RICARDO DAUNT

Orpheu 3 -- a  revista que não houve

O terceiro número da revista Orpheu, que mutilado e tardiamente nos chegou às mãos nos anos 80, é, em grande medida, mais um drama de bastidores do que um documento epocal cuja recepção deve ser examinada.

Sua recepção, qua revista, não ocorreu, embora pudéssemos, como mero  exercício intelectual, elaborar algumas questões do tipo: qual teria sido o desfecho do movimento órfico, caso o terceiro número tivesse saído da gráfica? Que nomes, então, participariam do número seguinte, o quarto? Teria havido um quarto número? Sob que circunstâncias? Como teria reagido a imprensa portuguesa a esse fato? Caso isso acontecesse, e supondo que Orpheu não morreria nos braços do futurismo, como de fato ocorreu, desenvolvendo caminho próprio e autônomo, como seria a edição única de Portugal Futurista? Teria de qualquer maneira havido Portugal Futurista? Se Orpheu continuasse, o que teria ocorrido com a Presença? Esta teria existido ainda assim? E daí por diante.

Lidamos contudo com fatos, história e investigação literária, nos quais não há espaço para adivinhações. Nada, contudo, nos impede de tomarmos contato com uma parte da possível história e do provável conteúdo de um documento que não chegou a existir para seu tempo.

Para tanto vamos em primeiro lugar, com o auxílio imprescindível das achegas de Arnaldo Saraiva à edição do incompleto conjunto de provas tipográficas que se supõe viesse a integrar Orpheu 3[1], traçar com a máxima brevidade uma cronologia editorial de Orpheu, após o que iremos, também de modo breve, traçar o perfil dessa edição. 

 

Cronologia editorial do Orpheu 

1915 

20 de fevereiro -- Orpheu 1 entra no prelo. 

25 de março -- Saem os primeiros 100 exemplares, depositados na Livraria Brasileira, em Lisboa. 

4 de abril -- Pessoa, empolgado, afirma: "somos o assunto do dia em Lisboa"[2]

28 de junho -- Edita-se Orpheu 2. 

10 de agosto -- Sá-Carneiro escreve a Pessoa de Paris, demonstrando preocupação sobre o terceiro número da revista, cogita em uma redução da tiragem e do número de páginas, bem como em produzir uma edição com papel mais barato. 

24 de agosto -- Em carta a Fernando Pessoa, Sá-Carneiro afirma: "francamente, não sei como se há-de organizar Orfeu III"[3]

31 de agosto -- Sá-Carneiro esboça o sumário do terceiro número com base  nas sugestões de Pessoa. De Álvaro de Campos, publicar-se-ia, em princípio, "A passagem das horas"; de Mário de Sá-Carneiro, "Para os indícios de ouro"; de Numa de Figueiredo, "Pilhérias em francês"; de Antônio Bossa, "Pederastias"; de Albino de Menezes, "HZOK" e de Almada, "A cena do ódio"[4]. Na mesma carta diz: "o número 3 do Orfeu deve entrar no prelo, o mais tardar, nos primeiros dias de outubro"[5]

13 de setembro -- Mário de Sá-Carneiro escreve a Pessoa: "temos desgraçadamente de desistir do nosso Orfeu. Todas as razões lhe serão dadas, melhor pela carta do meu pai que junto incluo e que lhe peço nao deixe de ler. Claro queé devida a um momento de exaltação. No entretanto cheia de razões pela conta exorbitante que eu obrigo o meu Pai a pagar". E mais adiante: "o meu desgosto é muito grande" mas "em todo caso sempre se fizeram dois números"; e pede a Pessoa que atire a culpa toda de não sair o terceiro número de Orpheu nele, Sá-Carneiro[6]

25 de setembro -- Sá-Carneiro concorda com Pessoa quando este diz que "o Orpheu não acabou" e informa que Santa-Rita Pintor está disposto a pagar as despesas tipográficas, mas previne o amigo de que acha "pior que a morte" ver o futurista como "maitre" do Orpheu. Pouco  depois  Pessoa, por precaução, registra o nome da revista. 

