O
terceiro número da revista Orpheu, que mutilado e tardiamente nos
chegou às mãos nos anos 80, é, em grande medida, mais um drama de
bastidores do que um documento epocal cuja recepção deve ser examinada.
Sua
recepção, qua revista, não ocorreu, embora pudéssemos, como mero
exercício intelectual, elaborar algumas questões do tipo: qual teria
sido o desfecho do movimento órfico, caso o terceiro número tivesse
saído da gráfica? Que nomes, então, participariam do número seguinte, o
quarto? Teria havido um quarto número? Sob que circunstâncias? Como
teria reagido a imprensa portuguesa a esse fato? Caso isso acontecesse,
e supondo que Orpheu não morreria nos braços do futurismo, como de fato
ocorreu, desenvolvendo caminho próprio e autônomo, como seria a edição
única de Portugal Futurista? Teria de qualquer maneira havido
Portugal Futurista? Se Orpheu continuasse, o que teria ocorrido com
a Presença? Esta teria existido ainda assim? E daí por diante.
Lidamos
contudo com fatos, história e investigação literária, nos quais não há
espaço para adivinhações. Nada, contudo, nos impede de tomarmos contato
com uma parte da possível história e do provável conteúdo de um
documento que não chegou a existir para seu tempo.
Para
tanto vamos em primeiro lugar, com o auxílio imprescindível das achegas
de Arnaldo Saraiva à edição do incompleto conjunto de provas
tipográficas que se supõe viesse a integrar Orpheu 3,
traçar com a máxima brevidade uma cronologia editorial de Orpheu, após o
que iremos, também de modo breve, traçar o perfil dessa edição.
Cronologia editorial do Orpheu
1915
20 de fevereiro
-- Orpheu 1 entra no prelo.
25 de março
-- Saem os primeiros 100 exemplares, depositados na Livraria Brasileira,
em Lisboa.
4 de abril
-- Pessoa, empolgado, afirma: "somos o assunto do dia em Lisboa".
28 de junho
-- Edita-se Orpheu 2.
10 de agosto
-- Sá-Carneiro escreve a Pessoa de Paris, demonstrando preocupação sobre
o terceiro número da revista, cogita em uma redução da tiragem e do
número de páginas, bem como em produzir uma edição com papel mais
barato.
24 de agosto
-- Em carta a Fernando Pessoa, Sá-Carneiro afirma: "francamente, não sei
como se há-de organizar Orfeu III".
31 de agosto
-- Sá-Carneiro esboça o sumário do terceiro número com base nas
sugestões de Pessoa. De Álvaro de Campos, publicar-se-ia, em princípio,
"A passagem das horas"; de Mário de Sá-Carneiro, "Para os indícios de
ouro"; de Numa de Figueiredo, "Pilhérias em francês"; de Antônio Bossa,
"Pederastias"; de Albino de Menezes, "HZOK" e de Almada, "A cena do
ódio".
Na mesma carta diz: "o número 3 do Orfeu deve entrar no prelo, o
mais tardar, nos primeiros dias de outubro".
13 de setembro
-- Mário de Sá-Carneiro escreve a Pessoa: "temos desgraçadamente de
desistir do nosso Orfeu. Todas as razões lhe serão dadas, melhor pela
carta do meu pai que junto incluo e que lhe peço nao deixe de ler. Claro
queé devida a um momento de exaltação. No entretanto cheia de razões
pela conta exorbitante que eu obrigo o meu Pai a pagar". E mais adiante:
"o meu desgosto é muito grande" mas "em todo caso sempre se fizeram dois
números"; e pede a Pessoa que atire a culpa toda de não sair o terceiro
número de Orpheu nele, Sá-Carneiro.
25 de setembro
-- Sá-Carneiro concorda com Pessoa quando este diz que "o Orpheu não
acabou" e informa que Santa-Rita Pintor está disposto a pagar as
despesas tipográficas, mas previne o amigo de que acha "pior que a
morte" ver o futurista como "maitre" do Orpheu. Pouco depois Pessoa,
por precaução, registra o nome da revista.
2 de outubro
-- Sá-Carneiro, escrevendo a Pessoa, insiste em sua posição desfavorável
com respeito a Santa-Rita, acusando-o de usurpador e declara a revista
propriedade de exclusiva de Fernando Pessoa. Logo depois, institui-se um
comitê redacional, do qual fazem parte Pessoa, José Pacheco, alias
José Pacheko, e Almada, de modo a neutralizar o intento de Santa-Rita
Pintor. Este, por fim, no final de outubro, renuncia à revista.
