PAULO MENDES PINTO
NOMEAÇÃO - MONOTEIZAÇÃO - EXCLUSÃO DO "OUTRO"
A nomeação do divino no Mundo da Bíblia
Este texto procura transmitir uma reflexão em torno das formas de nomeação do Deus de Israel e da construção dessas formas de nomeação em directa relação com outras divindades cultuadas no mesmo espaço cultural e social, equacionando o seu peso teológico na construção da possibilidade monoteísta.

Trataremos um fenómeno de exclusão das restantes divindades presentes na malha cultural em causa. Essa exclusão é dupla: por um lado é, de facto, banido o culto dessas divindades, por outro lado, surge um processo de assimilação das principais categorias funcionais das divindades vencidas no sentido de fortalecer o seu deus, o Deus de Israel.

A principal forma de realizar essa assimilação verifica-se nas expressões de nomeação que são usadas para identificar esse deus cada vez mais vencedor, hegemónico e único.

1. O que entendemos por «nomeação do divino»

Para qualquer fenómeno religioso, temos de tomar como perfeitamente aceite o facto de, no contexto cultural e mental em que esse fenómeno se enquadra, as formas de nomeação usadas para efectivar a relação com o divino cultuado corresponderem à construção de um patamar de realidade. Naturalmente, para um «não crente» nesse sistema religioso, a nuance entre realidade e verdade assume aqui um grande significado que deve ser encarado na exacta medida da relatividade de qualquer sistema religioso face aos restantes. Toda a nomeação é uma realidade de valor teológico, sem que para tal o investigador necessite de a entender enquanto verdade.

Ora, nesta relação entre realidade e verdade ganha especial relevo a forma como é exprimida, em termos de linguagem, a concepção dessa realidade teológica. Damos especial interesse à metaforização enquanto qualificação do divino, enquanto construção de conteúdos relativos a uma cognição que resulta na escolha de um nome e não de outro qualquer [1] . A metaforização surge como um recurso no processo de nomeação, como uma forma de criação semântica que representa um acto de cognição face ao que é nomeado.

Genericamente, o Deus da Bíblia é nomeado com base em três vocábulos que apresentam algumas variantes: adonai, el / eloim e Yahweh. Os dois primeiros são como que qualificativos, ao passo que o segundo detém um sentido algo enigmático: correntemente é tido como um nome, mas corresponde, de facto, a uma frase que contém um vincado programa teológico de identificação.

2. A nomeação do divino como forma de estabelecimento de uma «ordem»

Na Antiguidade os nomes, pessoais e divinos, constituíram uma das formas mais frequentes e eficazes para implementar uma ordem social cultural ou religiosa. Geralmente, este processo assume a forma de uma destruição da nomenclatura até então vigente, dando origem à alteração de uma determinada ordem e à implantação de outra.

A situação mais evidente, e também mais mediatizada, é a da mudança de nome de Tutankhamon. De facto, os nomes de Akhenaton, e depois de Tutankhamón, oscilam na referência teogónica a Amon ou a Aton. Nestes nomes reais está plenamente expressa a luta que Amenófis IV, ou melhor, Akhenaton, realizou contra o poder do clero de Amon, em parte mal sucedida, e que conduziu a uma re-nomeação de si próprio para Akhenaton. O seu sobrinho, Tutankhamon, antes Tutankatom, mostra no seu novo nome a tentativa de consolidação no herdeiro real da linha ideológica. Quando, em seguida, o clero de Amon recriou a ordem anterior, o jovem faraó foi re-re-nomeado para Tutankhamon [2] .

No Mundo da Bíblia são também várias as situações de re-nomeação que marcam claramente a criação de uma nova ordem, de uma nova relação com o divino. É caso exemplificativo o de Abraão e de Sarai. Aqui, encontramos a visibilidade primeira da aliança com deus. Esta aliança implicava a re-nomeação daquele com quem deus estabelecia essa aliança.

