REINALDO RAMOS

POEMAS

Sã Sonolência

 Não, não sabia

não sabia a terra

se era mesmo a lua

a grande senhora

de minha narcolepsia

ou meu sono que era

somente um soluço

som ou silêncio

que a lua alitera

 

Almaço-alumínio

queloide clara

do asfalto celeste

tantas sonatas

e parafernálias

perdidos sonetos

e parafilias

proclamados por séculos

de melancolia

em multissonante

e estridente elegia

 

Desce-me do céu

a ponta da lua

bíblia de poeta

brilha feito ornamento

uma bilha de roleta

a evoluir por seu eixo

como o centro dos raios

das bicicletas

 

Como um croupier metafísico

que lhe manobrava o escape

e a fugidia força

a desgarrar-se de dentro

descansava-lhe à calha

entre o vermelho e o preto

derradeiro tripúdio

à ciência dos cínicos

 

Não fosse por ela

a tomaria por coisa avessa

porque na pousada da vista

desobediente luzia

e ainda anda armada

a escoltar o meu sono

que acorda o mundo dos mortos

como uma náusea na calmaria

 

Cândida lua

que me há contaminado

longe vá posar seu halo

que me há coroado

cura-me em seus extensos

campos agrícolas

a robusta moléstia

dos malditos versos

de minha vesícula

 

Pois que na perimetral via

me via elevado

sentado ao lado

de ninguém ainda vivo

fixado na lua

por estado de enlevo

contemplei sua face nua

em altíssimo relevo

despida da oculta bruma

do seu véu oriental

banhado de alvura

como uma mítica bunda

lisa, branca e crua

 

Senhora serena

de minha eterna espera

porquanto não finde

esta infinita quaresma

já não mais mesma lua

que levou minha sorte

sei que há de se pôr

nesta solene hora

a sorver meu esperma

para fecundar-se de morte.

Mareio

Onda de pedra e peso

valor sem marca de preço

massa de mar e tempo

move o intento e o medo

nasce por onde não penso

age por onde me esqueço.

Escapulário

 És mais perfeita que a garrafa de Coca-cola

tens as dores

do nada

engastadas

no cesto de ráfia

de guardar najas

encantadas

que levava

às costas

 

Tens o mapa da África

tatuado

em tuas escápulas

 

E terra de prados

perdidos

embaixo das unhas.

Blackbird

Há uma triste garoa

há um réquiem de muitos silêncios

há uma homenagem solene

para uma revoada de melros mortos

 

Há alguns suicídios por tédio

há a gênese de novos tumores

há escolha para síndicos de prédios

para uma revoada de melros mortos

 

Há uma dança macabra

há um cortejo fúnebre

há amigos de muitas solidões

para uma revoada de melros mortos

 

Há um chorar condoído

há rumores apocalípticos

há adágios para o nascer do dia

para uma revoada de melros mortos

 

Há glaciares se derretendo

há muitos olhares incrédulos

há destinos se precipitando

para uma revoada de melros mortos 

 

Há uma bandeira à meio-mastro

há transatlânticos ancorados no porto

há rancores multiplicados entre nuvens

para uma revoada de melros mortos

 

Há canções para o morrer da noite

há tremores de mais asas débeis

há impenetráveis cegueiras vivas

para uma revoada de melros mortos.

Poesia + Vida

 Eu quis percorrer uma linha reta

entre René Descartes e Wally Salomão

mas a linha saiu torta

linha sem viagem certa

de única mão

 

Entre a estação de Tóquio, a lua, o amor perfeito e outros lugares que eu não conhecia

restou a Penha, a rua, a eterna procura e a estação de Olaria

daqui, eu me via

 

A linha que quis percorrer em viagem de ida

constrita feito aneurisma na aorta

caminho que eu já sabia

 

Escrita sem volta

linha poída. 

Deveres Humanos

 Efetuar a engenharia reversa dos dicionários

repatriar os primeiros sentidos de mundos impossíveis

sepultar as sílabas decompostas

dos tempos mortos nos abecedários

 

Promover a desordem analfabética dos conceitos

fazer das palavras etiquetas sem cola

para pregar nas coisas paradas e móveis

por reverência a todas as formas de queda.

Como sobreviver em noites muito frias

 Aqui jaz a efêmera felicidade

que por um instante

se pensou eterna

 

Ai, essa felicidade que se pensa

antes fosse inconsciente

pra ser pra sempre

só presente

 

Assim se dava

e não passava

assim seria

não morreria

fique sem nome

fique sem símbolo

fique sem dono

seja concreta

 

Deixa o tempo aqui, felicidade

passe longe do que for espaço

seja sempre fora

da ordem óbvia

das coisas físicas

 

Minha abstração favorita

meu nome sem significado

pra que não passe, não se diga

pra que não morra, minta

não tão perto pra que se entenda

mas não tão longe

que não se sinta.

Oração aos pecadores

 Santificada seja a privação de lucidez dos pecadores

 

Permita Deus que o manto da ignorância

 lhes seja sempre suficientemente forte

para impedir a contemplação da verdade

 

 Que os que não tem força para conviver com ela

permaneçam eternamente protegidos em sua fraqueza

 

Amém.

Sentinela

 Desconhecia a maioria

dos teus acessos

mas por controlar meus excessos

eu fugia

dos teus olhos fátuos e dos teus juízos

eu era somente quando te sentia

no inverso

e passava por ti inteiro

dia inteiro

a desmontar versos

no instante em que te deslizava

eu era rei mas não sabia

porque fiz de você

meu não saber

e do meu não saber

sabedoria.

Dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço

Eu queria fluir desimpedido

por entre desimpedidos espaços

 mas descobri pela interdição

da concretude de uma pilastra

que gosto tinha meu próprio sangue.

Descobri que minha carreira

era apressada por demais para um equilíbrio ainda débil.

Descobri que se eu de fato quisesse fluir

por entre os vazios

era imperativo antes de tudo,

e sobretudo,

domesticar minha permanente inclinação à queda.

Fosse no centro ou no arrabalde de minha gravidade inescapável.

Reinaldo Ramos nasceu na cidade do Rio de Janeiro, Brasil, em Agosto de 1978. É professor de Filosofia no ensino médio da rede pública, tem inteligência mediana, pertence à classe média suburbana e é, seguramente, alguém bem pior que você. Já estudou Cinema, fez mestrado em Bioquímica Médica e foi premiado em um concurso nacional promovido pela Academia Brasileira de Letras em parceria com o Jornal “Folha dirigida” em 2008 com uma redação sobre os cem anos da morte de Machado de Assis.
Email:reinosdafilosofia@hotmail.com
http://fronstispicioconflagrado.blogspot.com/