1916
26 de abril
-- Suicida-se Sá-Carneiro em Paris; o projeto do número 3 de Orpheu
é abandonado.
4 de maio
-- Em carta dessa data, Pessoa comunica a Cortes-Rodrigues o falecimento
de Sá-Carneiro.
4 de setembro
-- Pessoa diz a Cortes Rodrigues que vai sair o terceiro número de
Orpheu, onde publicaria dois poemas ingleses "muito indecentes".
Nesse número, seriam incluídos versos de Pessanha, "A cena do ódio", de
Almada, inéditos de Sá-Carneiro, Albino de Menezes, Carlos Parreira e
Hors-textes de Amadeo de Souza-Cardoso. Pessoa afirma, por fim, que
está "saindo de um período de esterilidade quase total".
Setembro-outubro
-- No prefácio que preparou para uma antologia de poetas sensacionistas,
destinada ao mercado do Reino Unido, Pessoa/Campos dá como publicado o
terceiro número, onde também se inclui a "Saudação a Walt Whitman".
1917
11 de julho
-- Pessoa escreve a José Pacheko, propondo-lhe um encontro cujo tema é a
edição de Orpheu 3, dando a entender que a revista se encontrava
em fase avançada de edição. Pouco mais tarde, uma nota da edição fora de
mercado do "Ultimatum" de Álvaro de Campos informa que esse
manifesto apareceria no número 3 de Orpheu.
1930
26 de outubro
-- Em carta endereçada a Gaspar Simões, Pessoa faz referência a "Além-Deus
-- 5 pequenos poemas" que "esti- veram para ser publicados (chegaram a
ser impressos) num Orpheu 3 que foi frustrado de cima".
1935
Novembro
-- O terceiro número de Sudoeste, de responsabilidade de
Almada-Negreiros, inclui várias colaborações dos fundadores do Orpheu,
entre elas a de Fernando Pessoa, que termina com as palavras "Orpheu
continua" -- e anuncia: "brevemente Orpheu 3".
30 de novembro
-- Morre Fernando Pessoa.
194?
Alberto
de Serpa, colecionador, adquire num alfarrábio da cidade do Porto um
exemplar de Dispersão, de Sá-Carneiro, dentro do qual se
encontram 3 cadernos, com a indicação "Orpheu -- Vol. I -- 1917" volume
esse que reuniria, como havia sido previsto desde o primeiro número de
Orpheu, todos os quatro primeiros. Examinando a numeração dos 3
cadernos, o colecionador não tem dúvidas em concluir que ali
estava uma parte do inédito número 3.
1949
Julho
-- Alberto de Serpa é apresentado a um advogado lisboeta por intermédio
de Almada-Negreiros. Este vende-lhe mais uma parte do terceiro
número que lhe faltava, de modo que Serpa fica detentor de um provável e
incompleto número 3, faltando-lhe, todavia, as páginas finais (65 em
diante).
1951
João
Gaspar Simões registra pela primeira vez, na Vida e obra de Fernando
Pessoa, a existência de um terceiro número de Orpheu.
1953
Adolfo
Casais Monteiro encontra no espólio de Fernando Pessoa 4 cadernos do
número inédito de Orpheu. No mesmo ano, publica, de Fernando
Pessoa, Poemas inéditos destinados ao n. 3 de 'Orpheu' (Lisboa,
Inquérito, 1953), mas mantém inédito o restante do material
descoberto.
1959
A
editora Ática, de Portugal, reedita o primeiro número de Orpheu,
e se compromete a publicar os inéditos do terceiro número.
1976
23 de janeiro
-- Alberto de Serpa se dispõe a facultar à publicação os cadernos de
Orpheu 3, em seu poder.
Fevereiro
-- A editora Ática, de Portugal, reedita Orpheu 2.
1977
Julho
-- Alberto de Serpa deposita na Biblioteca Municipal do Porto uma
fotocópia dos prováveis cadernos de Orpheu 3.
1978
Abril
-- São exibidas folhas relativas a Orpheu em uma exposição
realizada no Porto, na Fundação Engenheiro Antônio de Almeida, durante o
I Congresso Internacional de Estudos Pessoanos.
