RICARDO DAUNT

Sobre algumas raízes profundas do
Movimento do Orpheu

15. Racionalismo

O racionalismo entende que nossa experiência é disjuntiva, descontínua, e que uma ação unificadora superior atua sobre tudo para que dessa forma o mundo exista. Confiam, ademais, os racionalistas, em que a relação entre um objeto e a idéia que busca apreendê-lo se estabelece fora da experiência temporal possível. No idealismo essa ação é desempenhada por uma espécie de testemunha absoluta, que relaciona as coisas entre si, lançando mão de categorias. Para o pragmatista, o universo dispensa a existência de uma sustentação trans-empírica; ao contrário, possui em si uma estrutura contínua e concatenada. A verdade de uma idéia significa tão-somente suas operações, não o objeto da idéia, ou algo em seu interior impossível de ser descrito.

James, também psicólogo, realizou um estudo da mente, no intuito de definir a consciência, o pensamento e seus atributos, bem como o papel e a importância das sensações.

"A consciência, desde o dia em que nascemos, é de uma abundante multiplicidade de objetos e relações, e o que chamamos sensações simples são os resultados da atenção discriminativa, elevada freqüentemente a um grau muito alto" (1).

Comumente existe o entendimento, em psicologia, de que as sensações são os fatos mentais mais simples do ser humano. William James rebate essa tese, que gera por sua vez uma outra atitude equivocada, que é a de que por entender as sensações dessa forma, a psicologia acaba por considerá-las em primeiro lugar, ao invés de atentar para o pensamento.

Pensamento, para James, é toda forma de consciência, qualquer que seja ela. O filósofo e psicólogo americano aponta as seguintes características do pensamento: todo pensamento tende a ser parte de uma consciência pessoal (onde estão fundados os estados de consciência com os quais lidamos), em cujo interior esse se encontra sempre mudando, já que é sensivelmente contínuo (2). O pensamento, ainda, lida sempre com objetos que são independentes de si próprio, procedendo a escolhas e exclusões de partes desses objetos, também continuamente (3).

Os únicos estados de consciência lidados por nós estão fundados nas consciências pessoais, nas mentes, nos egos, nos sujeitos (eu e você) particulares concretos.

Nesses termos, o ego pessoal, antes que o pensamento, poderia ser tratado como o dado imediato em psicologia. O fato consciente universal não é 'sentimentos e pensamentos existem', mas 'eu penso' e 'eu sinto' (4).

Em estados anestésicos profundos, ou sob o estado de hipnose, foram detectados sentimentos e pensamentos ocultos; estes, fazem parte de egos pessoais secundários. Via de regra, esse egos, também freqüentemente chamados de segunda personalidade, formam unidades conscientes, têm memórias contínuas e sua expressão tende para a personalidade dominante; e, via de regra, também, esses egos secundários são anormais e resultam, como entende Janet, de uma partição do ego completo (5).

Certas respostas a estímulos, em catalépticos e histéricos, por exemplo, que eram no passado apontadas como meros reflexos fisiológicos, são na verdade escoltadas por sentimentos. Janet admite, ainda, que até mesmo pensamentos estúpidos tendem a desenvolver memória (6), de tal sorte que todo pensamento, qualquer que seja o estado em que ele é gerado, propende a assumir a forma de consciência pessoal. Assim também, as expressões rudimentares, oriundas de transe, por exemplo, são o trabalho de uma parcela inferior da mente natural do sujeito, posta fora de controle (7).

James denomina as sensações de estados de consciência duradouros de objetos simples, se intensos forem; imagens , se forem fracos; se os estados de consciência duradouros forem de objetos complexos, chama-os de 'perceptos ', quando intensos; 'conceitos ' ou 'pensamentos ', quando fracos. "Para as consciências rápidas temos somente aqueles nomes de 'estados transitivos' ou 'sentimentos de relações'" (8).

Os estados cerebrais não morrem instantaneamente, como de há muito se sabe. Uma sucessão de estados cerebrais é modificada pelo estado inercial anterior, alterando seu resultado. Se uma sucessão cerebral a foi excitada, e em seguida b e depois c , a consciência total presente não será apenas uma resultante de c, como também das vibrações de a sobre b e de b sobre c . Em outras palavras teremos uma resultante que se exprimirá matematicamente pelo processo a exponenciado pelo processo b, exponenciado, por seu turno, pelo processo c .

