LETRAS: HISTÓRIA.CRÍTICA LITERÁRIA. FILOSOFIA. CONTOS. POESIA. ETC..

 

 

David Mourão-Ferreira

Ora é precisamente no soneto que encontramos alguns dos momentos mais felizes do diálogo da poesia portuguesa contemporânea com Petrarca. Aí, ocupa um lugar de relevo David Mourão-Ferreira , que incluiu na edição da "Obra Poética", em 1988, a abrir um conjunto inédito, uma "Fala Apócrifa de Camões".

Camões recomenda aos que o lêem que o procurem não nos acidentes da biografia, ou nas consagrações oficiais que a posteridade lhe fez, ou nas discussões à volta da edição da sua obra, mas na dimensão essencial da sua vida, a que viveu em diálogo com os seus autores de cabeceira. Só a esses, contou "por seus amigos". Curiosamente, os cinco autores citados, Virgílio e Ariosto , Petrarca, Bembo e Garcilaso , repartem-se enquanto modelos da poesia épica e lírica camoniana, respectivamente. Não por acaso, entre aqueles com quem manteve trato íntimo na lírica, encontram-se duas das figuras maiores do petrarquismo, Bembo e Garcilaso . Embora não seja dos exemplos mais notórios de textos em que, dando a fala a outro poeta, o autor acaba por falar de si mesmo, vê-se que Mourão-Ferreira , grande conhecedor da tradição literária ocidental, estava bem familiarizado com as tradições que os poetas citados representam, e nomeadamente com a que tem o início em Petrarca. Leia-se o "Soneto do Cativo" de "Os Quatro Cantos do Tempo", 1958: "Se é sem dúvida Amor esta explosão/ de tantas sensações contraditórias;/ a sórdida mistura das memórias,/ tão longe da verdade e da invenção;// o espelho deformante ; a profusão/ de frases insensatas, incensórias ;/ a cúmplice partilha nas histórias/ do que os outros dirão ou não dirão;// se é sem dúvida Amor a cobardia/ de buscar nos lençóis a mais sombria/ razão de encantamento e de desprezo;// não há dúvida, Amor, que te não fujo/ e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,/ tenho vivido eternamente preso!" Se David aqui " petrarquiza ", é essencialmente por via do relevo que no soneto têm os temas das contradições e da prisão do amor, para além do inexcedível cuidado posto na construção do poema e da agudeza com que nele é desenvolvido o argumento.

Mas, mais uma vez, é impossível esquecer, como sempre acontece com os poetas portugueses contemporâneos petrarquizantes , que eles leram Petrarca só depois de terem lido Camões. E o eco deste é, a vários níveis, bem sensível no soneto: tudo, afinal, é integrado, de forma individualizada, no universo poético do próprio David. Lembremos que um dos temas maiores da sua poesia é o amor, como logo punha em evidência a epígrafe de Dante do I de "Os Quatro Cantos do Tempo", " Tutti li miei penser parlan d'Amore ", e que, contrariamente à tradição platonizante tão enraizada na lírica portuguesa, a poesia amorosa de David é uma poesia de celebração do corpo, não só dos sentimentos, mas também dos sentidos e das "sensações", como vemos no "Soneto do Cativo".

 

Alberto de Lacerda

 
Num outro poeta da geração de 50, Alberto de Lacerda, encontramos idêntico fascínio pelo que chama a "forma sumptuosa/ Austera e nobre" do soneto, num livro impresso em Veneza nos começos dos anos 90 e cujo título, "Sonetos", não podia ser mais austero nem mais elucidativo quanto à celebração da mais famosa das formas fixas. Num dos 147 sonetos do volume, o 113, alude o poeta ao nascimento da forma na Sicília e a um dos poetas que tiveram um papel preponderante no seu surgimento, Jacobo da Lentini , e nesse mesmo texto sobressai um dos motivos que mais associamos à tradição petrarquista, o da "chama", do "fogo" do amor, aquele que Gaspara Stampa fixou na fórmula "arder amando". Noutro poema, o 26, o poeta toma como confidente da "tortura" causada pela "ausência" do ser amado a terra natal de Petrarca, Arezzo : "Ai, Arezzo , palavra Diamantina,/ Ouve a música escura da saudade/ Ouve a tortura pura antiquíssima:/ Ausência criando outra eternidade." Mas em nenhum outro lugar se ouve tão distintamente a "música escura" do petrarquismo como naquele soneto em que se tematiza a "bárbara contradição" que abala o coração: "Meu coração, por que te contradizes?/ Porque és contradição apaixonada./ Tanto acusas e louvas ou desdizes/ Como te fechas num horror cercado// [...]."

