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MÁRIO MONTAUT..

Proseando livremente com Mário Montaut
Entrevista de Floriano Martins

Às voltas com Frank Zappa e a partir dele, um diálogo sem fronteiras em torno da liberdade e da criação no terreno da música nossa e dos outros de cada dia

Floriano Martins*
Especial para o Diário de Cuiabá

De onde puxar um fio de voz? Um fio de altíssima tensão interligando os sentidos. Estamos bem diante de Frank Zappa. É como se ele dissesse ao Berio, ao Stockhausen, mais: à música eletrônica, ao serialismo, e também ao rock: vejam só: há muito mais a ser feito, vejam o que se pode fazer com todos os insights que vocês carregam em si potencialmente. É um dínamo, como sugere um de seus personagens. Criou um mundo chamado Frank Zappa, e anulou toda a vida à volta. Quando se foi deixou um vazio impensável. O mesmo se deu com o Fernando Pessoa, e aqui recordo uma idéia da poeta portuguesa Rosa Alice Branco quando diz que Pessoa se insere na categoria dos grandes predadores, grandes terroristas. É bem possível que no Brasil se possa pensar em um Chico Buarque. Outro dia caminhava pelas ruas do Porto e me lembrava do Julinho da Adelaide, personagem criado pelo Chico para driblar a censura no regime militar. Mas também sempre penso no Hermeto Paschoal, pelo quanto de músicos que envolveu consigo, pela enorme abrangência de sua música. Claro que não teve o mesmo raio de influência dos três outros, mas vale mencioná-lo pela perspectiva cosmogônica. Também o Pessoa não viu, em vida, funcionar o que deixou rigorosamente preparado. Uma dia andei conversando com o músico Mário Montaut e descobrimos uma simpatia conjugada pelo Frank Zappa. Sugeri então que muitas coisas poderiam ser conversadas envolvendo os nomes todos aqui mencionados. Quando menos, isto seria diálogo entre um músico e um poeta, algo não muito comum em terras brasileiras. Vamos ver o resultado e desde já serão bem vindas quaisquer opiniões. Abraxas

FM A rigor o universo que abrange a música de Frank Zappa é tão vasto que se torna difícil saber por onde começar a evocá-lo. Que tal se começarmos pela música eletrônica? Para ele, muito do que se fazia sob este rótulo era insuportável, lixo, e o que mais observava a respeito é que o artista necessita “entender a sua tecnologia”. Crês que de alguma maneira a arte – a música, por exemplo – que nos é contemporânea esteja desprezando a percepção da tradição?  

MM Está sim, desprezando em absoluto a tradição. Um tilt na Net e voltamos para a Idade da Pedra. E não é só em música essa tendência, mas no comportamento, de forma geral. E essa máxima foi proferida por um amigo adolescente de meu filho, por um garoto de 17 anos. E de uma espontaneidade estarrecedora, aquela afirmação seguida de sinistros risos. Mas veja, por exemplo, quando o Zappa fala em o artista “entender a sua tecnologia”. A tecnologia musical, Floriano, já há muitas “Estações”, é das mais desenvolvidas. Apenas uma fugazinha, um brandemburgues de Bach são mais do que suficientes para tal percepção. A vivência de um acorde, a convivência de um músico com certas harmonias. Isso é necessário, é o entendimento íntimo das nossas tecnologias musicais. E a pesquisa, a brincadeira rítmica, claro, porque, e principalmente em se falando de Zappa, não há como pensarmos em seriedade e ludismo sem que esses termos se envolvam, profunda, graciosa, apaixonadamente. Há que se aventurar pelas brincadeiras, e há muito que se brincar nas maiores aventuras. Ouça Sleep Dirt (1978), com aqueles fraseados luminosos, sombrios, abissais, de um violão em estado de pura magia aplicada, e ouça aquela versão impagável do Bolero de Ravel. E muito do que Zappa achava insuportável na música eletrônica foi realizado num espírito “sério” (risos). Já ouvi muitas tentativas “eletrônicas” de conciliar Schoemberg, Stones e Noel. E, bem antes do término da audição, vem uma vontade irrefreável de aconselhar aos músicos do delito a ouvidinha em algo bem complexo, como, vejamos… uma Cantiga de Roda. Sério! Ali eles aprenderiam um mínimo da noção de forma. E não faltam adeptos das teorias do ruído, com todo um lixo sonoro realmente muito além do limiar de resistência de qualquer um. Lembro agora de Jazz From Hell (1986), que bela cópula de tecnologias! A resolução do dilema harmonia versus consonância versus ruído versus qualquer coisa, pode muito bem se dar num acorde composto de notas na guitarra, no sax, numa torcida de futebol, num orgasmo de baleia, num gogó em xingo ou reza… Soluções musicais bem humoradas para algumas enfadonhas questões teóricas mal compreendidas. Isso é música. E como isso é Zappa!

