Assistido e inspirado, em seu percurso órfico -- e não apenas nele --, pelas cíclicas aparições da poesia metafísica ao longo da história, Pessoa incorporou também o pragmatismo e o empirismo radical de James, não somente para entender melhor a estesia metafísica, como fizemos nós, e certamente Eliot, como para planear seus passos no movimento do Orpheu.
À época em que Pessoa escrevia seus primeiros esboços sobre o sensacionismo (quer na acepção de sinônimo de orfismo, quer como interferência tópica no poema, quer como um dos termos de um programa de arte derivado), o sucedentismo, o interseccionismo, etc., já o sensacionalismo de James, ao lado (no interior, na verdade) de sua cosmovisão empírico-radical, aqui sinteticamente apresentada, se haviam difundido na Europa, inicialmente através dos países de língua inglesa.
Daí não poderem ser tratadas como frutos do acaso as incidências do pragmatismo e do empirismo radical na obra pessoana. O pragmatismo valoriza a experiência, a esfera dos sentidos, a capacidade de coleta de dados, com o posterior equacionamento destes no âmbito da consciência, como vimos. O mesmo se dá com a programática órfica ("a verdadeira arte moderna tem de [...] acumular dentro de si todas as partes do mundo" (1). Assim, defende o empirismo a prática de ir além das primeiras revelações, procurando sempre pelas últimas conseqüências, buscando tal desiderato pelo encaminhamento de processos intelectuais na direção dos particulares, como quer também a poesia metafísica, o paulismo, o simultaneísmo órfico e o interseccionismo.
Para James as idéias tornam-se verdadeiras quando ajudam a manter relações satisfatórias com outras partes de nossa experiência. A verdade de uma idéia significa tão-somente, como vimos, suas operações, não o objeto da idéia.
Nesse contingenciamento, por assim dizer da verdade, pela negação da verdade absoluta, se empenha a 'estética do fingimento pessoano' (o hipercriticismo fingido órfico), aqueles programas de arte voltados para a exploração da fragmentação do sujeito lírico, bem como de sua polivalência, além de todas as práticas poéticas em que se afiguram atitudes mentais que espelham uma adesão à despersonalização. Um programa de arte como o interseccionismo seria inteiramente desbaratado caso viesse a admitir um sentido para a verdade distinto do que o pensamento de James promove.
O pragmatismo, segundo James, não tem preconceitos, nem defende dogmas, adotando uma postura de completa maleabilidade face a outras formas de pensar. Não por acaso, a proposta inaugural da revista Orpheu, que examinamos detidamente, condena preconceitos e defende uma abertura para propostas estéticas de todos os quadrantes.
Pensamento, para James, é toda forma de consciência; e todo pensamento tende a ser parte de uma consciência pessoal, em cujo interior esse se encontra sempre mudando, já que é sensivelmente contínuo. O simultaneísmo órfico e o interseccionismo manejam, em seus diferentes campos de ação, o plástico e o da palavra, respectivamente, esses conceitos.
Na esteira de Peirce, o pragmatismo entende que crenças são regras de ação e que o significado de um pensamento deriva da conduta que ele está apto a provocar. Tem-se que extrair de palavras como "Deus", "razão", "matéria" seu valor de compra prático; fazê-las, diz James, trabalhar dentro da corrente da nossa experiência. Pessoa entende que "Deus" é apenas uma palavra, um valor estético, que pode vir a sugerir mistério, mas que não serve a objetivo moral ou qualquer outro. Sua defesa do panteísmo, também ela encontra eco no pragmatismo de James, que recomenda por seu turno, como religião, alguma espécie de deidade imanente ou panteísta operando nas coisas preferivelmente a operar por sobre elas. A defesa da interpenetração do espírito e da matéria, à qual Pessoa atribui aos sensacionistas de modo geral também não é postura que destoe do pensamento de James.
Cada novo estado cerebral, segundo James, é modificado pelo estado inercial anterior ao estímulo -- e todas as imagens mentais estão embebidas em um fluxo cerebral contínuo . Da mesma forma, o pensamento é contínuo e os únicos estados de consciência com os quais lidamos estão fundados nas consciências pessoais.
Para o filósofo americano, como vimos, o fato consciente universal não é 'sentimentos e pensamentos existem, mas 'eu penso' e 'eu sinto'. A valorização sem precedentes da sensação no método de James; o entendimento de que existe uma linha inquebrável que vai da sensação ao pensamento; que parte da sensação ou da imagem, ganhando complexidade (se tornando percepto) numa escala de intensidade que oscila entre o pensar e o conceituar -- que é a noção, enfim, de fluxo contínuo de nossas imagens --, tais entendimentos são também postulados do interseccionismo e do simultaneísmo órfico. Ainda: o empirismo radical ao valorizar os elementos conjuntivos da experiência, as conexões entre as coisas, como vimos, acaba por dar franco respaldo aos processos interseccionistas e simultaneístas órficos.
Seria possível conceber-se estes últimos, por exemplo, extirpando deles sua vocação para as relações contínuas, para a mútua contaminação funcional entre as possíveis partes de um todo; para a percepção de um espaço sem ruptura, em que qualquer elemento interfere no todo e em que o todo é uma realidade puramente intelectual? Seria possível pensar o interseccionismo sem o processamento de estados de alma-paisagens, cuja existência depende integralmente de uma convergência de contínuos estados mentais; cuja manifestação, puramente intelectual, por sua vez, só admite a sucessividade entrecruzada de acontecimentos mentais simultâneos, sob estímulos múltiplos e variados? Certamente não. Nem mesmo no que diz respeito ao paulismo (que apenas contempla a sucessividade de estados de alma-paisagens).
A mente é em cada estágio um teatro de possibilidades simultâneas, como afirmou textualmente o filósofo americano -- e é justamente em busca de capturar pintando ou poetizando essa peculiridade de nossa vida mental, digamos assim, que o simultaneísmo órfico e o interseccionismo encontram sua razão de ser. A peculiaridade de nossas experiências será sempre melhor discernida por intermédio das relações entre elas. O empirismo sabe disso, os adeptos do interseccionismo também.
E, por último, a nomenclatura da grande maioria dos programas congeminados no Orpheu está intimamente ligada às propostas do empirismo radical e do pragmatismo, como o sensacionismo (sensacionalismo, para James), o interseccionismo e o simultaneísmo, cada um destes últimos originados das noções defendidas por James com respeito ao processo cerebral, às relações conjuntivas, aos sentimentos de relações, etc.
E com tudo isso que se disse nestas últimas páginas concorda o poeta metafísico, quer seja ele da geração de Donne, quer seja da geração de Laforgue, quer seja da geração do Orpheu.
É contudo inadiável assinalar ainda que o sensacionismo foi também a pedra de toque do simbolista idealista Remy de Gourmont. Sua defesa da primazia das sensações parece ter sido também muito importante para que Pessoa desenvolvesse seus conceitos acerca da arte moderna em geral -- bem como para que planeasse os rumos mais consistentes das poéticas órficas, que gestou e estimulou como mentor do Orpheu. Com efeito, em Le problème du style Gourmont dirá textualmente: "os sentidos são a única porta de entrada para tudo o que vive no interior da mente [...]. A sensação é a base de tudo, da vida moral e intelectual como também da vida física" (2). "Nada existe, não existe a realidade, mas apenas sensações", responderá Fernando Pessoa, fazendo coro com o autor francês (3). E com o próprio Mario de Sá-Carneiro, que talvez tenha sido o responsável pela importação das idéias de Gourmont em Portugal.
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