1983
Abril
-- A editora Ática encaminha a David Mourão-Ferreira as provas
tipográficas realizadas a partir de uma fotocópia do terceiro número de
Orpheu. A revista Nova Renascença, n. 11, publicada no
verão de 1983, anuncia que se encontra no prelo o Orpheu 3.
1984
Março
-- As Edições Nova Renascença finalmente lançam no mercado uma tiragem
facsimilada dos cadernos pertencentes a Alberto de Serpa.
Orpheu
3: perfil estético
O
incompleto e provável -- insistimos -- terceiro número da revista
modernista traria, como já sabemos, alguns novos nomes, viajantes
retardatários da viagem órfica, mais ou menos harmonizados com um
percurso que almejava levar a arte de Portugal para longe da estesia do
passado, e de preferência rumo à Europa.
Esses
novos nomes, como Albino de Menezes, Augusto Ferreira Gomes e D. Thomaz
de Almeida eram ciceroneados pelos que, inventores, por assim dizer, da
aventura modernista, já haviam partido há mais tempo. Dentre eles,
Almada, Pessoa, Campos (se de fato eram de Campos as páginas faltantes
do último caderno), Sá-Carneiro e Souza-Cardoso (se provas mais fortes
pudessem sustentar a hipótese de que o pintor efetivamente colaboraria
naquele número).
Do
artista plástico seriam reproduzidos, se portanto se confirmasse a
hipótese referida, 4 hors-texte, que contudo jamais apareceram a
público. Poderíamos por puro exercício de conjeturação imaginar que se
tratassem de telas abstratas, exemplares talvez do simultaneísmo órfico.
Mas como afirmar, se o pintor primou pela mais saudável inconstância, no
afã de queimar etapas?
Dentre
os novos, Albino de Menezes surgiria com um poema em prosa intitulado
"Após o rapto",
em que imprime um variado leque de modulações estéticas,
ultra-românticas algumas, decadentes, simbolistas, outras -- ao lado de
uma exploração de motivos finisseculares vários, numa sintaxe de
construção confusa, obsessivamente arregimentada para a exibição de
vocábulos preciosos.
Assim,
expressões do tipo "coloração creme ebúrnea da carne"; "alma insepulta
da sombra aerivaga que impregna de recolhimento a hora morta" e dezenas
de outras do mesmo talhe ilustram à saciedade uma elegia de amor carnal
com todos os habituais ingredientes pré-modernistas.
Mário
de Sá-Carneiro destinaria a esse número da revista alguns versos
reunidos sob o nome de 'Poemas de Paris',
integrantes de um conjunto mais amplo, denominado Indícios de ouro.
Escritos entre julho e setembro de 1915, portanto de fatura
imediatamente anterior àqueles 'Três poemas' que foram impressos em
Portugal Futurista, esses poemas de Sá-Carneiro não acrescentam nada
de novo ao desenvolvimento vertiginoso de sua extesia.
Se nos
detivermos nos motivos literários, na estrutura lógica dos poemas e no
temperamento estético que preside cada um deles, notaremos sem
dificuldade que a produção de Sá-Carneiro reservada para o terceiro
número de Orpheu se configura como um estágio anterior,
preparatório, ao que o poeta logrou em poemas tais como "Elegia"
ou "Manucure", que foram publicados em Orpheu 2, e onde,
sobretudo no último, o poeta alcançou com pleno êxito consorciar o
sensacionismo, o interseccionismo e o futurismo.
Nestes
'Poemas de Paris', somente no primeiro deles, "Sete canções de
declínio", o poeta visita motivos futuristas, como a velocidade, o
cosmopolitismo, a dissonância da vida moderna:
Viagem circulatória
Num expresso de wagons-leitos --
Balão aceso -- defeitos
De instalação provisória...
Palace cosmopolita
De rasquouères e cocottes --
Audaciosos decotes
Duma francesa bonita...
Confusão de music-hall,
Aplausos e brou-u-há --
Interminável sofá
Dum estofo profundo e mole...
[...]
Seja enfim a minha vida
Tara de ócios e Lua:
Vida de café e rua,
Dolorosa, suspendida --
[...]
No restante dos poemas impera um
sensorialismo já seu característico, entre o conjecturar do inefável
almejado e a prelibação da desilusão evidente; entre o "exílio branco" e
as "avenidas de seda deslizando"
-- em uma "cidade-figura", com gosto acerado, como uma "fruta mal
madura";
ou em uma mesa de café, onde o sujeito lírico possa escrever "versos
prateados" e onde imagina "enredos bizarros", esperando "a vida / que
nunca vem ter comigo".