Todas as imagens mentais que nos ocorrem estão embebidas em um fluxo contínuo, em uma espécie de "água livre da consciência", no dizer de James (9). O valor de tais imagens está contido numa espécie de auréola que açambarca e acompanha a imagem, fundindo-se a ela como se a ela pertencesse. A despeito disso, a imagem escoltada nessa água livre da consciência (que por seu turno flui e reflui no curso mental), é ainda a imagem do mesmo objeto, agora acompanhada do sentido de suas relações, próximas ou remotas, do eco evanescente de sua origem e do sentido de uma espécie de plenitude para a qual ela está sendo conduzida em sua aparição (10).

A idéia de algo, ou o objeto total, em nossa mente, como entende James, está sempre presente onde as palavras -- que traduzem, qualificam ou lembram esse objeto total -- são assimiladas e entendidas, "não somente antes e depois que a frase foi falada, mas também enquanto cada palavra separada é pronunciada" (11). A consciência da idéia e das palavras (que as traduzem)" são consubstanciais. Elas são feitas [idéias e palavras] do mesmo 'estofo da mente' e formam um fluxo inquebrável" (12).

Um epiteto jameseano resume seu entendimento da mente humana: "a mente é em cada estágio um teatro de possibilidades simultâneas" (13) (itálicos nossos). O exame do teor desse simultaneísmo, bem como a extensão das relações conjuntivas, sempre presentes, e sobre as quais já se tratou ligeiramente, leva-nos de imediato ao empirismo radical de James.

 

(1) JAMES, William -- "O fluxo do pensamento [capítulo de Princípios de Psicologia]". In : Os pensadores . Op. cit. , p. 49.

(2) Mas o quê significa isso? Primeiro, que mesmo quando ocorre um intervalo temporal a consciência, ao término dele, sente como se o intervalo estivesse ligado à noção anterior a ele, como outra parte do mesmo ego; segundo, que as mudanças que têm lugar de um momento para outro na qualidade da consciência jamais são abruptas. Cf. ibid ., p. 58.

(3) Cf. ibid. , p. 49-50 et passim .

(4) Ibid. , p. 50.

(5) Janet examinando uma paciente sonâmbula anestésica, de nome Lucie, constatou que quando sua atenção era absorvida por uma conversação com outrem, sua mão anestésica ouvia e respondia a questões, como a seguir: 'Você ouve?' perguntou-lhe Janet. 'Não', respondeu ela. 'Mas para responder você deve ouvir.' 'Sim, é quase isso.' 'Então como você consegue?' indaga Janet. 'Eu não sei.' 'Deve existir alguém que me ouve', insiste ele. 'Sim.' 'Quem?' 'Outra pessoa que não Lucie', ela respondeu.' "Ah! outra pessoa. Podemos saber seu nome?' 'Não', ela disse. 'Sim, será mais conveniente'. 'Bem, Adrienne, então'. Uma vez batizada com um nome forjado, a personagem subsconsciente se expandiu e exibiu melhor seus traços psicológicos, como testemunhou Janet. Cf. ibid. , p. 51. Não ocorre por hipótese, ao leitor, o diálogo das veladoras no poema dramático "O marinheiro", de Pessoa?

(6) Cf. ibid. , p. 53.

(7) Cf. ibid ., p. 52-3 et passim .

(8) Cf. ibid., p. 65. James cita o filósofo Laromiguière na passagem adiante, que vem bem a propósito: "Não existe ninguém cuja inteligência não abraça simultaneamente muitas idéias, mais ou menos distintas, mais ou menos confusas. Ora, quando temos muitas idéias ao mesmo tempo, uma sensação peculiar cresce em nós, a sensação de relação, ou sensação-relação (sentiment-rapport ). Vê-se imediatamene que essas sensações-relações, resultando da proximidade de idéias, devem ser infinitamente mais numerosas do que as sensações-sensações (sentiments-sensations) ou [do que] as sensações, que temos da ação de nossas faculdades. O mais insignificante conhecimento da teoria matemática das combinações provará isto ... Idéias de relação se originam em sensações de relação. Elas são o efeito de nossa compraração de sensações e de nosso raciocínio sobre elas" (em itálico, no original). Laromiguière apud JAMES, William, loc. cit.

(9) Cf. ibid ., p. 71.

(10) Terá passado pela mente do leitor o paulismo?

(11) Cf. JAMES, William -- Op. cit ., p. 91

(12) Cf. loc. cit.

(13) Ibid ., p. 96.