2 de outubro -- Sá-Carneiro, escrevendo a Pessoa, insiste em sua posição desfavorável com respeito a Santa-Rita, acusando-o de usurpador e declara a revista propriedade de exclusiva de Fernando Pessoa. Logo depois, institui-se um comitê redacional, do qual fazem parte Pessoa, José Pacheco, alias José Pacheko, e Almada, de modo a neutralizar o intento de Santa-Rita Pintor. Este, por fim, no final de outubro, renuncia à revista.

 

1916 

26 de abril -- Suicida-se Sá-Carneiro em Paris; o projeto do número 3 de Orpheu é abandonado. 

4 de maio  -- Em carta dessa data, Pessoa comunica a Cortes-Rodrigues o falecimento de Sá-Carneiro. 

4 de setembro -- Pessoa diz a Cortes Rodrigues que vai sair o terceiro número de Orpheu, onde publicaria dois poemas ingleses "muito indecentes". Nesse número, seriam incluídos versos de Pessanha, "A cena do ódio", de Almada, inéditos de Sá-Carneiro, Albino de Menezes, Carlos Parreira e Hors-textes de Amadeo de Souza-Cardoso. Pessoa afirma, por fim, que está "saindo de um período de esterilidade quase total"[7]

Setembro-outubro -- No prefácio que preparou para uma antologia de poetas sensacionistas, destinada ao mercado do Reino Unido, Pessoa/Campos dá como publicado o terceiro número, onde também se inclui a "Saudação a Walt Whitman". 

 

1917 

11 de julho -- Pessoa escreve a José Pacheko, propondo-lhe um encontro cujo tema é a edição de Orpheu 3, dando a entender que a revista se encontrava em fase avançada de edição. Pouco mais tarde, uma nota da edição fora de mercado do "Ultimatum" de Álvaro de Campos informa que esse manifesto apareceria no número 3 de Orpheu

 

1930 

26 de outubro -- Em carta endereçada a Gaspar Simões, Pessoa faz referência a "Além-Deus -- 5 pequenos poemas" que "esti- veram para ser publicados (chegaram a ser impressos) num Orpheu 3 que foi frustrado de cima"[8]

 

1935 

Novembro -- O terceiro número de Sudoeste, de responsabilidade de Almada-Negreiros, inclui várias colaborações dos fundadores do Orpheu, entre elas a de Fernando Pessoa, que termina com as palavras "Orpheu continua" -- e anuncia: "brevemente Orpheu 3"[9]

30 de novembro -- Morre Fernando Pessoa. 

 

194?  

Alberto de Serpa, colecionador, adquire num alfarrábio da cidade do Porto um exemplar de Dispersão, de Sá-Carneiro, dentro do qual se encontram 3 cadernos, com a indicação "Orpheu -- Vol. I -- 1917" volume esse que reuniria, como havia sido previsto desde o primeiro número de Orpheu, todos os quatro primeiros. Examinando a numeração dos 3 cadernos, o colecionador não  tem  dúvidas  em  concluir   que  ali  estava uma  parte do inédito número 3.

 

1949 

Julho -- Alberto de Serpa é apresentado a um advogado lisboeta por intermédio de Almada-Negreiros. Este vende-lhe mais uma parte do terceiro número que lhe faltava, de modo que Serpa fica detentor de um provável e incompleto número 3, faltando-lhe, todavia, as páginas finais (65 em diante). 

 

1951 

João Gaspar Simões registra pela primeira vez, na Vida e obra de Fernando Pessoa, a existência de um terceiro número de Orpheu

 

1953 

Adolfo  Casais Monteiro encontra no espólio de Fernando Pessoa  4 cadernos do número inédito de Orpheu. No mesmo ano, publica, de  Fernando  Pessoa,   Poemas inéditos destinados ao n. 3 de 'Orpheu'  (Lisboa, Inquérito, 1953),  mas mantém inédito o restante do material descoberto. 