E onde "cenários em mutação", "desfiles, danças -- embora mal sejam uma
ilusão",
desfilem aos olhos do sujeito lírico.
Nesses
poemas de Sá-Carneiro reconhecemos, ainda uma vez mais, aquele
sentimento dominante, sempre presente, de insuficiência vital, que já
presenciamos em outras oportu- nidades.
E, tal
como em outras oportunidades mencionadas, o sujeito lírico se afigura
como um escravo da vida, preso a ela e apaixonado pela dor de vivê-la.
Em dado momento, se compara a "um barco de vela que parou / em súbita
baía adormecida...", e descobriu a cidade, "os palácios de rendas e
escumalha", os "vitrais de sonho" -- acabando por sentir
simultaneamente atração e repulsa de tudo, o que o faz reconhecer:
"-- Caiu-me a Alma no meio da rua, / e não posso ir apanhar!".
Fernando Pessoa teria escolhido para o Orpheu 3 dois poemas.
O primeiro deles é o nome primitivo de "D. Fernando, infante de
Portugal", inserido na segunda parte da seção ('As quinas'), da primeira
parte ('Brasão') de um longo poema narrativo épico que primeiramente
recebeu o nome de "Portugal", e depois o que é conhecido hoje:
Mensagem.
Esse
primeiro poema, "Gládio", por conseguinte, vai servir a caráter para
compor a parte daquela obra destinada a dar relevo às mensagens
dos diversos protagonistas da história de Portugal (como D. Afonso
Henriques, D. Duarte, e, claro, D. Fernando, infante de Portugal, filho
de Sancho I, e que na primeira metade do século XIII teve grande papel
nas negociações que envolviam conturbações políticas na Europa), das
origens do país até o tempo em que completara sua organização como
nação, pouco antes das grandes empresas marítimas.
"Gládio" e "Além-Deus" funcionam contrapontisticamente. Se no primeiro o
príncipe enuncia estar "cheio de Deus", não temendo por sua sorte -- e
porque, também, sente que seu destino "nunca será Maior" do que sua
alma, no outro poema, Deus está do lado de fora, digamos, do coração do
homem. Deus é portanto uma ausência, uma falta:
Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar
olhando,
E súbito isto me bate
[...]
Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco --
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo -- eu e o mundo em redor --
Fica mais que exterior.
Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser ideia, alma de nome
A mim, à terra eaos céus...
E súbito encontro Deus.
Que
Deus é este: "o universo é o seu rasto... / Deus é a sua sombra",
enuncia o sujeito lírico na segunda parte do poema, ou, ainda, "um
grande Intervalo, / mas entre quê e quê?.../ Entre o que digo e o que
calo / existo? Quem é que me vê?", pergunta o eu do poema na
quinta e derradeira parte.
Para
além-Deus, a "negra calma... / clarão de Desconhecido", cogita a ver
oTejo o homem só do século XX, para quem a vida é dúvida e viver é
indagar sem resposta, para o vazio. Deus "pôs-me as mãos sobre os ombros
e dourou-me / a fronte com o olhar",
enuncia, em contrapartida, o príncipe 6 séculos antes, ungido pelo que é
divino, movido por sua comichão justiceira e sua crença. "E eu vou, e a
luz do Gládio erguido dá / em minha face calma. Cheio de Deus, não temo
o que virá".
Conclusivamente, é inegável que a temática órfica do insulamento
espiritual se distende nesses dois poemas para um indagar de cunho
teológico, permeado pela questão existencial, mas é também
inquestionável que já não vemos mais nesses versos o formulário órfico
que Pessoa acalentou na época em que o satisfazia o dar-se conta da
repercussão do Orpheu, em Portugal.
Distoa
encontrarmos "A cena do ódio", poema satânico de Almada, talvez (a
despeito de não se inserir no corpus órfico em vista, como já
dissemos, de sua tardia recepção) a mais virulenta investida satânica
órfica,
ao lado de uma colaboração de Augusto Ferreira Gomes, novo nome, com
velhos princípios estéticos, que se incorporaria ao momento de declínio
do Orpheu. O poema prosaico
que encomendou ao Orpheu 3, decalcado em Mallarmé, influenciado
pelo decadentismo de Eugênio de Castro, nada acrescentaria ao puzzle
órfico, apenas confirmando mais um desperdiçado esforço de mera
reprodução dos gastos clichês decadentes e simbolistas.