MM Zappa nos dá ainda exemplo em discos como Francesco Zappa (1984), onde recorre ao synclavier para sugerir novos acentos em um trio de cordas, e The Yellow Shark (1993), com os duetos de piano mesclados a um quinteto de cordas, compondo uma tessitura musical baseada em atonalidades e estranhezas rítmicas. Já no que diz respeito ao jorro inesgotável de soluções musicais, é possível encontrá-lo também no brasileiro Hermeto Pascoal, se concordas comigo, seja recorrendo a tecnologias ou fazendo uma fusão entre jazz e música instrumental brasileira. O que mais me chama a atenção no Hermeto, a propósito, é que não seja travado pelo deslumbramento diante dos recursos que têm à disposição, o que acaba sendo bastante comum em certos aspectos da cultura brasileira. Na música, acaso poderíamos pensar em um Arrigo Barnabé como bom exemplo dessa manifestação do que se poderia considerar provincianismo ou mesmo complexo de inferioridade. Hermeto seria assim um dos poucos exemplos do absolutely free evocado por Zappa.

 MM Retomo a questão do humor, sem o qual, em muitos casos, é quase impossível ouvir a modernidade musical a sério. E só com muitos risos mesmo, vocais, metálicos, instrumentais, a gente goza a delícia dessas incursões ao atonalismo, de volta pro rock, e do minimalismo ao jazz, e tantos outros ismos e delícias. Sinto no cosmopolitismo genuíno de Zappa uma forma altamente rica e prazerosa de se fruir certas complexidades modernas. Nela a gente consegue se divertir sem perder nunca o fio da atenção, o que nos leva a seguir as fábulas de uma prodigiosa imaginação musical. Zappa é americano, e nele a gente vê o quanto pode ser bom, às vezes, ser norte-americano e não padecer desses complexos aos quais você se refere, essa desalentadora realidade. Se ouvirmos, por exemplo, Diversões Eletrônicas, do Arrigo, que, original ou não, eu amo, como outras daquele disco, Clara Crocodilo, percebe-se que o que põe muito a perder é um típico sentimento de terceiro mundo, que nos torna deslumbrados, talvez, em excesso, diante de procedimentos absolutamente humanos, mesmo que superlativos. E então a coisa resvala pra uma seriedade, uma sisudez formal que em instante algum se ouve em Frank Zappa. Ele passeia por imensas florestas sonoras e apreende quase tudo, enquanto o Arrigo, no caso, frente a algumas espécies assaz intrigantes da flora musical contemporânea, fica deslumbrado à beira da rigidez, parece que alucina, e isso lhe dá um tipo de densidade que sua obra realmente não merecia, não merecia. Já no caso do Hermeto, ele até pode ser, como você diz, um exemplo do absolutely free, mas acredito haver aí uma enorme distinção. Hermeto é realmente de uma imaginação infinita, sua música felizmente não é nem um pouco impregnada desses arrogantes complexos, mas percebo, talvez erroneamente, que não existe em Hermeto nenhuma pretensão de ordem intelectual. Não vejo nisso um demérito, e a gente sabe o quanto ele é genial, o quanto conhece de música. No caso de Frank Zappa, porém, noto uma orientação de natureza filosófica, e não apenas em relação à música, mas a tudo quanto o cerca e que acaba por se incorporar à sua obra. Não sei o que você acha de tudo isso que estou dizendo, mas se não estiver equivocado demais, tal porém abre um abismo entre esses dois músicos. Quando enfatizei, a princípio, o extremado senso de humor zappeano, isso desde sempre me pareceu um fruto de um pensamento que de tão largo e profundo acaba fatalmente no humor. Não sobrevive sem ele. Num certo sentido acho Hermeto até mais livre que o Zappa, mas é neste que vislumbro, em bem maior intensidade, um grande diálogo da música com todo o universo cultural, que em instante algum exclui o instintivo. Zappa é um dos críticos mais terríveis e saudáveis que conheço. De qualquer modo, é fascinante a colocação que você faz do Hermeto, porque ela nos leva a pensar em música e muito mais. Até na própria noção que se tem de liberdade criativa. E suas relações com outras áreas.  