No entanto, não é só sobre Abraão que recai essa re-nomeação. Na economia da aliança entre o então Abrão e deus, decerto ainda não Deus (esta re-nomeação também seria, por si só, de interessante análise), um dado é fulcral: farei de ti o pai de inúmeros povos (Gn 17, 5b).

Ora, e seguindo uma lógica elementar no esquema familiar montado pela narrativa, esta aliança implicava não só deus e Abrão, mas também a necessária parceira sexual para despoletar todo o processo de procriação. Desta forma, não é só Abrão que é re-nomeado, mas também o é a sua esposa:

Abrão - Abraão (Gen 17,5)
Sarai - Sara (Gen 17,5)

Teria de ser de dois novos seres, com novos nomes, que teria de ser concebido o filho de Abraão que realizaria os desígnios de deus. Já existia Ismael, mas era o ainda não concebido Isaac o desejo e o móbil desta nova nomeação. Nesta re-nomeação a funcionalidade é clara: criar as condições, ou melhor, recriar as condições, para a realização dos desígnios de deus. A realidade agora formulada implica a total reformulação dos sujeitos da acção.

3. A nomeação do divino e o Deus de Israel

Em relação ao Deus de Israel, tal como já referido, dois campos de nomeação se apresentam. O primeiro que será tratado, é (como que) um nome. Os restantes, podem ser tomados como qualificativos que ocupam normalmente o lugar do nome. A análise destes qualificativos implica alguma atenção a paralelos religiosos e culturais que também recorreram, no mesmo espaço, a esses mesmos vocábulos.

Com efeito, os qualificativos dão-nos dimensões de funcionalidade que, por si, justificam a sua adopção no meio cultural em que foram recolhidos e onde faziam sentido. A sua adopção está, inevitavelmente, intrincada com a génese e o desenvolvimento do próprio culto em causa, na medida que é também nesses qualificativos que a divindade se constrói enquanto valoração teológica.

Mais que qualificativos do deus em causa, esses vocábulos são dimensões essenciais da religiosidade vigente naquele espaço e naquele tempo, donde, anteriores e exteriores ao deus que os acolherá como formas da sua própria representação. A génese de um YHWH aglutinador de toda a dimensão teológica teria de reflectir esses sentidos pré-existentes, de os assimilar ou destruir.

3.1. YHWH

O vocábulo normalmente grafado por Jeová corresponde a um conjunto vocabular do qual se perdeu a correcta forma de fonização. A língua hebraica só se escreve com consoantes, relegando para um segundo plano as vogais. Ora, quando, por valoração teológica do próprio vocábulo que se tinha como sendo o nome de Deus, ele deixou de ser pronunciado, perdeu-se a memória das vogais que quase instintivamente se diziam ligando as consoantes que se grafavam.

Para  compreensão deste nome, tem especial interesse, pela proximidade linguística, a expressão de re-nomeação em Êxodo 3, 13-15, que nos aproxima ao sentido que esse nome poderia ter. Vejamos o texto bíblico, não na análise semântica que se poderia realizar, mas sim na forma como o próprio Deus aponta a necessidade desta nova nomeação:

Moisés disse a Deus: «Eis que eu vou ter com os filhos de Israel e lhes digo: “O Deus dos vossos pais enviou-me a vós”. Eles dir-me-ão: “Qual é o nome dele?” Que lhes direi eu?»

Deus disse a Moisés:

«EU SOU AQUELE QUE SOU. [3] » Ele disse: «Assim dirás aos filhos de Israel: “Eu sou” enviou-me a vós!»

Deus disse ainda a Moisés: «Assim dirás aos filhos de Israel: “O Senhor, Deus dos vossos pais, Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacob, enviou-me a vós: este é o meu nome para sempre, o meu memorial de geração em geração”.

