UMA ACADEMIA E SEUS CORIFEUS…
Júlio Conrado é um escritor que se divide em dois: de um lado temos o
crítico literário que no tempo em que tal estatuto tinha assento nos
jornais e revistas do país, era, sem favor, por demais considerado, autor
dos volumes Olhar a Escrita
(1986), Ao sabor da escrita
(2001) e Nos Enredos da Crítica
(2006); e do outro, o ficcionista, autor inesquecível do livro
Era a Revolução (1977), dos não
menos inesquecíveis contos de
Gente do Metro (1989), e
d’As Pessoas de minha casa
(1985), Desaparecido no Salon du
Livre (2001), Estação Ardente
(2007), Prémio Vergílio Ferreira, etc.
Para não falar em poesia, onde também possui assento, há ainda uma
terceira entidade em Júlio Conrado caracterizada pela tentação de se
divertir e de gozar com a malta. Nesta vertente, mercê do seu currículo
literário, pouco lhe importa se o que às vezes escreve ficará para o
futuro, importando, sim, que se divirta com o que produziu, esperando
divertir também os leitores.
Em tais escritos a paródia e o ridículo são uma constante, caso por
exemplo de O Corno de Oiro
(2009), narrando-nos histórias parodiantes e burlescas que, com exagero ou
sem ele, constituem a marca deste nosso tempo, nomeadamente sobre a
ascensão de chicos e
chicas espertos, a coberto de
toda a sorte de habilidades e debilidades do sistema, cabendo num tipo de
literatura que diverte, ainda que sem abdicar dos seus elementos
fundamentais, pois que, atrás destas sátiras burlescas, sobrevivem coisas
sérias a ter em conta.
Num país dividido entre escritores bem comportados ou a passar por isso, e
outros mais à procura de protagonismo, com exibições das suas pessoas em
tudo quanto é sítio e em poses de olhos em bico e os pés em leque, Júlio
Conrado assume uma postura aparentemente similar, mas que tem por
objectivo demonstrar pelo contraditório o ridículo das suas existências.
Como seu quê de realismo surrealista, esta história ao redor duma
academia, que só podia ser de letras, é fac-simile de outras academias,
fundações, pretensas instituições literárias e de intelectuais, senão
mesmo de partidos políticos, e tem por motivo a decoração dos seus
dirigentes.
Entre tantas variantes, para uma especial, de letras, me transporta esta
narrativa, que conheceu forte turbulência há uns anos atrás, mercê da
disputa que então se travou entre leões velhos, enquistados no poder, e
leões novos apostados em substiuí-los.
A que agora o autor nos apresenta, ao redor duma academia, que tem por
sigla APON (Academia Publius Ovidio Naso), fundada nos republicanos anos
20, e em rigor condiciona a sua acção aos registos românticos afins à
técnica do engate amoroso, razão pela qual os maldizentes a apelidassem de
AAAA (Academia dos Amantes do Amor à Antiga), pois na contemporaneidade de
há muito que as técnicas e descrições sobre o engate amoroso nada possuem
de romantismo, confinando-se ao fundamental, isto é, ao tiro e queda…
De todo o modo, uma academia sempre era uma academia, assim pensava o
ensaísta Berto Aguiar, ao ser convidado para nela se integrar, autor de um
ensaio sobre o Romantismo, A Queda,
publicitado em termos exaltadamente elogiosos na credenciada revista
londrina The Romantism Now.
Além de que a APON possuía serviços de consultadoria matrimonial,
planeamento familiar, arranjo de encontros, gabinetes jurídicos e de
psicologia vocacionados para impedir separações, divórcios, e promover
reconciliações, a par de outros porventura mais avançados, impostos pela
razão dos tempos, sobre o uso de cremes afrodisíacos, utensílios eróticos,
etc.
O êxito de Berto Aguiar no estrangeiro chamou a atenção caseira e vai daí
a direcção da APON, a braços com o falecimento de uns quantos sócios de
idade avançada, entendeu matar três coelhos de um só golpe de cajado:
colmatar parte das perdas dos associados; integrar na academia um escritor
prestigiado na estranja, avanço significativo em relação a outros convites
institucionais que porventura viessem a ocorrer; e por acto de
compensação, de estratégia subtil, garantir o voto do convidado com a
promessa de passagem rápida de sócio correspondente a sócio “de Número”.
O cardápio dos interesses que moviam a academia e as suas facções é
mensurado desde logo por Plínio Mendes, dito psicólogo e fiel apoiante do
tio secretário-geral (que conspirava contra o presidente), para justificar
o convite a Berto Aguiar na condição de sócio correspondente para já.
Porque tão logo fossem alterados os estatutos, que ninguém conhecia e se
lembrava, agora reivindicados pela oposição, passaria a académico de
número e a ocupar um posto chave na direcção.
O que Plínio Mendes não sabia, como aliás os elementos directivos em
geral, com excepção do tesoureiro e do presidente, é que a academia
caminhava a passos largos para a falência. Segundo este,
as contas são fáceis de
compreender. Desde remotos tempos beneficia a Casa da subvenção estatal
que lhe tem permitido desenvolver os seus programas repousando numa
confortável almofada financeira […] Avenças, consultadorias, assessorias,
tudo acaba. Em nome do emagrecimento da despesa do Estado, apertado pelas
agências de rating […] A Europa diz que já deu o que tinha a dar e que
para países calões, como o nosso, não dispõe de mais bagulho […] Se os
reguilas (a oposição) ganharem a eleição nem fazem a mais pequena ideia do
que os espera. E conclui:
Dentro de seis meses, caso o clima depressivo persista e nada tenha sido
entretanto alterado, admito que a Academia se veja obrigada a correr as
persianas.
Este, digamos, é o panorama sobre a continuidade da existência da
academia, mas que fica subalternizado pela necessidade da direcção actual
vencer a eleição, pelo que dar conhecimento da situação financeira seria
catastrófico e mais ainda anunciar as medidas necessárias, despedimentos e
encerramento de muitas actividades, etc. Depois se trataria disso.
Em tal galeria de interesses e de ódios mal disfarçados, de leões novos e
velhos ao ataque por uma sobra de protagonismo, posicionavam-se já não
poucos trânsfugas, enfim, negociatas sobre os postos a ocupar, cabendo um
deles, por promessa, a Berto Aguiar, banal professor do Secundário, mas já
classificado como notável,
mercê do êxito estrondoso do seu ensaio proclamado pela revista londrina…–
que tem uma outra história pendurada, por acaso ou não, com início num
urinol em Londres, e que revela a alta distinção atribuída à
Queda resultante duma
vingançazinha em desfavor do presidente da academia.
Tal como um cabaz de cerejas, de onde dificilmente se tira uma sem muitas
outras virem agarradas, assim é este romance, que possui um outro à
mistura, ao qual não falta uma crítica hermenêutica ao neófito autor do
mesmo, que fica sem saber sobre o que escreveu, a par de histórias de amor
serôdio e juvenis e do mais que acontece em prolixa imaginação, ao ponto
de Berto Aguiar se vir a confundir com o próprio Autor na cerimónia do
lançamento deste livro.
O melhor é lê-lo.
E compará-lo com a governação deste país.
Ramiro Teixeira
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