FM A história da música tem um abismo impressionante, pautado enganosamente pelo que chamas de “pretensão de ordem intelectual”. Evidente que Zappa teve uma percepção extraordinária acerca da influência que a música pop teria no mundo e tratou de meter-se com ela não somente para explorar todas as possibilidades musicais e tecnológicas como também para afirmar uma idéia. O Hermeto chamou para si outra preocupação, mas também com uma idéia bem definida: apontava no sentido de que as vozes musicais deviam se misturar e que não devíamos entender que nossa tradição musical (não me refiro, claro, unicamente ao universo da canção popular) estava aquém ou ausente do que se passava em outras instâncias. O deslumbramento de que falo acima tem sido um obstáculo imenso no desenho de uma cultura brasileira. Falas em preocupação filosófica, mas acaso não há filosofia em todos os sentidos com que nos relacionamos com o mundo? Não se pode dizer que não havia uma filosofia do sentir, de uma percepção desconcertante – daí sua ruptura – como a que encontramos em Hermeto. Que Zappa seja mais abrangente, isto sim, em termos. Pensemos no caso de um outro brasileiro: Egberto Gismonti. Logo no início chegou a compor alguns arremedos de canções sobre versos de Geraldo Carneiro, em seguida compreendendo que deveria atuar em outro universo. Parte desse repertório foi recuperado – em discos posteriores – sem as letras. Egberto, a exemplo de Jan Garbarek, tomou a tradição como veículo possível para o que tinha a afirmar. Mas não rompem tão vertiginosamente como fazem Hermeto e Zappa. Eu queria conversar sobre um aspecto que me interessa muito no Zappa, que é o desenho de vozes teatrais, a constituição de personagens etc. Mas antes queria indagar uma coisa a respeito da relação da música moderna (até onde se estende essa modernidade) com o fim da chamada tônica dominante que, de alguma maneira, tem a ver com o sentido de humor que defendes.

 MM Claro está que existe uma filosofia do sentir, de uma nova percepção, etc., mas digo que não sinto em Hermeto uma preocupação intelectual, e quando digo intelectual, vamos ao termo no que ele comporta de mais amplo, e sem pudores ou papas na língua. João Cabral de Melo Neto, Drummond, são poetas intelectuais, o que não é o caso de Luiz Melodia, Patativa do Assaré e tantos outros. Salvador Dalí é um artista plástico intelectualíssimo, e instintivo, o que não se pode dizer de Miró, e isso não diminui sua importância, pelo contrário, em outras condições ele não seria Miró. É fatal que se extrapole a questão da música para uma maior compreensão do que estamos dizendo. Não desmereço em nada o Hermeto, apenas tenho de reconhecer que ele não se relaciona com a cultura de sua época de um modo tão amplo como Zappa o fez. Entendo que o intelectualismo pode ter gerado uma série de mal-entendidos, de oportunismos, e de equívocos absurdos. Mas diria que mesmo o Arrigo, com todo o seu deslumbramento, tem um contato mais estreito com a cosmogonia de Zappa. Hermeto me parece um ser glorioso, possesso, cheio de um orgulho infinito por seus instintos poderosos e inteligentíssimos. E dou minha total razão a ele. Zappa continuou sendo um instintivo, e nele, o artista sobreviveu à aquisição de toda uma cultura que muito bem assimilada, acabou por lhe fortalecer as vísceras, o que infelizmente não ocorre com tanta freqüência. Seria tão mais saudável, se nós, brasileiros, admitíssemos as nossas inferioridades, se não criássemos, no lugar delas, complexos, de superioridade ou de inferioridade, e se acabássemos de vez com esses discursos insuportáveis, e proferidos desde sempre, de Oswald de Andrade a Tom Zé, sempre, sempre com a mesma tônica errônea, a de querer disfarçar nossas inevitáveis dívidas culturais. O Arrigo pertence a uma geração que prestou tributos excessivos ao que se chama de modernismo brasileiro, o que foi desastroso. Hermeto, por outro lado, como diria Tom Zé, “não teve medo de aprender na rua”, e nem nas escolas, nem nas embaixadas, digo eu. O Tom Zé fica anos estudando toda a cultura musical estrangeira em universidade de música e depois sai vomitando todas as mínimas que ouviu lá. E por mais que ele não assuma isso, sinto-o altamente xenófobo, como xenófobos se tornam, tristemente, tantos de nós. A música brasileira que mais me fascina é a dita popular, em melhores termos, aquela situada no universo da canção, e a dos chorões, a que tem uma profunda intimidade com o homem da rua, que ama o samba, o frevo, os botequins, o cordel, o carnaval, e amaria, se lhe fosse possível, todas as maravilhas universais que inaceitavelmente alguns tentam barrar. Como cantava Noel em “Positivismo (ou Araruta)”: “O amor vem por princípio, a ordem por base, e o progresso é que deve vir por fim, esqueceste esta lei de Augusto Comte, e foste ser feliz longe de mim”. Foi o que fizeram os Beatles, ao esquecerem o postulado de teóricos dodecafônicos que proclamavam a falência do sistema tonal, e terem criado algumas das mais indeléveis melodias que a História da Música conheceu. Eles, Zappa, Fernando Pessoa, Dalí, Miró, Jobim, e todos os que evitaram a Tônica Dominante da burrice que ainda nos assola.  