Encontramos aqui uma situação de criação de uma nova realidade que é mais abrangente que a nomeação tida em sentido estrito. Porque se dá uma re-nomeação de deus? Os seus crentes não o conheciam? A expressão comummente usada e que referia a linhagem genealógica, ancestral, não era suficiente para que se estabelecesse o contacto entre Moisés, agora enviado de deus, e o seu povo?

Ora, duas reflexões nos surgem. Em primeiro lugar a re-nomeação efectua-se porque tem que ser consignado um espaço / tempo realmente significativo e marcante para delimitar uma nova era, uma nova aliança. É exactamente neste sentido que pouco mais à frente o próprio deus justifica este seu inovador acto:

Ex 6, 2-4:

Deus falou a Moisés, dizendo-lhe: «Eu sou o Senhor. Apareci a Abraão, a Isaac e a Jacob como Deus supremo, mas pelo meu nome Senhor [El Shaddai], Eu não fui conhecido por eles [como Yahveh]. Também estabeleci a minha aliança com eles […]». [4]

Isto é, a presença e a efectivação de uma nova aliança implica um novo patamar de acesso à divindade e, num último sentido, uma nova forma de conhecimento da divindade. O nome é uma forma de relação e  de conhecimento – neste caso, um novo nome, é uma nova forma de relação e um aprofundar do conhecimento, um novo quadro de caracterização do deus em causa: Yahweh is a proper name that indicates his mystery and his transcendence [5] .

A nova realidade que é consignada neste acto de nomeação é a natureza do próprio deus. Por um lado, de deus familiar passa a deus com aspirações nacionais; por outro lado, o nome que indica para si próprio é a negação da materialidade da sua essência que terá sua equivalente na afirmação da impossibilidade de representação pictográfica. A interdição da figuração de deus não é mais que uma variante da impossibilidade de nomeação.

Outra questão que aqui se nos mostra como incontornável é a da compreensão que os contemporâneos tinham da expressão Yahweh? Até onde estaremos simplesmente a elucubrar sobre realidades hipotéticas, só existentes num horizonte teórico, ou terá havido algum tempo em que o nome Yahweh foi entendido com a significação que actualmente lhe damos?

Aprofundando esta ideia, mais que averiguarmos qual a compreensão do significado do nome em si, interessaria compreendermos qual a construção / nascimento desse novo nome. Ora, exactamente dada a impossibilidade de representar este novo deus que surge das hierofanias sinaíticas, somos obrigados a pensar na rápida evolução da expressão para símbolo. A própria pronúncia vocálica desapareceu, tornando-se um vocábulo não nomeável – de nome passámos a anti-nome, um meta-nome que nunca realiza a sua função.

No limite, entre a identificação nomeado / nome, verifica-se uma total inversão de sentido que, longe de negar essa relação, a leva a assumir uma forma própria e autónoma: a valorização do nome transforma-o nessa entidade autónoma. Neste fenómeno se pode enquadrar a vida autónoma do signo YHWH que passou a ser grafado com desenho de letra diferente de todo o restante texto bíblico.

Sintetizando, YHWH não se pode dizer que seja um nome. Um nome, para o ser, necessita de ser nomeado, de ser usado e conhecido. No melhor dos sentidos, poderíamos considerar esta expressão como um «nome secreto», mas mesmo assim, de algum modo, nem essa funcionalidade poderia ter, uma vez que a memória da sua forma se perdera.

Que expressões seriam então usadas para comunicar e referenciar esta divindade? Vejamos, agora, os já referidos qualificativos.

3.2. Adonai e El

No espaço de Canaã pré-Bíblico, mais propriamente em Ugarit, existiam duas formas essenciais que aglutinavam a definição do divino. Por um lado, o vocábulo «el» correspondia à própria noção de divindade – qualquer deus de Canaã poderia ser referido como el. Por outro lado, o vocábulo «baal» transmitia a sagrada e essencial noção de realeza – noção basilar das instituições humanas e divinas, sem a qual nada no mundo seria mantido em plena e correcta ordem. Assim, à volta destes dois conceitos giravam os dois fundamentais campos de teologia da cultura de Canaã.