Manuel Alegre

 

Um dos momentos culminantes do uso do soneto na poesia portuguesa contemporânea temo-lo numa colectânea de Manuel Alegre publicada em 1993, "Sonetos do Obscuro Quê". Poeta muito consciente da sua inserção na tradição poética ocidental, Alegre procede aqui, sob o impulso tutelar de Dante, como ele poeta do exílio, à revisitação de alguns dos momentos e vozes cimeiros desse legado, que inclui também a contemporaneidade. A presença de Dante, glosado, epigrafado, aludido, não impede que o poeta dialogue com outras vozes, nomeadamente com outras duas igualmente responsáveis pela consolidação do soneto, Cavalcanti e Petrarca. No que a este diz respeito, o diálogo processa-se, num soneto de celebração da amada, por alusão a uma fórmula, " l'aura amara", que associamos ao que já se chamou a "evocação por defeito do nome", segundo Martine Broda , quando em " L'Amour du Nom " fala do "interdito sagrado" que pesa sobre o nome de Madonna Laura nas "Rimas", apenas presente aí através de " paronomásias , anagramas, cadeias associativas fono-semânticas ": "Tudo o que ondula ondula no teu corpo/ a graça a flor o vinho a égua a água/ ondula o barco e o arco ondula o porto/ 'l'aura amara' e a onça ondula a mágoa// Ondula o vento a vela a onda brava/ e a caravela dentro da palavra// [...] // Ondula a sílaba e a chama ondula/ abril e o til a flauta a flama a flâmula// Ondula a seara a saia a sarça o trigo/ tudo o que ondula ondula e vai contigo."

 

Fernando Assis Pacheco

 

Poeta de uma "família" diferente da do seu coetâneo Manuel Alegre, fazendo sua não a tradição do lirismo elevado, mas a da auto-ironia e da suspeição sobre os grandes temas e a de uma linguagem dessolenizada, Fernando Assis Pacheco cita dois versos de uma conhecida poeta do petrarquismo quinhentista italiano, Gaspara Stampa, num dos poemas da colectânea póstuma "Respiração Assistida".

A desenvoltura do poeta fica logo patente no título ("Sacado da Gasparina"), com o uso desinibido do calão e a familiaridade com que se refere à poeta italiana. Por detrás do tom displicente da sua lira, estava um poeta que era ser senhor de uma notável cultura poética. Dos dois versos que cita da Gasparina - apresentada como "exemplo sublimado/ [de] amante" na 1ª elegia de Duíno , de Rilke -, é indicada, em nota, a fonte bibliográfica. Por outro lado, torna-se evidente, não obstante a clave irónica sob que coloca o texto, que Assis Pacheco está bem familiarizado com o código petrarquista, como se vê pela referência às "almas namoradas", aos tormentos, às lágrimas e ao "fogo" de amor, e à sublimação de tudo isso que o canto realiza: " Piangerò arderò canterò sempre/ como fazem as almas namoradas/ sobretudo em verso e mais as castigadas/ pelos demónios que transportam dentro// o amor toca a todas as espécies/ mas à humana muito em particular/ desde os primeiros bípedes do Afar / que supõe-se o enumeravam entre as febres// como ponta de cigarro no arvoredo/ que se transforma logo em fogo basto/ fica de ele passar só cinza mas/ 'io d'arder amando non mi pento' ."

 

Ruy Belo

A familiaridade com o código petrarquista é também sensível em dois poemas longos de "Toda a Terra", de Ruy Belo, dedicados à paixão de Garcilaso por Isabel Freire, dama do séquito da Infanta D. Isabel quando do seu casamento com Carlos V. A consciência irónica das convenções próprias do código faz mesmo com que eventualmente se deslize para o " antipetrarquismo ": "eu procurava/ [...] uma razão a única razão (e não sentimental como afinal o é/ a convenção que adopto de petrarquizar / neste meu verso aparentemente livre/ mas no fundo apoiado no decassílabo/ [...]."

 

Luís Filipe Castro Mendes

 

E chegamos a dois poetas revelados nos anos 80, que representam uma orientação típica do período, a de uma poesia que entra desinibidamente em diálogo com o discurso da cultura.

