente mais longe, tão profundamente mais perto.

Quando os templos se tornam asas e voam e perdem o contacto com a Terra protectora, como as asas de Ícaro, quando os templos se erguem muito alto e esquecem as raízes que lhes rodeiam as fundações, costumam ser destruídos. Podemos ver isso no tarot, com o arquétipo da torre, ou na televisão, com a queda das torres. Quando os templos se fecham começam a ser destruídos a partir de dentro, porque o gérmen da destruição dá-se bem em espaços fechados.

Mas estamos em tempo e em templo de reciclar. É sobre ruínas que se constrói o templo. Sobre as míticas ruínas do templo de Salomão, sobre as ruínas reais dos templos que tentámos construir até hoje desde um tempo de que já não nos recordamos.

É a partir do tapete que se constrói o templo como é a partir do chão que nos levantamos da queda.

Que nada se perca, que tudo se transforme, que não se sacuda o pó da rua para debaixo do tapete, mas que com o pó que tocámos ao entrar no dia em que fomos admitidos na vida e a água que ainda de olhos bem fechados nos beijou as mãos, ou com o caudal de uma enxurrada ou com as lágrimas, construamos mais um tijolo e assim acrescentemos mais um degrau na infinita escada que quanto mais subimos mais se aprofunda. E é bom que o saibamos, porque há sempre um sol pronto a derreter as asas dos templos e das casas.

Aqui me remete o símbolo para a universal imagem do Homem de Vitrúvio que da Vinci imortalizou. Ou para um sonho. Sonho com o Homem de Vitrúvio; ele é o Ser no seu perfeito e arquetípico templo círculo.

Firmitas, utilitas, venustas.

Estabilidade, utilidade e beleza.

O Ser encontra-se no patamar de uma escadaria. Para cima setenta degraus. Ou mais. Para baixo outros tantos. Nunca menos. Ri-se, porque vê o infinito, porque é reconfortante saber que, quer suba, quer desça, tem no cimo, como em baixo, um ser de flutuante e doce colo. O mesmo, ou dois do mesmo, ou o mesmo de dois. Aprende este ser a descer, após o que repousa em suaves (a)braços. Mas não termina ainda aqui a viagem.

Este homem ou mulher, que já foi caracol enrolado sobre si mesmo, que já foi animal aniquilado pela gravidade, que já sentiu no corpo a perfuração do metal entrando pelo chacra de raiz, que já sentiu espalhar-se no corpo o rodopiar da agressiva espada, que já sentiu na pele a repugnante humidade do molusco, estica-se infinitamente em todos os sentidos prolongando as linhas que no seu centro (porque tem um centro) se cruzam. Agora, a escadaria multiplica-se em todas as direcções e em cada câmara, a que os degraus conduzem, está um anjo. Assim como em baixo, assim em cima, assim como ao norte, assim ao sul, assim como ao oriente, assim ao ocidente e nos milimétricos pontos intermédios. São suaves e flexíveis os músculos, firmes e estáveis os ossos, fortes e rápidos os tendões, seguro e líquido o sangue. Roda dentro de um círculo de luminosa linfa. Esta mulher, que também pode ser homem, ninfa, menino, menina ou um anjo, roda dentro de uma bolha de luz azul, dourada e violeta, prolonga os braços, as pernas e a cabeça em linhas infinitas com que impulsiona o movimento do círculo. Primeiro, gira no ventre que, pela estranheza, não reconhece como ventre, mas templo de bem-aventurança, finalmente temperado, finalmente suave, finalmente acolhedor, finalmente aberto, finalmente livre, depois o ventre já é cosmos, finalmente próximo, finalmente casa, finalmente fiável, finalmente atraente, finalmente seguro, finalmente aventura, e agora já é canal de luz por onde suave o círculo desliza e já nasceu. E se distendeu. Sem dor. Em esplendor. A primeira viagem terminou. Anuncia o venerável ser que, passados dez, cem ou mil ou cem mil anos, o que é a mesma coisa, a segunda viagem começou.

Novembro 2006

 

 




 




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