FM Confirmo tuas palavras todas, por verdadeiras e precisas. Um verso como este de Noel, sem saudosismo algum, é algo que tem feito enorme falta, tanto à canção brasileira quanto à poesia livresca. Boa parte de nossos poetas padece de certa disfagia, e uso o termo já que muitos se viciaram tanto na deglutição evocada pela antropofagia. Enfim, é gente com certa disfunção orgânica, que não sabe se alimentar de seu próprio tempo. Acho bom que fales na xenofobia do Tom Zé, mas que não nos esqueçamos que o que é xenofobia nele e em simpatizantes de um Patativa do Assaré, equivale à xenofilia de um Haroldo de Campos e séqüito de epígonos que ainda perduram entre nós. Mas vamos a essa relação curiosa que acaso se poderia traçar entre Frank Zappa e Fernando Pessoa, no que diz respeito a uma heteronímia, habilmente construída nos dois, embora declarada ou percebida apenas no poeta português. Pessoa desenhou personagens que até se opuseram entre si, cada um constituindo estilo próprio, idiossincrasias particulares etc. No caso de Zappa temos um elenco de personagens que, se observados em conjunto, constituem todo um núcleo social, o arcabouço de um estrato caótico de uma sociedade, a estadunidense. Em cada um desses personagens – The Duke of Prunes, Harry the Beast, Flower Punk, The Idiot Bastard Son, Eletric Aunt Jemina, Mr. Green Genes, Willie the Pimp, Magdalena, Billy the Mountain, Bobby Brown, Disco Boy, The Illinois Enema Bandit, Jewish Princess – vai sendo articulado o discurso de uma crítica corrosiva ao way of life estadunidense.  

MM Tudo o que dissemos traz-me inevitavelmente à lembrança um pouco de “Samba do Criolo Doido” (risos). E por mais que o tal “samba” universal, às vezes pareça esculhambar ”o critério”, não há mais como nos livrarmos dessa cadência num caos que pode ser até instigante, evitando-se as xenofobias, xenofilias e afins. Agora, você tocou num ponto mágico: a heteronímia. Talvez um dos desdobramentos mais impressionantes dessa bruxaria do Fernando Pessoa, possa ser contemplado, em música, nas canções de Chico Buarque, que também nunca ”assumiu” a heteronímia. Mas todos sabemos que Chico Buarque são muitos, e muitas. Sob o “cronista”, o “trovador”, o “político”, entre outros rótulos, ocultam-se diversas individualidades que revelam a prática despersonalizante, a força rítmica, melódica, da palavra cantada. A poética, então, atinge uma densidade emotiva incomparável. Mas ali estamos nos domínios da canção, com toda a gama de possibilidades e limitações que ela comporta. Já em Zappa, músico superdotado, esse fenômeno é apreendido de maneira amplamente diversa. Gostaria que você comentasse um pouco mais esse universo de personagens, e como sente, percebe a atuação deles no discurso musical de Frank Zappa.  

