O convite para a simulação
A resposta a tudo isto, é claro, deveria vir de dentro dos países
pobres. Teríamos que ter agenda, própria, uma estratégia nossa. Forçados
a sobreviver no imediato vamos investindo naquilo que são chamadas as “sound policies”: o que é bom é privatizar, descentralizar, cumprir os
indicadores da macro-economia. Mesmo sabendo que isso corresponde a a
uma encenação para agradar aos doadores. É mais importante obedecer
cegamente a um valor estipulado para a taxa de inflacção do que criar
condições de emprego. Estamos produzindo um ambiente económico e
social propício para nos qualificarmos para mais ajuda, em vez de
criarmos um ambiente propício para o nosso desenvolvimento.
As palavras da moda vão-se sucedendo num léxico descartável:
“comunidades locais”, desenvolvimento sustentável, assuntos de géneros,
sociedade civil, povos indígenas, comunidades tribais. Nem sempre se
entende a substância concreta dessas palavras. Mas elas conduzem a um
jogo de sedução reciproca, a uma infindável encenação teatral. Não tarda
que nos nossos países – esses a quem se ordena que emagreçam o Estado –
surjam Ministérios para a Sociedade Civil, Ministérios das ONGs,
Ministérios para a Sustentabilidade.
Caros amigos,
Em 1984 eu estava na minha varanda quando vi chegar a tempestade. Na
altura não tinha nome, mas uma enorme ventania fez levantar poeiras no
chão e ondas no mar,
misturando granizo e vento, quebrando vidros, erguendo tectos,
espalhando destruição. Depois, o fenómeno levou nome, um nome de mulher
como convém a qualquer tempestade que se digne. A tempestade foi chamada
de DOMOINA. A minha angústia perante os destroços era: como nos vamos
reerguer, em plena guerra e no meio da maior miséria ? Mas a
solidariedade interna, ainda assim, deitou semente e colheu fruto. Os
apoios vieram de dentro e o país encontrou ainda força para se levantar.
Em pouco tempo, as feridas estavam curadas e cicatrizadas. Falamos aqui da cooperação de Moçambique com a Europa e com o Mundo. Mas
a primeira grande questão seria como é que Moçambique está cooperando
consigo mesmo? Como é que se promove o desenvolvimento a partir de
dentro? Este debate tem que ser conduzido dentro de África. Ele já está
nascendo com a emergência de jovens que não se satisfazem com o discurso
saturado da culpabilização dos outros sempre que analisa a situação
interna do continente. O maior desastre de África não é ser pobre mas
ter sido empobrecida pela aliança entre a mão exploradora de fora e a
mão conivente de dentro.
Trinta anos a pedir apoio cria uma dependência mental que anula o
espírito do 25 de Junho. Há toda uma geração de quadros que já raciocina
em função do que e a quem se vai pedir. Estamos criando Junhitos, gente
que se sonha doméstica e domesticada. O mais grave é que a reprodução
dos Junhitos se faz dentro de Moçambique, de forma endógena e indígena.
África não é o continente dos outros, um simples dever moral, um assunto
de retórica diplomática. É verdade que compete aos africanos
reconquistarem a sua
credibilidade como parceiros. Mas os africanos não poderão fazê-lo no
quadro actual da governação mundial. A verdadeira ajuda será não dar
mais mas lutarmos juntos, europeus e africanos, para mudar esta teia de
relações. Precisamos de uma ajuda que nos torne menos dependentes da
ajuda, temos que construir uma dependência progressivamente menos
dependente.
Por enquanto, o que vamos fazendo nós, doadores e receptores, é tocar a
duas mãos uma valsa que esconde uma irresolúvel agonia. No final, o
continente africano poderá ter mais algumas escolas, mais alguns
hospitais. Mas não terá gerado recursos próprios nem desenvolvido as
forças produtivas.
Há 30 anos os moçambicanos venceram um poderoso exército desencadeando
uma luta de pequenos grupos de guerrilha. Ainda hoje as vitórias que
conseguirmosserão por via dessa persistência guerrilheira. Não há
grandes soluções, grandes reviravoltas que façam endireitar o eixo da
Terra. A nossa soberania (e também a vossa soberania) está nessa fresta,
nesse intervalo. O que necessitamos é de um maior diálogo, maior
comparticipação e reciprocidade dos mecanismos de controle dos dinheiros
e dos compromissos assumidos. O que necessitamos é de nos tornarmos
parceiros de verdade.
Termino confessando-vos um sonho, um desejo. Os trinta anos de
Independência não são apenas um momento já vivido. São um tempo vivo
cujas potencialidades ainda se irão revelar por inteiro. O nosso
passado, desde 1975, é um futuro. Uma semente que está dando árvore.
Queremos ter direito à sombra dessa grande árvore. E queremos partilhar
essa promessa de felicidade com os nossos irmãos da Suíça. Porque também
eles, os suíços, nos ajudaram a semear esse futuro. MIA COUTO
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