O primeiro, Luís Filipe Castro Mendes, alia ao culturalismo um pendor classicizante que o leva a privilegiar não apenas o metro e a estrofação regulares e a rima, como a recorrer a formas poéticas tradicionais. Num poema de "Viagem de Inverno", de 1993, toma como tema um dos episódios mais relevantes da biografia de Petrarca: a coroação como poeta laureado no Domingo de Páscoa de 1341, no Capitólio, em Roma. O texto assume, dentro do esquema estrófico do soneto inglês, a forma de uma fala dos poetas que reagiram mal à coroação de Petrarca, a qual ocupa os três quartetos, a que se segue, num dístico, a conclusão enunciada pelo poeta-narrador : "Que um só personagem tenha sido/ de todos o eleito nos parece/ abuso singular do dom divino/ que não sabe entender a dura prece.// Não nos importa prémio nem castigo,/ temos diante nós a Eternidade./ Injusto nos parece tal destino,/ que coroa assim a vã facilidade.// [...] // Assim falavam os demais poetas:/ suas pobres palavras hoje desertas."

O poema acaba por conduzir a uma reflexão sobre os aspectos menores da instituição literária, para o caso as rivalidades entre poetas, e a vanidade dos esforços dos que, envolvidos nas intrigas do seu tempo, querem a todo o custo impedir o reconhecimento da verdadeira grandeza. Digna de registo é a presença, na obra deste poeta que tão deliciadamente se entrega ao "jogo de fazer versos", de três triunfos, que, todavia, pela reduzida dimensão e pelas opções estróficas , se afastam do modelo petrarquiano e do forte investimento que o poeta de Arezzo nele pôs.

 

Paulo Teixeira

 

O outro poeta enquadrável na orientação culturalista de alguma da poesia do último quartel de Novecentos é Paulo Teixeira, que, no diálogo com figuras relevantes do mundo da literatura e das artes, recorre com frequência, em especial na primeira fase da sua obra, ao monólogo dramático. O dar-lhes a fala, no caso dos escritores, não pressupõe necessariamente por parte do poeta qualquer preocupação de mimetização estilística. Usa, sim, Teixeira uma dicção poética elevada, em contraste com alguma poesia imediatamente anterior que aposta numa linguagem mais coloquial. As personagens, surpreendidas num momento capital ou de crise da sua existência, aludem a episódios ou circunstâncias do seu percurso biográfico que requerem, para a consecução do processo comunicativo, a cooperação de um leitor informado. Em "A Região Brilhante", de 1988, encontramos um poema em que Petrarca toma a fala, dirigindo-se a Laura, ao saber da sua morte em Parma, em Maio de 1348. A voz que chega até nós dá não apenas expressão à dor irreparável causada pela morte da mulher amada, mas também a um contraditório sentimento de frustração de quem, pela desmedida idealização desse amor, renunciou, afinal, a viver: "Já o azul das alturas se abate sobre a terra/ como a tua mão, outrora, no ventre como um monte/ adormecido. Eu, fazendo da solidão e do ócio/ um rito quase monástico, em que divino e humano/ desejando-se se receiam para sempre, caminhando/ vou com passos ineptos na luz desse rosto/ uma vez entrevisto e logo desvelado pelos abismos./ [...]."

 

Vasco Graça Moura

 

Vasco Graça Moura, que se inclui igualmente na tradição do "poeta culto", deu-nos recentemente a ler, na sua totalidade, as "Rimas" de Petrarca. Num poema de "A Furiosa Paixão pelo Tangível", de 1987, "O Desgaste das Imagens", Graça Moura começa por fazer, com irónico "desrespeito", referência a Laura e Beatriz como duas imagens que, para nosso alívio, se apagaram e que, pelo desgaste a que foram submetidas, se tinham tornado "insuportáveis". Então, Graça Moura não adivinhava certamente que viria a traduzir Petrarca, nem Dante, diga-se de passagem, embora já averbasse na sua bibliografia traduções de Shakespeare, Enzensberger e Benn . Mas nisto de traduções, e no que permitem deduzir acerca das afinidades e famílias poéticas de um autor, não andamos longe do que John Ashbery disse, um dia, a propósito das influências: não somos nós que as escolhemos, mas elas que nos escolhem. E alguns anos depois da diatribe sobre Laura, vemos Graça Moura incluir Petrarca na lista dos seus "mestres", na "Nota Final" dos "Poemas Escolhidos", onde, de resto, não custa imaginar, há longos anos já devia figurar. Perto do fecho dessa nota, escreve o poeta que "nunca nada é inteiramente nosso". É entre essa salutar constatação e o gesto de pôr a par na sua bibliografia o "alheio" e o "próprio", que há que situar a aventura poética de um autor que não cessa de nos surpreender e que, no que faz, deixa perceber que pertence à estirpe daqueles "que inventam a poesia [...]/ como radical abalo do mundo".