- Chamaram século das luzes ao século da razão, do positivismo, do racionalismo. E foi, e foi. O racionalismo enxuto, puro e duro, foi luz e deus no tempo de o ser. Mas tudo tem o seu tempo. Agora, o positivismo desaustinado pode ser um mergulho para trás, para o mais profundo escuro.
Quem dizia isto era Helena e vinha esta conversa a propósito do seguinte:
- Sei que é politicamente incorrecto, ecologicamente incorrecto, ideologicamente incorrecto, economicamente incorrecto, esteticamente incorrecto, porque ainda por cima é foleiro. Dizem. Mas eu… adoro-as. Adoro as luzes de Natal. Vinha a passar ali ao Cais do Sodré e só não parei para fotografar porque trazia uma fila de carros atrás, vinha a passar ali naquele caos em que esta parte (e outras) da minha querida cidade está transformada, era de noite, não se via o caos. Apenas se via, bem no centro do largo, como se tivesse caído do céu, sem perder o brilho, nem o céu, uma enorme estrela. Esta altura do ano em que a cidade é invadida pelas estrelas encanta-me, não me ilude, ilumina-me, não me aliena, anima-me, não me deprime, irradia-me, não me obscurece, pelo meio do frio aquece-me. Quem gosta destas coisas são as crianças e os simples, sei que isto não é normal numa pessoa da minha idade, cultura, actividade, profissão, estatuto, etc, etc, e no entanto…
“E no entanto…”, continuava:
- Aquela estrela ali está, ali vai estar, de dia não se distinguindo de toda a poluição visual que é o espaço do Cais do Sodré, com autocarros, táxis, trânsito caótico, fumos, escapes, lixo, pressas, correrias; à noite ergue-se a estrela como uma flor de luz nascida do chão, do betão, ou como si mesma, caída do céu, e resplandece por entre a maravilhosa e colorida diversidade humana que por ali transita ou pára, Reis Magos vindos de todos os orientes: indianos, chineses, africanos, gente de leste, brasileiros. Todos brilham como estrelas, reis magos que a luz crua do dia oculta, ou mostra no mais superficial de si: o medo, a miséria, a discriminação, o abandono, a margem. Miragem. Por isso, eu que até sou tendencialmente diurna, gosto da luz da noite que o Natal vem iluminar. E entre os reis magos da Bíblia e da lenda ou estes, escolho os do betão. E, com eles, adoro a estrela e todas as outras que aí andam empoleiradas sobre a cidade. Apesar dos cépticos, dos adultos, dos ideologicamente correctos, apesar de mim. Porque todos têm razão. Acolho a razão deles e acrescento-lhes a luz de uma estrela caída ou pousada no meio do Cais do Sodré, a caminho de Belém. Sempre com o olhar entre o oriente e o ocidente, percorro a cidade e elevo os olhos às estrelas que como sementes com asas se erguem no ar a fertilizar as casas. Apesar de não ter razão. Nem querer tê-la. Entre a razão e a luz, acolho a estrela e escolho vê-la.
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