Para além destas duas noções aglutinadoras da esfera do divino, estes mesmos vocábulos, «el» e «baal», eram ainda sinónimo de duas divindades específicas, com lugar certo no panteão e com mitologia e acção própria.

Isto é, para além de «el» querer dizer «divindade», poderia ainda significar «El», agora maiusculado porque corresponde ao deus El.

Em relação ao vocábulo «baal» o mesmo se passava, podendo o vocábulo ser usado, quer em linguagem corrente enquanto a expressão mais comum para definir a realeza e a senhoria, quer como nome do deus Baal.

Por seu turno, «baal» tem como sinónimo «adonai»; na dimensão de não-nome, ambos os vocábulos são largamente usados para expressar uma forma de estar, uma atitude de senhoria que, de facto, é consensualmente expressa nos dicionários.

Que significado teriam estes dois deuses e dos seus respectivos nomes?

Pela verificação das ocorrências dos nomes de Baal na mitologia de Ugarit, facilmente se constata que Baal é, acima de tudo, baal. Ou melhor, e por outras palavras, Baal é, acima de tudo, Senhor.

Os nomes dizem-nos que a sua condição principal é, de facto, a que já está expressa no seu próprio nome, um rótulo de valoração pleno de conteúdo nas situações teológicas narradas e vividas no seu ciclo mitológico.

Neste sentido, Baal é o Príncipe Senhor da Terra, que mostra todas as suas dimensões que fazem dele o efectivo Senhor e não El.

Baal é ainda, nos textos mitológicos, esmagadoramente Baal o Vitorioso. Porquê esta aparente cumulação? Simples e complexo. É que Baal é o protótipo do deus que morre.

E que morte é essa e qual o seu sentido? O indício que nos permite perceber o conteúdo teológico em causa encontramo-lo na própria articulação do mito: Baal morre, mas afirmando a sua condição que melhor nega esse facto historicizado na narrativa – mesmo morto é Baal o Vitorioso.

O nome, o epíteto, como que afirma a sua natureza e função mesmo quando o decorrer da acção o contraria.

De facto, este nome é usado, ou melhor, é gritado repetidamente no momento exacto em que essa natureza do deus tem de ser potenciada aos quatro ventos. Inevitavelmente, Baal ressuscita. Ou seja, é quando o deus encontra a morte que se torna mais necessário afirmar a sua qualidade de Vitorioso. O seu nome revela neste processo  a plena eficácia da sua funcionalidade, tornando-o Vitorioso mesmo quando (aparentemente) vencido.

Baal é ainda toda a dimensão de fertilidade expressa no Mundo da Bíblia: ele faz a gestão atmosférica que possibilita a agricultura. Alguns dos seus nomes e epítetos com esta funcionalidade relacionados são, Haddu, forma de nomeação geralmente interpretada no campo da acção atmosférica e da fertilidade, Baal (que mora) nas alturas de Sapanu e o Auriga das nuvens.

A condição de senhoria encontrada em Baal é parte essencial na estrutura religiosa do Mundo da Bíblia e da bacia do Mediterrâneo que ao longo do milénio seguinte se tornará vitoriosa.

Não é exagerado afirmar que ele é quase integralmente a religião de Canaã ou a sua antonomásia [6] .

Ao contrário, El caracteriza-se por uma clara oposição a Baal – oposição porque são opostas as suas funcionalidades e não porque eles estejam em contenda. El é o deus que não participa em qualquer acção a não ser naquelas que tenham a ver com a gestão dos conflitos. Mais, aqui essa gestão dos conflitos não implica um posicionamento de fiscalização, mas sim o de verificação que esses conflitos de facto existem e se desenrolam enquanto tal.

Nada coloca em causa a sua posição e funcionalidade, tanto mais que ela não implica qualquer acção: a noção de faber aplicada à divindade assenta essencialmente em Baal, Anat e Kotar, entre outros, mas nunca em El.