FM Acho que nosso samba sincopado seria bem recebido pelo Zappa. Imaginemos a patética situação de um kamikaze quando em pleno vôo de morte falha o motor e não há como atingir o alvo ou sequer como retornar. Por vezes olho a maneira como, no Brasil, toda uma faixa criativa, uma parcela a priori sensível de uma cultura, vem reagindo aos próprios impulsos, como toda uma sociedade artística se mostra, como estão todos reagindo em função de mercado, pensando da maneira mais frívola, enfim: não há mais ação, uma atitude surpreendente, tudo é ajuste contratual e ajuste sempre em favor do contratante. A despersonalização, por sua vez, não é sinalização de autismo. A afirmação esnobe de um ego comporta mais isolamento do que a despersonalização quando esta mergulha no sem nome para fazer emergir uma compreensão de aspectos que nos identificam, que nos são comuns. Evidente que isto está muito presente no caso do universo poético de um Chico Buarque. A maneira como ele é “muitos e muitas” é uma coisa interessante. Observe que, no geral, as pessoas lêem – não os críticos, não os acumuladores de teses vazias – Fernando Pessoa como sendo o mesmo em qualquer heterônimo. Todos somos influenciados apenas por Pessoa, sobretudo os que negam tal influência. Claro que a evidência de uma obra está diretamente ligada ao raio de sua influência. Contudo, evidência não quer dizer importância, é certo. Há evidências frustrantes. Como entender que Francisco Mignone tenha influenciado bem menos os músicos brasileiros do que Villa-Lobos? Como entender o esquecimento em que caiu toda a obra de Abel Ferreira? Como entender que raramente se fale entre nós de Camargo Guarnieri? Desta maneira é que ninguém toca no aspecto da despersonalização na poética de Chico Buarque, pelo simples fato de que somos corruptíveis pelo ego, somos uma cultura de aparências, onde raramente a visão aprofundada da realidade tem uma compreensão, o entendimento de uma maneira de ser. Frank Zappa é uma referência muito cara ao nosso diálogo justamente por essa ausência de ruptura que se verifica na cultura brasileira. Quem rompe com o que em todo um itinerário de nossa criação artística? Não temos alguém que tenha sido tão cáustico na crítica ao way of life brasileiro, e não me venha ninguém dizer que o jeitinho brasileiro não equivale de alguma maneira ao way of life estadunidense. Pessoa expôs toda uma sociedade, entre afirmação, chacota e recusa, percebeu maneiras distintas de tratar de cada assunto. É um caso extremo de despersonalização no sentido de afirmação de algo bem maior, na arte, do que um gozo de umbigo. Zappa esteve no mesmo fio, percebeu o quanto era (e a situação piora) ágrafa a sociedade que se estava implantando nos Estados Unidos. Ironizava-a, de todo modo, mas sem perder a conexão com uma perspectiva visceral da existência humana. Zappa é uma espécie de último grande romântico ativo. Neste sentido, Chico Buarque se aproxima dele. É interessante que seja nome ligado a teatro, música, romance. Há uma ruptura natural de gêneros e bem antes de todo esse modismo atual que não faculta senão o que pode haver de mais amorfo e danoso em qualquer expressão artística.  

MM E já não apenas o nosso samba sincopado, cairia bem ao Zappa, mas também esse tipo de pensamento musical exposto de forma tão efetiva, muito o animaria, creio. Há coisas que acredito estarem definitivamente sob os domínios da música, e à minha indagação de suas percepções nas mudanças do discurso musical de Frank Zappa, você foi autenticamente musical. Tivesse jogado com especificidades estruturais e imensas possibilidades de diálogo estariam perdidas. Mas noto que você, com bastante ginga, soube transportar algumas sutilezas discursivas desse grande artista para esta deliciosa conversa, e isso é música, no melhor estilo Frank Zappa, sendo ela agora partilhada por quem realmente nos acompanha, em sua generosa magnificência, e não em fastidiosos deliriozinhos estruturalóides que não convencem a ninguém. Sinto que essas reflexões, que levam um piloto kamikaze, Francisco Mignone e Chico Buarque por american ways e jeitinhos brasileiros de se evitar abismos do Pessoa, são também genuínos modos de vivenciarmos aqui, com certo suingue, um pouquinho da bruxaria de Frank Zappa. Concordo com o sentido literal e metafórico de várias afirmações que você acaba de suingar, porém, mais do que o sentido, cativa-me a fluida musicalidade de um pensamento em total sintonia com “Filthy habits”, “Sleep dirt”, “The ocean is the ultimate solution”, algumas das obras que acabo de ouvir – Sleep Dirt! Amo esse álbum – trouxeram-me também suas palavras, a lembrança de outro disco, The Grand Wazoo, que toca nesse ponto antimusical, justamente através de alguns personagens: “The questions”. E paralelamente me vem uma singelíssima frase proferida por Chico Buarque numa entrevista: “O crítico, critica apenas a letra. A música, ele não consegue criticar.” Essas palavrinhas, sem a mínima intenção de provocar embates metafísicos, denunciam, em sua singeleza, todo o peso de um ”jeitinho de viver” que inviabiliza qualquer troca de experiências em música e poesia, você não acha?   