 

1959 

A editora Ática, de Portugal, reedita o primeiro número de Orpheu, e se compromete a publicar os inéditos do terceiro número. 

 

1976 

23 de janeiro -- Alberto de Serpa se dispõe a facultar à publicação os cadernos de Orpheu 3, em seu poder.

Fevereiro -- A editora Ática, de Portugal, reedita Orpheu 2. 

 

1977 

Julho -- Alberto de Serpa deposita na Biblioteca Municipal do Porto uma fotocópia dos prováveis cadernos de Orpheu 3. 

 

1978 

Abril -- São exibidas folhas relativas a Orpheu em uma exposição realizada no Porto, na Fundação Engenheiro Antônio de Almeida, durante o I Congresso Internacional de Estudos Pessoanos. 

 

1983 

Abril -- A editora Ática encaminha a David Mourão-Ferreira as provas tipográficas realizadas a partir de uma fotocópia do terceiro número de Orpheu. A revista Nova Renascença, n. 11, publicada no  verão de 1983,  anuncia  que  se encontra no prelo o Orpheu 3. 

 

1984 

Março -- As Edições Nova Renascença finalmente lançam no mercado uma tiragem facsimilada dos cadernos pertencentes a Alberto de Serpa. 

 

Orpheu 3: perfil estético 

O incompleto e provável -- insistimos --  terceiro número da revista modernista traria, como já sabemos, alguns novos nomes, viajantes retardatários da viagem órfica, mais ou menos harmonizados com um percurso que almejava levar a arte de Portugal para longe da estesia do passado, e de preferência rumo à Europa.

Esses novos nomes, como Albino de Menezes, Augusto Ferreira Gomes e D. Thomaz de Almeida eram ciceroneados pelos que, inventores, por assim dizer, da aventura modernista, já haviam partido há mais tempo. Dentre eles, Almada, Pessoa,  Campos (se de fato eram de Campos as páginas faltantes do último caderno), Sá-Carneiro e Souza-Cardoso (se provas mais fortes pudessem sustentar a hipótese de que o pintor efetivamente colaboraria naquele número).

Do artista plástico seriam reproduzidos, se portanto se confirmasse a hipótese referida, 4 hors-texte, que contudo jamais apareceram a público. Poderíamos por puro exercício de conjeturação imaginar que se tratassem de telas abstratas, exemplares talvez do simultaneísmo órfico. Mas como afirmar, se o pintor primou pela mais saudável inconstância, no afã de queimar etapas?

Dentre os novos, Albino de Menezes surgiria com um poema em prosa intitulado "Após o rapto"[10], em que imprime um variado leque de modulações estéticas, ultra-românticas algumas, decadentes, simbolistas, outras -- ao lado de uma exploração de motivos finisseculares vários, numa sintaxe de construção  confusa,  obsessivamente  arregimentada  para  a exibição de vocábulos preciosos.

Assim, expressões do tipo "coloração creme ebúrnea da carne"; "alma insepulta da sombra aerivaga que impregna de recolhimento a hora morta" e dezenas de outras do mesmo talhe ilustram à saciedade uma elegia de amor carnal com todos os habituais ingredientes pré-modernistas[11].

Mário de Sá-Carneiro destinaria a esse número da revista alguns versos reunidos sob o nome de 'Poemas de Paris'[12], integrantes de um conjunto mais amplo, denominado Indícios de ouro.

Escritos entre julho e setembro de 1915, portanto de fatura imediatamente anterior àqueles 'Três poemas' que foram impressos em Portugal Futurista, esses poemas de Sá-Carneiro não acrescentam nada de novo ao desenvolvimento vertiginoso de sua extesia.