Neste sentido, o nome mais usado para este deus é exactamente o seu nome comum, El, reportando esse nome para a própria noção de divino e de divindade que o vocábulo encerra. É exactamente este mesmo vocábulo que é usado para todos os epítetos tipo “divino é …”, tal como, simplesmente, para referir a presença de uma qualquer divindade não nomeada, através das variantes de número e pessoa com as terminações normais de at (feminino) e im (plural).

Assim, El tem aqui a sua funcionalidade e natureza perfeitamente definidas e, acima de tudo, claramente diferenciadas das de Baal.

El é ainda a divindade que assume os aspectos ligados às noções de eternidade e de criação do mundo. Vários são os seus nomes e epítetos que apresentam a sua ancestralidade, Rei, Pai dos Anos; os nomes que focam a sua actividade cosmogónica, criador das criaturas e Ilu, o Rei que estabeleceu; e os nomes que tocam a sua inerente sabedoria, grande és, Ilu, em verdade és sábio, e Ilu, que és sábio, sábio, sim, por toda a eternidade. Todos mostram, efectivamente, a sua dimensão primordial e cosmogónica.

Nessa noção quase cosmogónica de El está incluído o inevitável distanciamento desta divindade face ao dia-a-dia dos resultantes da sua criação. Assim, um dos seus epítetos é, a Divindade mais distante.

4. Epílogo

A religião de Canaã encontrava-se como que numa encruzilhada de sentidos: aos dois principais conceitos teológicos correspondiam duas divindades que assumiam esses mesmos conceitos. Ora, sem a posse teológica e funcional desses dois conceitos nenhum fenómeno religioso poderia ser vitorioso no espaço cultural de Canaã no primeiro milénio a.C.

A nível da estrutura de nomeação Observámos a duplicidade, a complementaridade entre Baal e El: Senhor e Deus. De facto, estes dois vocábulos foram, de forma inquestionável, as duas categorizações nomeativas que os monoteísmos tomaram como definidoras do lugar e função da sua divindade una e única através da assimilação nos nomes dos construídos com el e adonai.

Na dupla Baal e El encontramos a quase totalidade da definição de divindade em Canaã, pelo menos se considerada a sua principal herança: Yahweh.

Ao mesmo tempo que se afirma o Deus ciumento [7] que recusa qualquer forma de contacto do seu povo com outras divindades [8] , vai-se buscar a essas mesmas divindades rejeitadas as suas funcionalidades e até os seus nomes.

O futuro confronto entre o Javeísmo e Baalismo sofre percursos de "caricatura", inevitáveis num esquema de clara argumentação e de comunicação [9] , que mostra, acima de tudo, uma necessidade argumentativa de cumular o futuro deus quase-vitorioso com as características hierofânicas e funcionais do futuro deus quase-derrotado.

Baal é, de facto, uma divindade que no espaço de Israel sofre aceso combate e se extingue. Isso só é possível porque a divindade vencedora toma parte do lugar funcional de Baal, integrando-o nas formas e dinâmicas das suas manifestações e, em especial, integrando as suas características funcionais, deixando de haver espaço e necessidade para ele. Exemplo perfeito desta assimilação da funcionalidade de Baal por Yahweh encontra-se em Oseias 2, 7-10:

           A sua mãe prostituiu-se,

Desonrou-se aquela que os concebeu.

Ela disse: «Correrei atrás dos meus amantes,

Que me dão o meu pão e a minha água,

A minha lã e o meu linho,

O meu azeite e a minha bebida.»

Por isso, Eu fecharei o seu caminho com espinhos;

Erguerei uma sebe em seu redor, para que ela não encontre atalhos.

Ela perseguirá os seus amantes mas não os alcançará;

Procurá-los-á mas não os encontrará.

Então ela dirá: «Voltarei ao meu primeiro marido,

Porque eu era outrora mais feliz do que agora.»

