Mas é
preciso ter força É preciso ter raça É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca Maria, Maria Mistura a dor à alegria
(Trecho da
letra de Maria, Maria, do
cantor e compositor Milton Nascimento)
Ela
costumava adentrar em minha sala com seu sorriso
largo em busca da barra de chocolate que sempre tenho junto ao computador.
“Meu lindo, o senhor hoje está
protegido pelos espíritos que lhe querem bem”. Além de chocólatra,
Maria também era espírita, via os mortos perambulando pelos corredores,
tinha visões do presente e antevisões do futuro. Inclusive conversava com
o ex-chefe, pai de nosso presidente atual, e que morrera havia dois anos.
Minha sala
é ampla e nela trabalho sozinho. Pelas grandes vidraças, se tem uma ampla
visão da cidade e do rio Capibaribe, já que o escritório da empresa fica
no 21º andar de um prédio à margem do rio. Maria, que sempre me visitava
em companhia da secretária do chefe, naquele dia estava sozinha. Ela me
fez os elogios de costume e me deu um abraço tão forte que pensei que
fosse sufocar.
Maria
fazia o mesmo com alguns outros homens da empresa, embora se dissesse bem
casada. Gorda, feiosa, de longos cabelos castanhos soltos sobre os
ombros,cerca de 30 anos, parecia uma índia com seus grandes olhos
amendoados e pele morena escura. Naquele dia em especial,
estava mais excitada e falante do que de costume.
Parecia feliz. Avisou-me então que
havia cupins do lado de fora de minha janela. Pegou uma das cadeiras da
sala, abriu a vidraça e com gestos ágeis – apesar do excesso de peso –
subiu no largo parapeito do lado de fora. O tempo estava chuvoso e um
vento forte e frio entrou na sala. Fiz gestos para que descesse dali. A
essa altura, outros funcionários da empresa assistiam à cena e alguns
entraram,
angustiados, em meu local de trabalho. Todos faziamos gestos e gritávamos
pedindo que Maria descesse do
parapeito. Ela abriu os braços generosos como os do Cristo Redentor, no
Rio de Janeiro, deu o sorriso largo de costume e depois daquele dia nunca
mais a vimos nos corredores com aquela sua esfuziante alegria,
distribuindo abraços nos colegas de trabalho. Nunca mais ela me chamou de
“lindo”, comeu um pedaço de minha barra de chocolate, me sufocou com seu
abraço generoso. “Nevermore”
– como o corvo lúgubre de Edgar Allan Poe.
Hoje eu me pergunto: foi
suicídio ou minha amiga realmente pensou, em seu delírio psicótico, que
havia cupins no parapeito da vidraça de minha sala e quis exterminá-los?
Nunca saberei com certeza absoluta a resposta verdadeira. Mas as notícias
dos jornais impressos e televisivos informaram no dia seguinte que ela se
suicidara, atirando-se do 21º andar de seu local de trabalho.
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Paulo Azevedo Chaves nasceu no Recife, em
1936. Advogado, jornalista e poeta, assinou no Diário de Pernambuco, nos
anos 70/80, a coluna cultural Poliedro e, de meados dos anos 80 até
1993, a coluna Artes e Artistas, no mesmo jornal. Entre 2002 e 2004,
assinou artigos bimensalmente na seção Opinião do Jornal do Commercio (PE).
Livros publicados: Versos Escolhidos (Ed. Pirata,1982, traduções);
Trinta Poemas e Dez Desenhos de Amor Viril (Pool Editorial Ltda., 1984,
traduções); Os Ritos da Perversão (Ed. Comunicarte,1991,poesias); Nus
(Ed.Comunicarte,1991, coletânea de poesias); Réquiem para Rodrigo N (Ed.do
Autor e digital, 2011, prosa e poesia); Poemas Homoeróticos Escolhidos (Ed.
digital,ISSUU, 2012); Os Ritos da Perversão e Outros Poemas (Ed.digital,
ISSUU, 2012). |