Se nos detivermos nos motivos literários, na estrutura lógica dos poemas e no temperamento estético que preside cada um deles, notaremos sem dificuldade que a produção de Sá-Carneiro reservada para o terceiro número de Orpheu se configura como um  estágio anterior, preparatório,  ao  que  o poeta logrou  em  poemas  tais como  "Elegia"  ou "Manucure", que foram publicados em Orpheu 2, e onde, sobretudo no último, o poeta alcançou com pleno êxito consorciar o sensacionismo, o interseccionismo e o futurismo.

Nestes 'Poemas de Paris', somente no primeiro deles, "Sete canções de declínio", o poeta visita motivos futuristas, como a velocidade, o cosmopolitismo, a dissonância da vida moderna: 

Viagem circulatória

Num expresso de wagons-leitos --

Balão aceso -- defeitos

De instalação provisória...

 

Palace cosmopolita

De rasquouères e cocottes --

Audaciosos decotes

Duma francesa bonita...

 

Confusão de music-hall,

Aplausos e brou-u-há --

Interminável sofá

Dum estofo profundo e mole...

 

[...]

 

Seja enfim a minha vida

Tara de ócios e Lua:

Vida de café e rua,

Dolorosa, suspendida --

 

[...][13]

No restante dos poemas impera um sensorialismo já seu característico, entre o conjecturar do  inefável almejado e a prelibação da desilusão evidente; entre o "exílio branco" e as "avenidas de seda deslizando"[14] -- em uma "cidade-figura", com gosto acerado, como uma "fruta mal madura"[15]; ou em uma mesa de  café, onde o sujeito lírico possa escrever "versos prateados" e onde imagina "enredos bizarros", esperando "a vida / que nunca vem ter comigo"[16]. E onde "cenários em mutação", "desfiles, danças -- embora mal sejam uma ilusão"[17], desfilem aos olhos do sujeito lírico.

Nesses poemas de Sá-Carneiro reconhecemos, ainda uma vez mais, aquele sentimento dominante, sempre presente, de insuficiência vital, que já presenciamos em outras oportu- nidades.

E, tal como em outras oportunidades mencionadas,  o sujeito lírico se afigura como um escravo da vida, preso a ela e apaixonado pela dor de vivê-la. Em dado momento, se compara a "um barco de vela que parou / em súbita baía adormecida...", e descobriu a cidade, "os palácios de rendas e escumalha",  os "vitrais de sonho" --   acabando por sentir simultaneamente atração  e repulsa  de  tudo, o que o  faz reconhecer:  "-- Caiu-me a Alma  no  meio da rua, / e não posso ir apanhar!"[18].

Fernando Pessoa teria escolhido para o Orpheu 3 dois poemas[19]. O primeiro deles é o nome primitivo de "D. Fernando, infante de Portugal", inserido na segunda parte da seção ('As quinas'), da primeira parte ('Brasão') de um longo poema narrativo épico que primeiramente recebeu o nome de "Portugal", e depois o que é conhecido hoje: Mensagem.

Esse primeiro poema, "Gládio", por conseguinte, vai servir a caráter para compor a parte daquela obra destinada a dar relevo às mensagens dos diversos protagonistas da história de Portugal (como D. Afonso Henriques, D. Duarte, e, claro, D. Fernando, infante de Portugal, filho de Sancho I, e que na primeira metade do século XIII teve grande papel nas negociações que envolviam conturbações políticas na Europa), das origens do país até o tempo em que completara sua organização como nação, pouco antes das grandes empresas marítimas.

"Gládio" e "Além-Deus" funcionam contrapontisticamente. Se no primeiro o príncipe enuncia  estar "cheio de Deus", não temendo por sua sorte -- e porque, também, sente que seu destino "nunca será Maior" do que sua alma, no outro poema, Deus está do lado de fora, digamos, do coração do homem. Deus é portanto uma ausência, uma falta: 

 

Olho o Tejo, e de tal arte

Que me esquece olhar olhando,

E súbito isto me bate

[...]

