Nicolau é um menino que nasceu no solstício de Capricórnio, o que significa que faz anos no mesmo dia do menino Jesus; com algumas diferenças relacionadas com a idade: um tem 2006 anos, o outro já tem sete, um nasceu num estábulo, o outro nasceu numa maternidade. Têm algumas coisas em comum: o estábulo em que nasceu Jesus era uma gruta, Nicolau nasceu numa cidade situada numa região montanhosa com muitas grutas, a mãe de Jesus chamava-se Virgem, quando nasceu Nicolau, a sua mãe veio à janela à meia-noite, já o menino dormia no berço, e viu a constelação de Virgem despontar no horizonte e foi a correr dizer-lho ao ouvido; um vive no coração de toda a gente (mesmo dos que não o sabem), o outro também vive num espaço assim: de todos e de ninguém, o não-espaço que é o campo de refugiados numa fronteira; um fez muitos milagres que poucos compreenderam, Nicolau também os faz, sobretudo à noite, quando todos dormem, mas também na escola improvisada para os meninos refugiados, quando as recordações dos acontecimentos difíceis que o arrancaram à sua família, à sua casa, ao seu país o assaltam, ele recorre aos milagres e transforma tudo. É nessas ocasiões que ele é visitado por uns seres que estão sempre a mudar de nome; parecem anjos, são todos muito parecidos, apenas mudam de roupa, não de modelo, que é sempre o mesmo, umas túnicas compridas umas vezes azuis, outras cor de pêssego, outras rosa chá, outras ainda douradas como os cabelos, que também podem ser negros como penas de corvos, ou ruivos como um sol sobre mar, e mudam também de penteado: ora os cabelos lhes caem sobre os ombros, ora são apanhados no alto da cabeça, ou enrolados em muitas tranças finíssimas, e ele até diria que são sempre o mesmo, com roupagens diferentes para despistar, se não fosse apresentarem-se sempre com um nome diferente: umas vezes chamam-se Sol, outras vezes Mithra, outras vezes Apolo, outras Osíris, ou ainda, Jesus. Todos eles dizem ter nascido no mesmo dia que Nicolau: o dia de Natal, têm isso em comum. Deve ser por isso que visitam Nicolau com assiduidade, principalmente quando se aproxima o Natal, mas em especial este Natal em que Nicolau faz oito anos e perdeu tudo: família, casa, país. Têm outra coisa em comum: deixam sempre um misterioso e confortável calor no ar, e um rasto de estrelas douradas pequeninas no espaço onde se desvaneceram.
Foi por essa altura que Nicolau começou, por todo o lado, com os lápis de cor que uma senhora vestida de branco que visitou o campo lhe ofereceu, a desenhar estrelas com asas a que dava os nomes dos seres visitantes. Isso intrigou os adultos, porque Mithra, Osíris, Apolo não são nomes comuns para uma criança da idade dele saber. Então, percebendo que não se pode fornecer toda a informação aos adultos (não estão preparados, é preciso ir devagar, com eles, para não os chocar…) Nicolau começou a chamar sol às suas estrelas e tirou-lhes as asas. As estrelas ficaram com um ar algo desasado, e passaram todas a ter o mesmo nome, mas os adultos ficaram um bocado mais descansados. Outros adultos com menos preocupações teriam continuado a achar estranho que o menino sobrevivente da guerra desenhasse tantos sóis, mas aqueles adultos do campo de refugiados tinham demasiadas preocupações com a alimentação e o aconchego e conforto dos meninos e dos adultos, e com as suas próprias dores e feridas recentes, para poderem dar-se ao luxo de perder tempo a observar pormenores.
Mas Nicolau tinha todo o tempo, e precisava de ocupar o pensamento com milagres que o ajudassem a esquecer o pesadelo da guerra. Lembrando-se do que a mãe lhe dissera no berço, começou a observar o céu com muita atenção.Com tanta atenção e constância e concentração o fez, que chamou a atenção de um adulto: o único que no campo tinha disponibilidade para observar crianças a observar o céu, porque ele próprio, desde que perdera as pernas durante uma explosão, se tornara um observador da terra e do céu. Observava o céu e observava o observador do céu em que se transformara Nicolau. Este não se sabia observado, mas apercebeu-se que havia um adulto, José, que tinha tempo para conversar com ele, a falta das pernas tornara-se um ganho em disponibilidade e tempo. Não se pode conversar nem observar muito quando se anda ocupado a correr de um lado para o outro como um louco. Como a maior parte dos adultos.
- O que estás a ver?
- Nicolau apontou com o dedo uma constelação que o intrigava, por causa das três estrelas no centro.
- Ah, Orion, muito bem. Estás a ver aquelas três estrelas ali alinhadas? São os três Reis Magos, que vêm de Orion…
- De onde?
- Do Oriente. Hoje é noite de Natal, eles preparam-se para fazer a viagem de visita ao menino. Sobe para aqui, Nicolau, hoje é o teu aniversário, não é? Deixa que te conte uma história.
Foi então no meio de uma terra de ninguém, que um menino Jesus desses que nascem aos milhões todos os anos, ouviu, ao colo de um José sem pernas, sobre uma cadeira de rodas quase centenária, benevolamente observados pela constelação de Virgem no céu, a história do nascimento de um menino numa gruta situada no ventre de uma montanha onde pastavam as cabras da constelação de Capricórnio que pastores (ou anjos?) guardavam. E também este nascimento, como o outro de há dois mil e seis anos atrás fora anunciado por anjos trazendo inscritos os nomes dos vários sóis do mundo. Mesmo sem pai, mesmo sem mãe, Nicolau teve um pai na terra, teve uma mãe no céu, e soube da próxima chegada dos Magos que no oriente preparavam as oferendas que lhe trariam. Como a um pequeno rei. E no campo de refugiados houve um presépio e foi Natal.
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Existe, algures no céu, no meio da constelação de Virgem, por altura do solstício de Inverno, celebrado por vários dias, entre 21 de Dezembro e 6 de Janeiro, mas com o seu apogeu na noite de 24 e no dia 25, um Natal muitíssimo especial. É o mais luminoso de todos os natais, as luzes cintilam nas árvores decoradas, a mesa está posta com todos os melhores doces conventuais cozinhados por todas as freiras dos melhores conventos, os chocolates não faltam dentro das caixas de bombons, as músicas suaves sucedem-se nos suaves acordes, em tons de embalar que recordam as canções ouvidas no berço, há lareiras a aquecer os corações e brinquedos espalhados numa carpete de estrelas, anjos sobrevoam os sóis colocados no cimo das árvores (ciprestes, abetos, pinheiros, laranjeiras, limoeiros, lúcia-limas, e enormes arbustos de alecrim, alfazemas, rosmaninhos) deslocando uma suave brisa sobre as cabeças, a qual faz voar levemente os cabelos em carícias nos rostos. Neste enorme regaço da constelação de Virgem não faltam as figurinhas do presépio, nem livros, flautas, e até jogos de um computador muito avançado que vai haver no futuro e em que, quer o teclado quer o ecrã, são virtuais, aí há. Há luz, calor e festa. Não se sabe quem executa este opulento Natal no seio da constelação de Virgem, mas suspeita-se que sejam as mães, reunidas numa enorme conspiração silenciosa preparada no recanto mais secreto dos seus corações. É este o Natal dos meninos que já partiram para a misteriosa viagem e que na noite de Natal se reencontram com as mães sob o benévolo olhar de Virgem, a acolhedora constelação. E assim como na Terra, é Natal no céu.
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