FM Corre-se aí o risco de inviabilizar uma sensibilidade crítica para perceber o que se passa com a canção, não mais separando letra e música. Entendo a procedência da observação do Chico Buarque e esta se aplica a uma circunstância. Por mais que se adaptem romances para o cinema ou que se ponham música em poemas, cinema não é romance nem canção é poesia. Trata-se de outra linguagem e os mídias deveriam ajudar na compreensão dessas fusões de novas linguagens, abrindo espaço para críticos que tenham a compreensão desse universo sempre em movimento. Em qualquer parte se pode observar certa obsolescência na crítica que se pratica no tocante à criação artística. No caso da música, é comum a presença de uns críticos judiciosos que são guardiões supremos de seus preconceitos em relação a dois aspectos: a obsessão pelo novo a qualquer custo e o desprezo por tudo aquilo que venha a ferir uma tradição dada como cristalizada, intocável. Duas faces da mesma moeda, sim. Eu reforçaria o que disse Chico Buarque com uma frase do Zappa: “Aos diabos com todos os jornalistas de caneta na mão”. Também os jornalistas têm que tratar de viver. E sobretudo não podem ser uma gente frustrada, que trate a arte como projeção ou vingança em relação ao que jamais conseguiriam ser. Tua observação a respeito do meu improviso jazzístico em torno do samba sincopado é uma delícia, Mário, porque estava mesmo a pensar em um disco do Zappa: Make a jazz noise here (1988), onde uma ironia cortante afiança que não há arte além da vida. O que há de invenção em Zappa conjuga-se vertiginosamente com o que há de provocação. Ouvi-lo apenas é uma fragmentação, pois havia toda uma presença cênica a partilhar a trama estética. Não à toa, compôs peças desconcertantes dentro do âmbito burlesco, como 200 Motels (1970), ou peças para orquestra como Lumpy Gravy (1968) e Joe’s Garage (1979), que ele próprio chamava de atos musicais, e não se pode esquecer o impacto provocado pela apresentação do Mothers of Invention no Fillmore East em 1971, aquela “oral history”, segundo Zappa, em que soube somar todas as influências (Varèse, teatro do absurdo, blues, sua crítica mordaz ao flower power etc.), ao mesmo tempo em que criava uma cena teatral absolutamente atípica, músicos funcionando como personagens ativos, rejeição a toda manifestação psicodélica que caracterizava a época, sim, Zappa era um contestador ciente dos riscos de ser confundido, em certo âmbito, com um reacionário, porque percebia muito bem o dirigismo dessa onda de liberdade que evocava a América. Nos anos 70 enfrentou dificuldades enormes, rejeições de gravadoras, aventuras frustradas na criação de selo particular, contratos não descumpridos etc. Ao contrário de um Carlos Santana, músico de importância indiscutível nessa mesma ambientação, Zappa jamais se deixou seduzir pelo estrelato de fim de carreira como tem sido o caso deplorável do mexicano. Arte é atitude, sim. Zappa disse isto com todos os acordes e rejeição a acordos.  