 

Sinto de repente pouco,

Vácuo, o momento, o lugar.

Tudo de repente é oco --

Mesmo o meu estar a pensar.

Tudo -- eu e o mundo em redor --

Fica mais que exterior.

 

Perde tudo o ser, ficar,

E do pensar se me some.

Fico sem poder ligar

Ser ideia, alma de nome

A mim, à terra eaos céus...

 

E súbito encontro Deus[20]. 

Que Deus é este: "o universo é o seu rasto... / Deus é a sua sombra", enuncia o sujeito lírico na segunda parte do poema, ou, ainda, "um grande Intervalo, / mas entre quê e quê?.../ Entre o que digo e o que calo / existo? Quem é que me vê?", pergunta o eu do poema na quinta e derradeira parte[21].

Para além-Deus, a "negra calma... / clarão de Desconhecido", cogita a ver oTejo o homem só do século XX, para quem a vida é dúvida e viver é indagar sem resposta, para o vazio. Deus "pôs-me as mãos sobre os ombros e dourou-me / a fronte com o olhar"[22], enuncia, em contrapartida, o príncipe 6 séculos antes, ungido pelo que é divino, movido por sua comichão justiceira e sua crença. "E eu vou, e a luz do Gládio erguido dá / em minha face calma. Cheio de Deus, não temo o que virá"[23].

Conclusivamente, é inegável que a temática órfica do insulamento espiritual se distende nesses dois poemas para um indagar de cunho teológico, permeado pela questão existencial, mas é também inquestionável que já não vemos mais nesses versos o formulário órfico que Pessoa acalentou na época em que o satisfazia o dar-se conta da repercussão do Orpheu, em Portugal.

Distoa encontrarmos "A cena do ódio", poema satânico de Almada, talvez (a despeito de não se inserir no corpus órfico em vista, como já dissemos, de sua tardia recepção) a mais virulenta investida satânica órfica[24], ao lado de uma colaboração de Augusto Ferreira Gomes, novo nome, com velhos princípios estéticos, que se incorporaria ao momento de declínio do Orpheu. O poema prosaico[25] que encomendou ao Orpheu 3, decalcado em Mallarmé, influenciado pelo decadentismo de Eugênio de Castro, nada acrescentaria ao puzzle órfico, apenas confirmando mais um desperdiçado esforço de mera reprodução dos gastos clichês decadentes e simbolistas.

Castelo de Morais, com outro poema, "Névoa"[26], explora uma ambientação com traços decadentes, para a qual destina uma verve simbolista em que frequentam o animismo, palavras em maiusculas (sugestivas do impenetrável), as correspon- dências horizontais, a bipartição sujeito-alma, tudo sob um clima de religiosidade, em pleno entardecer.

Sua sensibilidade é tributária em grande parte, portanto, das correntes antecipatórias do modernismo, e a estas acrescenta um tom alucinatório, exacerbando o culto da sensibilidade, a ponto de fazer recordar o vertigismo dislexical de Raul Leal, sua mais notória influência no âmbito do Orpheu.

D. Tomás de Almeida atesta, por seu turno, influências diretas do Futurismo no poema que integraria  Orpheu 3[27]. "Olhos" apresenta uma sintaxe sem pontuação, sem conectivos ("luar êxtase pálido opala / luar alma de lua"), assinalada  por palavras ligadas por hífen, ou não, buscando beneficiar, em quaisquer casos, nexos arbitrários e intersecções surpreendentes ("meia-luz-aroma do jardim-meu-sonho"; "braços-luar"; "eles iam eles iam guiados p'lo teu olhar minh'alma"). Com esse expediente, promove tais nexos e cruzamentos à categoria de elementos-síntese,  de  sentido não usual e frequentemente obscuro. Ou, ao contrário, também na esteira futurista, se socorre de palavras descontextualizadas, verdadeiros signos-implantes, totalmente estranhos ao aparente tecido de significação do poema[28].