Mas não reconheceu que era Eu quem lhe dava o trigo, o vinho e o azeite […]

Baal não fora derrotado como os profetas pretenderam demonstrar, Baal fora assimilado porque só assim se efectivava o total poder de um deus que tinha por trilho a omnipotência.

De facto, através de dois processos bem diversos, o futuro da formulação do divino no espaço de Canaã passou pela junção das duas definições presentes em Ugarit alguns séculos antes.

E o culto dos deuses Baal e El? Esses foram totalmente banidos e os seus cultuantes muitas vezes dizimados [10] . Um deus que era cada vez mais uno não admite espaço para o “outro” e, em especial, não deixa de assimilar tudo para, de facto, se tornar cada vez mais Uno e Único.

O que observámos aqui não é mais do que um caso paradigmático do processo de monoteização. Este, independentemente dos cultos e das culturas particulares que o produziram, é sempre um processo que só se efectiva à custa dos seus vizinhos, dos seus próximos. Ou seja,  é sempre um processo culturalmente doloroso para os que são alvo da assimilação.


NOTAS

[1] Como sistematização das formas de metaforização encontradas nos textos bíblicos, ver: G. B. Cairg  - Literal and Non-Literal. The Language and Imagery of the Bible. Michigan: William B. E. Publishing Company, 1996, pp. 131 – 143.  [Edião original de Londres: Duckworth, 1980.]

[2] Sobre esta questão ver, em português, Luís Manuel de Araújo - O Clero de Amon no Antigo Egipto. Lisboa: Ed. Cosmos, 1999, p. 60.

[3] Sobre a tradução deste nome / expressão ver, por exemplo, Frank Moore Cross - Canaanite Myth and Hebrew Epic: Essays in the History of the Religion of Israel. 7ª ed. Cambridge: Harvard University Press, 1997, pp. 60 – 75.  [Edição original de 1973.]

Em português ver a pequena síntese inclusa em Paul Garelli, V. Nikiprowetzky - O Oriente Próximo Asiático: Impérios Mesopotâmicos. Israel. São Paulo: EDUSP, 1982, pp. 276 – 283.  [Edição original de Paris: PUF. Nouvelle Clio, 1974.]

[4] Ver, nomeadamente, Herbert Brichto - From El Shaddai to YHWH. The Names of God. Oxford: Oxford University Press, 1998, pp. 24 – 25.

[5] Mircea Eliade - A History of Religious Ideas. Vol. 1. Chicago: The Chicago University Press, 1981, p. 180. [Edição original de Paris: Payot, 1976.]

[6] José Augusto Martins Ramos - Baal: caricatura e mito. Sumário para uma lição de síntese integrada nas provas de agregação, Lisboa: ed. do autor, 1996, p. 2.

[7] É o próprio deus que assim se caracteriza em vários trechos bíblicos.

[8] A divindade que foi mais sistematicamente alvo desta recusa é exactamente Baal (ver, entre muitos outros exemplos o episódio da idolatria na base do monte Sinai).

[9] José Augusto Martins Ramos - Op. cit, p. 4.

[10] Ver, entre dezenas de trechos bíblicos, Jz 7, 28-32; Dt 13, 1-19 e 17,1-7; Is 1, 27-31.



PAULO MENDES PINTO. (1971-01-10). Mestre em História e Cultura Pré-Clássica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Docente nas licenciaturas em Ciência das Religiões e História da Universidade Lusófona, na área de História e Fenomenologia das Religiões. Investigador Associado do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa. Investigador do Centro de Estudos em Ciência das Religiões da Universidade Lusófona onde dirige a Revista Portuguesa de Ciência das Religiões, o Boletim de Ciência das Religiões e a série monográfica «Cadernos de Ciência das Religiões». Colaborador da Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste» da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde edita a respectiva Newsletter e a revista Cadernos de Estudos Sefarditas.