Mar da Vida. Mar Da Morte. Vou ouvindo. Faixa a faixa, duna a duna, onda a onda. Vida. Morte. Vidamor. Que mais poderia apreender daqueles dois velhos discos de vinil, maior herança de minha mãe mortinha há pouco tempo e para sempre viva nestas Praias De Caymmi, salvações da minha infância, adolescência e de todas as transitoriedades da Vida Eterna? Debussy cobiçou o mar absoluto, mas foi Caymmi quem nos revelou algumas dessas praias mais esplendorosas, inconfundíveis, tão reais que até os jovens Beatles caminharam nelas. Lá onde tudo se colhe, tudo se pesca, e tudo é partilhado por todos. Irmão Sol, Irmã Lua e Irmã Morte, de que Francisco De Assis tanto nos falava, melhor se aprendem ali do que em qualquer igreja. Isso Caymmi me ensinou nas santíssimas praias da generosidade infinita. O disco toca. "Sargaço mar". Trevaluzes num indisfarçável blues valsante, onde já na abertura o rouco negror Caymmico em vocal a Louis Armstrong. Terrível espaço dos pescadores da morte que conduz à Iemanjá. Diante de tanta musicalidade fico a imaginar as infinitudes melódicas que visitaram-lhe a alma tão bem encarnada em sua rede. Quanta música entre ele e seu violão. Mas Dorival, santo pescador e conhecedor das nossas fomes espirituais, alimenta-nos apenas com a rara música das essências. O disco. Também tantas clarezas. "A Mãe D'Água e a menininha". Exemplo máximo da Simples Perfeição. Qualquer ser humano que saiba os acordes básicos do violão faria essa pequena fábula em linguagem totalmente infantil. Mas quando preciso de socorro, não é ao baú das ostensivas relíquias que vou, e sim a ela, a cançãozinha redentora. Salvador Dalí dizia odiar a simplicidade em todas as suas formas, mas noite dessas estava sentado na areia com Dorival, que lhe mostrava estrelas e luzeiros outros de uma noturna praia entre Port-Lligat da Espanha e o Abaeté de Salvador. Dalí, de tão singelamente agraciado estava trêmulo e molhado, de suor e mar, e segredou algumas coisinhas ao babalorixá Caymmi, que ria muito. Afinal os dois são crentes de um outro Salvador: Jesus, o Divino Garanhão Da Judéia. Ou alguém acredita num Cristo sem ereção, e gozo? E Dorival é simplesmente A Ereção, talvez o maior Épico da música baiana contemporânea. Mas o entranhável nele é tanta vida a brotar de tanta morte a brotar de tanta vidamor. A sagração de tudo o que vive e morre. Bebeu aquela ardente lágrima salgada e viu a dor desesperada em sua boca serenar. Por isso Dorival é Salvador. Da Bahia, de Dalí, dos peixes, de Bento, dos coqueirais, de João, das Rosas. E a Salvadora virtude nos oferta um "Vatapá", receita musical cantarolada até por Cristo no milagre da multiplicação dos pães e dos peixes. Porque se os milagres nascem do pouco, "com qualquer dez merréis e uma nega, oi, se faz um vatapá". E Jesus tinha lá suas negas, e brancas, e mestiças. Alguém duvida? Santa Marina De Caymmi me diz ter ficado nervosa quando Gil pintou sua face e borrou ela todinha, mas confessou ter exultado de vê-lo provar ao Brasil que a cultura é viva, e se cabível no ministério, também no canto de seu ministro. Bem, o disco. Acabou? Mãe D'Água voltou com minha mãe menininha em flor.
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