"Olhos" exprime integralmente o compasso da nova lira de seu tempo, dirão alguns. Não. Definitivamente, não, isto porque seus versos, modulados por sonoridades simbolistas, por vezes mergulhados numa religiosidade sensual, não escondem aqui e ali, ainda, um transbordamento ultra-romântico que o autor não soube dominar.

O resultado desse amálgama  de temperamentos divergentes -- e antagônicos por vezes -- é um conjunto de versos recortados, assimétricos, de duvidosa e claudicante estesia: 

Teus braços cisne imatéria:

No lago dos teus olhos

 

Luar êxtase pálido de opala

Luar alma de lua 

[...] 

 

Oh! os teus olhos! OH! OS TEUS OLHOS!

Eu era aureolado p'lo teu olhar suave

Na meia-luz-aroma do jardim-meu sonho

 

[...]

 

E a meia-luz era listrada por teu olhar

Olhar suave de teus olhos suaves

 

A noite que descia -- Aurora nos teus olhos -

Iluminava-se d'Aurora de teus olhos

 

E a minh'alma como um crescente de sonho

Era a estrela inesgotável da Anunciação

 

[...]

 

Eu era a fulva Madalena do pecado

Adeus ó Madalena do pecado

 

Eu sou a santa convertida

 

Oh! Teus olhos milagrosos

Rabbi de teus olhos

Senhor-Jesus-Cristo de teus olhos

 

OH! OS TEUS OLHOS![29] 

O título das notas do heterônimo pessoano de vida curtíssima, C. Pacheco, é muito sugestivo. É que tais notas, a que chamou de "Para além doutro oceano"[30] vêm sugerir um novo contraponto, agora com "Além Deus". Se neste último o sujeito lírico ao contemplar as águas do Tejo indaga metafisicamente "o que é ser-rio, e correr? / O que é está-lo eu a ver?" e mais adiante, ainda: "pra que lado corre o rio?"[31], fazendo do poema um campo de mediação entre o ato de pensar e a realidade -- e do rio-quase-oceano uma resposta impronunciada, não-revelada -- no primeiro, ao contrário, se recusa a buscar decifrar essa realidade (essa outra realidade-oceano, realidade dos outros, dos que sentem), até porque tudo para ele é fruto e projeção de seu silencioso e reduntante pensar, que é alheio à realidade -- ou, dito de outro modo, tudo o que existe para ele é fruto do pensar, que avança necessariamente por sobre outra realidade (por sobre outro oceano), diversa (diverso), portanto, da (do)  daqueles  que sentem ao invés de tão-somente exercitarem o pensamento.

 Ainda, se a problemática da decifração do mundo é a principal razão de ser do poema "Além-Deus", para C. Pacheco, um Caeiro canhestro, levemente futurizado (quando examinamos o arcabouço  plástico de seu  versejar assimétrico, desleixado e sem pontuação), prosaico (porque a prosa é a forma natural do pensar) e antilírico (porque ser lírico é cantar o sentir, e sentir é não pensar), o ato de pensar ocupa o lugar do ato de viver (que em suma é um enfrentamento do desafio de decifrar/ compreender nossa existência no mundo) -- e o poema é a expressão bruta (daí o nome "notas", presente no seu título) do pensar: 

 