MM As observações de Frank Zappa (“Aos diabos com todos os jornalistas de caneta na mão”) e de Chico Buarque (“O crítico critica a letra, a música ele não consegue criticar”), ao que percebo, são totalmente consonantes e de acordo com o que você pensa, porque elas não ofendem a liberdade crítica, e sim a falta dela, na maioria dos que escrevem sobre arte. E um universo sempre em movimento, pressupõe mobilidade do pensamento para a sua apreensão, o que não é o caso, por exemplo, de um Décio Pignatari que, ao se deparar com uma canção que “não tem nada de novo, mas é extremamente bela” como “O Cantador”, de Dori Caymmi, aproveita-se da situação para brincar de aplicações baratas de alguns dogmas mais do que questionáveis de Ezra Pound. No caso, ele diz que o resultado obtido na composição se deu pela utilização de “signos velhos”, e temos aí uma das audições mais débeis possíveis de uma canção. Reconhecer a extrema beleza de algo que não tem nada de novo é para mim um contrasenso. Uma canção é que nem pessoa, ela está viva, e se você encontra alguém num bar, conversa, toma uma cerveja com essa pessoa, é impossível dizer que não existe ali nada de novo, o que seria tentar provar a inexistência do encontro. E o mesmo se dá em música. E que ninguém venha afirmar que nesses domínios o ensaísta, o crítico tem razão ao afirmar que o belo não precisa ter nada de novo para ser belo. Isso é impossível. Aos diabos com essa prática estruturalista que impede a percepção da vida, e que aniquila a si mesma numa simples colocação como essa do Décio Pignatari. Que se separe música de letra, que se junte, que se faça tudo o que pode e deve ser feito, mas impossível não lembrar a esta altura em que toda uma prática de aproximação com a música, com a pintura, que foi maravilhosamente desenvolvida por Baudelaire, Oscar Wilde, seja arremessada a um cesto de lixo, como sendo matéria fétida, “comentários impressionistas” diriam o Décio e seus pupilos. A grande música verbal de Baudelaire, seja sobre o “Tannhauser” de Wagner, seja sobre aquelas telas num salão de exposições parisiense; a doçura e o sarcasmo de Wilde regando “As Flores do Mal”, de Baudelaire, ou justificando, e com muita antecedência, a imoralidade esplêndida de um Fernando Pessoa, em “A Decadência da Mentira”; isto sim é fazer crítica. E fazer arte. Você fala que as mídias deveriam abrir espaço para críticos mais aptos a compreenderem um universo em mudança constante. Mas tal universo pressupõe uma mobilidade de pensamento impensável em gente que toma como padrões, esses escribas que defendem a tradição cristalizada e o novo pelo novo, sem sequer se darem conta de que o que hoje se chama de “Invenção”, não é nada além do que a mais cristalizada das tradições recentes. Hoje o mundo gira muito, muito rápido. É preciso, antes de tudo, comunicar esta realidade a quem se mete a escrever sobre arte. Infelizmente a realidade é dura demais para ser deglutida sem altas doses de humor. Zappa teve de atacar, e com toda a razão, os dementes da contracultura que liam Carlos Castañeda, aliás, o grande Carlos Castañeda, e a lição mais notória que nos deram de suas incursões pelas propostas transcendentes desse pensador gigante, felizmente resgatado por Fellini, era sair mundo afora a catar cogumelo em bosta de burro. E com isso afastavam o magnífico “Tales of Power” de certos círculos, na mesma medida em que acadêmicos assustavam hippies com Karl Marx, esse outro crítico essencial. E não obstante todas essas parlapatices ripongas, as décadas de 60 e 70 nos legaram coisas da maior substancialidade. Hoje, no terceiro milênio, adolescentes brasileiros com alguma informação cultural, estão ouvindo Led Zeppelin, Pink Floyd, Beatles, Milton, Lô Borges, Djavan. Saudosismo? E muitos pais desses adolescentes torcem o nariz à simples menção de qualquer coisa que lembre psicodelismo, década de 70. Zappa é também fruto dessa época, por mais saudavelmente rebelde que tenha sido com seu tempo, romântico, como ele. De um romantismo ingênuo que, comportando heranças surrealistas muitas vezes hiperdiluídas, conspirava no entanto pelo nosso direito de sonhar. Que entendam o que digo como nostalgia, tudo bem, mas uma nostalgia que reivindica em cada célula, em cada átomo, a nossa atávica necessidade de sonhar. Talvez a atitude mais surrealista do século XX, daquelas que Breton e Dalí, juntos, não conceberiam, seja essa: Frank Zappa candidato à presidência dos Estados Unidos. Essa simples imagem: é ou não é Arte de Invenção?  

FM Tuas observações são muito oportunas neste sentido em que vamos perdendo o miolo por fascinação pela casca. Há uma grande tradição de língua inglesa que inclui tanto cummings quanto Wallace Stevens, tanto Ginsberg quanto Dylan Thomas, tanto Edgar O’Hara quanto Robert Graves. E no Brasil encalhamos com os olhos estupefatos diante do que chamas de “dogmas mais do que questionáveis” de Mr. Pound, ingenuamente sujeitados pelos caprichos das cartilhas, carentes de vida própria. Tanta debilidade existencial me irrita, Mário. Nosso diálogo naturalmente requer uma mesa mais ampla, mais tempo (todo o infinito) para seguir viagem por desdobramentos inesgotáveis. Gostaria, no entanto, de repisar algo. Lembremos que o Bernardo Soares (Livro do Desassossego) era tido pelo Fernando Pessoa como uma mutilação de si mesmo, condição que ele não dispensava aos demais heterônimos. Veja bem que a escrita do Bernardo Soares reflete uma fragmentação em estado limite. Evidente que a matriz da mutilação/fragmentação era o próprio Pessoa. Caberia indagar de que maneira estes aspectos se mostram tanto em Zappa quanto em Chico Buarque. Como a dissociação de personalidade age em cada um. É naturalmente assunto que não se esgota aqui, apenas sugere uma reflexão acerca, leitura distinta entre si inclusive, centelhas que estimulam a pensar que a criação artística não poderia mesmo se limitar a mero jogo de palavras, ainda que saturado de sentidos, como equivocamente se entende em nossa tradição beletrista, essa linha que atravessa todo o século XX praticamente sem livrar-se do parnasianismo. Como observar a si próprio no pleno ato da escrita? Quem o faz? Pessoa, Zappa, Buarque? Como se cria hoje? De que maneira um poeta, um letrista de canção, um dramaturgo, um roteirista de cinema, não consegue romper com certo casulo existencial, uma alegoria do ego, e perceber certa transfiguração que será ponte indispensável para que se relacione consigo mesmo e com seu tempo, ir e vir, circulação livre, mão no leme e aceitação da deriva? De outra maneira não haverá o que inventar.  