Castelo
de Morais, com outro poema, "Névoa",
explora uma ambientação com traços decadentes, para a qual destina uma
verve simbolista em que frequentam o animismo, palavras em maiusculas
(sugestivas do impenetrável), as correspon- dências horizontais, a
bipartição sujeito-alma, tudo sob um clima de religiosidade, em pleno
entardecer.
Sua
sensibilidade é tributária em grande parte, portanto, das correntes
antecipatórias do modernismo, e a estas acrescenta um tom alucinatório,
exacerbando o culto da sensibilidade, a ponto de fazer recordar o
vertigismo dislexical de Raul Leal, sua mais notória influência no
âmbito do Orpheu.
D.
Tomás de Almeida atesta, por seu turno, influências diretas do Futurismo
no poema que integraria Orpheu 3.
"Olhos" apresenta uma sintaxe sem pontuação, sem conectivos ("luar
êxtase pálido opala / luar alma de lua"), assinalada por palavras
ligadas por hífen, ou não, buscando beneficiar, em quaisquer casos,
nexos arbitrários e intersecções surpreendentes ("meia-luz-aroma do
jardim-meu-sonho"; "braços-luar"; "eles iam eles iam guiados p'lo teu
olhar minh'alma"). Com esse expediente, promove tais nexos e cruzamentos
à categoria de elementos-síntese, de sentido não usual e
frequentemente obscuro. Ou, ao contrário, também na esteira futurista,
se socorre de palavras descontextualizadas, verdadeiros signos-implantes,
totalmente estranhos ao aparente tecido de significação do poema.
"Olhos"
exprime integralmente o compasso da nova lira de seu tempo, dirão
alguns. Não. Definitivamente, não, isto porque seus versos, modulados
por sonoridades simbolistas, por vezes mergulhados numa religiosidade
sensual, não escondem aqui e ali, ainda, um transbordamento
ultra-romântico que o autor não soube dominar.
O
resultado desse amálgama de temperamentos divergentes -- e antagônicos
por vezes -- é um conjunto de versos recortados, assimétricos, de
duvidosa e claudicante estesia:
Teus braços cisne imatéria:
No lago dos teus olhos
Luar êxtase pálido de opala
Luar alma de lua
[...]
Oh! os teus olhos! OH! OS TEUS OLHOS!
Eu era aureolado p'lo teu olhar suave
Na meia-luz-aroma do jardim-meu sonho
[...]
E a meia-luz era listrada por teu olhar
Olhar suave de teus olhos suaves
A noite que descia -- Aurora nos teus olhos -
Iluminava-se d'Aurora de teus olhos
E a minh'alma como um crescente de sonho
Era a estrela inesgotável da Anunciação
[...]
Eu era a fulva Madalena do pecado
Adeus ó Madalena do pecado
Eu sou a santa convertida
Oh! Teus olhos milagrosos
Rabbi de teus olhos
Senhor-Jesus-Cristo de teus olhos
OH! OS TEUS OLHOS!
O
título das notas do heterônimo pessoano de vida curtíssima, C. Pacheco,
é muito sugestivo. É que tais notas, a que chamou de "Para além doutro
oceano"
vêm sugerir um novo contraponto, agora com "Além Deus". Se neste último
o sujeito lírico ao contemplar as águas do Tejo indaga metafisicamente
"o que é ser-rio, e correr? / O que é está-lo eu a ver?" e mais adiante,
ainda: "pra que lado corre o rio?",
fazendo do poema um campo de mediação entre o ato de pensar e a
realidade -- e do rio-quase-oceano uma resposta impronunciada,
não-revelada -- no primeiro, ao contrário, se recusa a buscar decifrar
essa realidade (essa outra realidade-oceano, realidade dos outros, dos
que sentem), até porque tudo para ele é fruto e projeção de seu
silencioso e reduntante pensar, que é alheio à realidade -- ou, dito de
outro modo, tudo o que existe para ele é fruto do pensar, que avança
necessariamente por sobre outra realidade (por sobre outro oceano),
diversa (diverso), portanto, da (do) daqueles que sentem ao
invés de tão-somente exercitarem o pensamento.