O meu pensamento muitas vezes  trabalha silenciosamente

Com a mesma doçura duma máquina untada que se move

                                                                sem  fazer  barulho

Sinto-me  bem  quando  ela  assim vai e ponho-me  imóvel

Para não  desmanchar  o equilíbrio  que me  faz tê-lo  desse

                                                                                       modo

Pressinto  que  é  nesses momentos que o meu pensamento

                                                                                     é claro

Mas eu  não  o  oiço  e  silencioso  ele  trabalha   sempre   de

                                                                                  mansinho

Como uma máquina untada movida por uma correia

E  não  posso  ouvir senão o desfilar sereno das peças  que

                                                                               trabalham

Eu lembro-me às vezes de  que todas as  outras  pessoas

                                                devem sentir isto como eu

Mas dizem que lhes dói a cabeça ou sentem tonturas

Esta lembrança veio-me  como me podia vir  outra  qualquer

Como por exemplo a de que eles não sentem esse deslizar

E não pensam em que o não sentem [...][32].

 

Com efeito, como observamos acima, o poema de C. Pacheco, alias Coelho Pacheco, é uma sequência de notas sem um plano aparente, de forma que cada nota corresponde a uma estrofe irregular. Assim, o sujeito lírico se desvia do desenvolvimento lírico que vinha realizando, quebrando a tensão emocional que tende a assistir e escorar a frase poética, sem se socorrer de qualquer esclarecimento ou preparação. Seu pensar é, pois, um livre pensar, descomprometido com a emoção. Vejamos: 

Quando  entro  numa  sala  grande  e  nua  à  hora  do  cre-

                                                                                  púsculo

E que tudo é silêncio ela tem para mim  a  estrutura  duma

                                                                                      alma

É vaga e poeirenta eos meus passos têm ecos estranhos

Como os que ecoam na minha alma quando eu ando

Por  suas  janelas tristes  entra  a  luz adormecida de lá  de

                                                                                      fora

E projeta  na   parede    escura em  frente  as sombras e  as

                                                                            penumbras

Uma sala grande e vazia é uma alma silenciosa

E as correntes de ar que levantam pó são os pensamentos

 

Um rebanho de ovelhas é uma coisa triste

Porque  lhe não devemos poder associar outras  ideias que

                                                                   não sejam tristes

E porque assim é e só porque assim é porque é verdade

Que   devemos  associar  ideias  tristes  a  um  rebanho  de

                                                                                  ovelhas

Por  esta  razão  e  só  por  esta  razão é que as ovelhas são

                                                                   realmente tristes

[...][33].

 

Para tornar ainda mais intenso seu protesto de liberdade da emoção, e na esteira de Caeiro, C. Pacheco  -- cujas iniciais lembram Caeiro e Pessoa[34] -- exercita como o primeiro a lógica do desconcerto, que comparece amiúde no poema, sentenciosamente, como segue: 

Há pessoas a quem o arranhar das paredes impressiona

E outras que se não impressionam

Mas o arranhar das paredes é sempre igual

E a diferença vem das pessoas. Mas se há diferença entre

                                                                            este sentir

Haverá diferença pessoal no sentir das outras coisas

E quando  todos  pensem  igual duma coisa  é porque ela

                                                  é diferente  para cada um[35], 

 

ou a caráter, no  intuito de inibir o surgimento de  um  pathos qualquer, como nos versos finais de seu poema (ou, melhor, anti-poema): 

Alegra-me às  vezes passageiramente pensar que hei-de

                                                                              morrer

E serei encerrado num caixão de pau cheirando a resina

O meu corpo há-de derreter-se para líquidos espantosos

As feições desfazer-se-ão em vários podres coloridos

E irá aparecendo a caveira ridícula por baixo

Muito suja e muito cansada a  pestanejar[36].

 

Examinado com distanciamento e neutralidade, o provável e ainda assim incompleto elenco de contribuições ao Orpheu 3 pouco ofereceria de novo ao que os dois números anteriores haviam apresentado, sendo talvez razoável supor que não veio a lume na época própria porque seus editores reconheceram que sua luminosidade não era suficientemente intensa ou original.  

[1]Cf. SARAIVA, Arnaldo -- "Introdução à leitura de Orpheu 3". In: Orpheu. Lisboa, Ática, 1984, p. I-LII.