MM Floriano, você acaba de perguntar: “como observar a si próprio no ato da escrita”? E também retoma o Fernando Pessoa referindo-se ao Bernardo Soares como “uma mutilação de si”. Em outra passagem desta conversa, você afirma que Zappa teria sido ”o último romântico ativo”. Justamente quando todos lamuriam, alardeiam suas conversações com o próprio umbigo (como tristemente o fez Lenine, em “Falange Canibal”), essas pseudo contestações nos deixam entrever um drama ainda maior, o de quem não entra mais em contato consigo, e conseqüentemente perde a essência de todo o real, que só pode ser apreendido pelo indivíduo, e não por membros de comunidades artísticas, religiosas, políticas. Todos os criadores acerca dos quais falamos possuem a marca da profunda individualidade, em vias de interdição quase absoluta no universo contemporâneo. Lembro o Denys Arcand (Invasões Bárbaras) nas páginas amarelas da última Veja. Ele acha que estamos adentrando uma Idade Média moderna, onde teremos um acervo incomensurável a ser redescoberto daqui a sabe-se lá quantas gerações. Embora acredite que isso possa ser ao menos parcialmente revertido, tenho a íntima convicção de que não ocorrerá um processo civilizatório real, sem o resgate dessa imensa turma que trouxemos para esta conversa. Nossa grande aventura é o Redescobrimento do Indivíduo. Talvez alguns astronautas tenham deveras posto os pés na lua, mas os influxos lunares que mais nos inspiram continuam nas noites de candomblé e no Clair de Lune, na resistência ingênua de simples cidadãos que ainda crêem ter sido a conquista da lua, uma fraude da mídia. Certos mitos da ignorância são tão saudáveis como a sabedoria de um Zappa, de um Pessoa, que tentaram, e ainda tentam, através de nós, a construção de todas as pontes necessárias, no ser humano, no Cosmos. É imprescindível que o homem cante, que o homem fale, contra toda a massa amorfa de cínicos intelectuais calados em cima dos Muros da Grande Estupidez. E não há mísseis que bastem para tantas Muralhas da Burrice. Ouço agora, “The ocean is the ultimate solution”. E concordo com o Zappa, uma de nossas últimas melhores tentativas.

 

MÁRIO MONTAUT é brasileiro, paulistano, de ascendência italiana, espanhola, indígena, moura, francesa e outras. Desenvolve uma sequência de composições que vêm à luz, já em dois trabalhos: "Bela Humana Raça", Dabliú, 1999, e "Mário Montaut: Samba De Alvrakélia", a sair nos próximos dias pelo selo MBBmusic. São muitos anos de vivências artísticas, num panorama que inclui Dorival Caymmi, René Magritte, Manoel De Barros, João Cabral De Melo Neto, Borges, Chico, Caetano, Gil, Dalí, Fellini, Buñuel, Webern, Cartola, Breton, Blavatsky e muitos amores mais, indispensáveis à sua criação, que abarca, além das canções, poemas, textos, roteiros e outras coisas interessantes. Mário Montaut é basicamente um parceiro de todos os seus contemporâneos e ascendentes, humanos ou não, saibam eles ou não. Índios, Negros, Europeus, Sem-terra, Brisas, Baleias, Maremotos, Chuvas, Livros, Discos, Beijos e Trovões Em Todas As Roseiras. Atualmente grava um disco de parcerias suas com o poeta Floriano Martins, onde a talentosíssima intérprete Ana Lee canta grande parte do repertório. Mário Montaut é um pouco de tudo isso. E muito mais, com certeza, pode ser descoberto em seus discos lançados, em suas tantas canções já gravadas, poemas, textos, e múltiplos achados.