Ainda,
se a problemática da decifração do mundo é a principal razão de ser do
poema "Além-Deus", para C. Pacheco, um Caeiro canhestro, levemente
futurizado (quando examinamos o arcabouço plástico de seu versejar
assimétrico, desleixado e sem pontuação), prosaico (porque a
prosa é a forma natural do pensar) e antilírico (porque ser
lírico é cantar o sentir, e sentir é não pensar), o ato de pensar ocupa
o lugar do ato de viver (que em suma é um enfrentamento do desafio de
decifrar/ compreender nossa existência no mundo) -- e o poema é a
expressão bruta (daí o nome "notas", presente no seu título) do pensar:
O meu pensamento muitas vezes trabalha silenciosamente
Com a
mesma doçura duma máquina untada que se move
sem
fazer barulho
Sinto-me
bem quando ela assim vai e ponho-me imóvel
Para não
desmanchar o equilíbrio que me faz tê-lo desse
modo
Pressinto que é nesses momentos que o meu pensamento
é claro
Mas eu
não o oiço e silencioso ele trabalha sempre de
mansinho
Como uma
máquina untada movida por uma correia
E não
posso ouvir senão o desfilar sereno das peças que
trabalham
Eu
lembro-me às vezes de que todas as outras pessoas
devem sentir isto como
eu
Mas dizem que lhes dói a cabeça ou sentem tonturas
Esta lembrança veio-me como me podia vir outra qualquer
Como por
exemplo a de que eles não sentem esse deslizar
E não
pensam em que o não sentem [...].
Com
efeito, como observamos acima, o poema de C. Pacheco, alias
Coelho Pacheco, é uma sequência de notas sem um plano aparente, de forma
que cada nota corresponde a uma estrofe irregular. Assim, o sujeito
lírico se desvia do desenvolvimento lírico que vinha realizando,
quebrando a tensão emocional que tende a assistir e escorar a
frase poética, sem se socorrer de qualquer esclarecimento ou preparação.
Seu pensar é, pois, um livre pensar, descomprometido com a emoção.
Vejamos:
Quando
entro numa sala grande e nua à hora do cre-
púsculo
E que
tudo é silêncio ela tem para mim a estrutura duma
alma
É vaga e
poeirenta eos meus passos têm ecos estranhos
Como os
que ecoam na minha alma quando eu ando
Por
suas janelas tristes entra a luz adormecida de lá de
fora
E
projeta na parede escura em frente as sombras e as
penumbras
Uma sala
grande e vazia é uma alma silenciosa
E as
correntes de ar que levantam pó são os pensamentos
Um
rebanho de ovelhas é uma coisa triste
Porque
lhe não devemos poder associar outras ideias que
não
sejam tristes
E porque
assim é e só porque assim é porque é verdade
Que
devemos associar ideias tristes a um rebanho de
ovelhas
Por
esta razão e só por esta razão é que as ovelhas são
realmente tristes
[...].
Para
tornar ainda mais intenso seu protesto de liberdade da emoção, e na
esteira de Caeiro, C. Pacheco -- cujas iniciais lembram Caeiro e Pessoa
-- exercita como o primeiro a lógica do desconcerto, que comparece
amiúde no poema, sentenciosamente, como segue:
Há pessoas a quem o arranhar das paredes impressiona
E outras que se não impressionam
Mas o arranhar das paredes é sempre igual
E a diferença vem das pessoas. Mas se há diferença entre
este sentir
Haverá diferença pessoal no sentir das outras coisas
E quando todos pensem igual duma coisa é porque ela
é diferente para cada
um,
ou a caráter, no intuito de inibir o surgimento de
um pathos qualquer, como nos versos finais de seu poema (ou,
melhor, anti-poema):
Alegra-me
às vezes passageiramente pensar que hei-de
morrer
E serei
encerrado num caixão de pau cheirando a resina
O meu
corpo há-de derreter-se para líquidos espantosos
As
feições desfazer-se-ão em vários podres coloridos
E irá
aparecendo a caveira ridícula por baixo
Muito
suja e muito cansada a pestanejar.
Examinado com distanciamento e
neutralidade, o provável e ainda assim incompleto elenco de
contribuições ao Orpheu 3 pouco ofereceria de novo ao que os dois
números anteriores haviam apresentado, sendo talvez razoável supor que
não veio a lume na época própria porque seus editores reconheceram que
sua luminosidade não era suficientemente intensa ou original. |