[2]PESSOA, Fernando -- Cartas de Fernando Pessoa a Armando Cortes-Rodrigues. Lisboa, Confluência, s.d., p. 70.

[3]SÁ-CARNEIRO, Mário de -- Cartas a Fernando Pessoa, Lisboa, Ática, 1958 (v 2), p. 72.        

[4]Cf. Ibid, p. 76.

[5]Ibid, p. 78.

[6]Cf. Ibid, p. 80-2.

[7]Cf. PESSOA, Fernando -- Op. cit, p. 79.

[8]PESSOA, Fernando, apud SARAIVA, Arnaldo -- Op. cit., p. L.

[9]Cf. ibid., p. L.

[10]MENEZES, Albino -- Após o rapto. Op. cit., p. 25-32.

[11]Cf. ibid., passim.

[12]SÁ-CARNEIRO, Mário de -- 'Poemas de Paris': Sete canções de declínio; Abrigo; Cinco horas; Serradura; O Lord. Ibid., respectivamente p. 9-17; 17-8; 19-21; 21-3; 23-4.

[13]Ibid.., p. 14-5.

[14]Cf. ibid., p. 16-7.

[15]Cf. id. -- Abrigo. Ibid., p. 18.

[16]Cf. id. -- Cinco horas. Ibid., p. 19-20.

[17]Cf. id. -- Sete canções de declínio. Ibid., p. 9.

[18]Cf. id. -- Sete canções de declínio. Ibid., passim.

[19]PESSOA, Fernando -- Gládio; Além-Deus. Ibid.,  p. 35 e 36-9, respectivamente.

[20]Ibid., p. 36.

[21]Cf. Ibid, p. 37 e 39.

[22]Ibid., p. 35.

[23]Ibid., p. 35.

[24]ALMADA-NEGREIROS, José de -- A cena do ódio. Ibid., p. 47-73.

[25]GOMES,  Augusto Ferreira -- Por esse crepúsculo a morte de um fauno...Ibid., p. 41-6.

[26]MORAIS, José Castelo de -- Névoa. Ibid., p. 95-102.

[27]ALMEIDA, D. Tomás de -- Olhos. Ibid., p. 75-9.

[28]Cf. ibid., passim.

[29]Ibid., p. 77-9.

[30]PACHECO, C. -- Para além doutro oceano -- notas. Ibid., p. 81-93.

[31]Cf. PESSOA, Fernando -- Op. cit., p. 36 e 39.

[32]PACHECO, C. -- Op. cit., p. 83-4.

[33]Ibid., p. 85.

[34]De  cujas personalidades, diga-se, C. Pacheco é uma espécie de  intersecção psíquica.

[35]PACHECO, C -- Op. cit., p. 89.

[36]Ibid., p. 93.

 

RICARDO DAUNT - Escritor com vasta e significativa obra ficcional e ensaística, é também poeta e pesquisador. É doutor pela Universidade de São Paulo em literatura Portuguesa e foi professor visitante na Universidade de Yale. Publicou, entre muitos outros títulos, os romances Manuário de Vidal (1981) e Anacrusa (2004); os ensaios de T. S. Eliot e Fernando Pessoa: diálogos de New Haven (2004), os contos e novelas de Poses (2005), e a Obra poética integral de Cesário Verde (1855-86). Organização, apresentação, tábua cronológica e cartas reunidas por Ricardo Daunt (2006). Seu mais extenso e importante romance, Migração dos cisnes, todo ele ambientado na Europa, acaba de ser lançado no Brasil pela Global Editora.
Inédito até junho de 2010 se encontra ainda seu vasto trabalho sobre o movimento do Orpheu (em 3 volumes), A audácia do tédio. Panorama estético do Orpheu em Portugal.  A Triplov tem publicado esparsamente a obra poética de Daunt, que, contudo, também se mantém inédita em livro até este momento