FM A rigor o universo que abrange a música de
Frank Zappa é tão vasto que se torna difícil
saber por onde começar a evocá-lo. Que tal se
começarmos pela música eletrônica? Para ele,
muito do que se fazia sob este rótulo era
insuportável, lixo, e o que mais observava a
respeito é que o artista necessita “entender a
sua tecnologia”. Crês que de alguma maneira a
arte – a música, por exemplo – que nos é
contemporânea esteja desprezando a percepção da
tradição?
MM Está sim, desprezando em absoluto a tradição.
Um tilt na Net e voltamos para a Idade da
Pedra. E não é só em música essa tendência, mas
no comportamento, de forma geral. E essa máxima
foi proferida por um amigo adolescente de meu
filho, por um garoto de 17 anos. E de uma
espontaneidade estarrecedora, aquela afirmação
seguida de sinistros risos. Mas veja, por
exemplo, quando o Zappa fala em o artista
“entender a sua tecnologia”. A tecnologia
musical, Floriano, já há muitas “Estações”, é
das mais desenvolvidas. Apenas uma fugazinha, um
brandemburgues de Bach são mais do que
suficientes para tal percepção. A vivência de um
acorde, a convivência de um músico com certas
harmonias. Isso é necessário, é o entendimento
íntimo das nossas tecnologias musicais. E a
pesquisa, a brincadeira rítmica, claro, porque,
e principalmente em se falando de Zappa, não há
como pensarmos em seriedade e ludismo sem que
esses termos se envolvam, profunda, graciosa,
apaixonadamente. Há que se aventurar pelas
brincadeiras, e há muito que se brincar nas
maiores aventuras. Ouça Sleep Dirt
(1978), com aqueles fraseados luminosos,
sombrios, abissais, de um violão em estado de
pura magia aplicada, e ouça aquela versão
impagável do Bolero de Ravel. E muito do
que Zappa achava insuportável na música
eletrônica foi realizado num espírito “sério”
(risos). Já ouvi muitas tentativas “eletrônicas”
de conciliar Schoemberg, Stones e Noel. E, bem
antes do término da audição, vem uma vontade
irrefreável de aconselhar aos músicos do delito
a ouvidinha em algo bem complexo, como, vejamos…
uma Cantiga de Roda. Sério! Ali eles aprenderiam
um mínimo da noção de forma. E não faltam
adeptos das teorias do ruído, com todo um lixo
sonoro realmente muito além do limiar de
resistência de qualquer um. Lembro agora de
Jazz From Hell (1986), que bela cópula de
tecnologias! A resolução do dilema harmonia
versus consonância versus ruído
versus qualquer coisa, pode muito bem se dar
num acorde composto de notas na guitarra, no sax,
numa torcida de futebol, num orgasmo de baleia,
num gogó em xingo ou reza… Soluções musicais bem
humoradas para algumas enfadonhas questões
teóricas mal compreendidas. Isso é música. E
como isso é Zappa!
MM Zappa nos dá ainda exemplo em discos como
Francesco Zappa (1984), onde recorre ao
synclavier para sugerir novos acentos em um trio
de cordas, e The Yellow Shark (1993), com os
duetos de piano mesclados a um quinteto de
cordas, compondo uma tessitura musical baseada
em atonalidades e estranhezas rítmicas. Já no
que diz respeito ao jorro inesgotável de
soluções musicais, é possível encontrá-lo também
no brasileiro Hermeto Pascoal, se concordas
comigo, seja recorrendo a tecnologias ou fazendo
uma fusão entre jazz e música instrumental
brasileira. O que mais me chama a atenção no
Hermeto, a propósito, é que não seja travado
pelo deslumbramento diante dos recursos que têm
à disposição, o que acaba sendo bastante comum
em certos aspectos da cultura brasileira. Na
música, acaso poderíamos pensar em um Arrigo
Barnabé como bom exemplo dessa manifestação do
que se poderia considerar provincianismo ou
mesmo complexo de inferioridade. Hermeto seria
assim um dos poucos exemplos do absolutely free
evocado por Zappa.
MM
Retomo a questão do humor, sem o qual, em muitos
casos, é quase impossível ouvir a modernidade
musical a sério. E só com muitos risos mesmo,
vocais, metálicos, instrumentais, a gente goza a
delícia dessas incursões ao atonalismo, de volta
pro rock, e do minimalismo ao jazz, e tantos
outros ismos e delícias. Sinto no cosmopolitismo
genuíno de Zappa uma forma altamente rica e
prazerosa de se fruir certas complexidades
modernas. Nela a gente consegue se divertir sem
perder nunca o fio da atenção, o que nos leva a
seguir as fábulas de uma prodigiosa imaginação
musical. Zappa é americano, e nele a gente vê o
quanto pode ser bom, às vezes, ser
norte-americano e não padecer desses complexos
aos quais você se refere, essa desalentadora
realidade.
Se ouvirmos, por exemplo, Diversões
Eletrônicas, do Arrigo, que, original ou
não, eu amo, como outras daquele disco, Clara
Crocodilo, percebe-se que o que põe muito a
perder é um típico sentimento de terceiro mundo,
que nos torna deslumbrados, talvez, em excesso,
diante de procedimentos absolutamente humanos,
mesmo que superlativos. E então a coisa resvala
pra uma seriedade, uma sisudez formal que em
instante algum se ouve em Frank Zappa. Ele
passeia por imensas florestas sonoras
e apreende quase tudo, enquanto o Arrigo, no
caso, frente a algumas espécies assaz
intrigantes da flora musical contemporânea, fica
deslumbrado à beira da rigidez, parece que
alucina, e isso lhe dá um tipo de densidade que
sua obra realmente não merecia, não merecia. Já
no caso do Hermeto, ele até pode ser, como você
diz, um exemplo do absolutely free, mas
acredito haver aí uma enorme distinção. Hermeto
é realmente de uma imaginação infinita, sua
música felizmente não é nem um pouco impregnada
desses arrogantes complexos, mas percebo, talvez
erroneamente, que não existe em Hermeto nenhuma
pretensão de ordem intelectual. Não vejo nisso
um demérito, e a gente sabe o quanto ele é
genial, o quanto conhece de música. No caso de
Frank Zappa, porém, noto uma orientação de
natureza filosófica, e não apenas em relação à
música, mas a tudo quanto o cerca e que acaba
por se incorporar à sua obra. Não sei o que você
acha de tudo isso que estou dizendo, mas se não
estiver equivocado demais, tal porém abre um
abismo entre esses dois músicos. Quando
enfatizei, a princípio, o extremado senso de
humor zappeano, isso desde sempre me pareceu um
fruto de um pensamento que de tão largo e
profundo acaba fatalmente no humor. Não
sobrevive sem ele. Num certo sentido acho
Hermeto até mais livre que o Zappa, mas é neste
que vislumbro, em bem maior intensidade, um
grande diálogo da música com todo o universo
cultural, que em instante algum exclui o
instintivo. Zappa é um dos críticos mais
terríveis e saudáveis que conheço. De qualquer
modo, é fascinante a colocação que você faz do
Hermeto, porque ela nos leva a pensar em música
e muito mais. Até na própria noção que se tem de
liberdade criativa. E suas relações com outras
áreas.
FM A história da música tem um abismo
impressionante, pautado enganosamente pelo que
chamas de “pretensão de ordem intelectual”.
Evidente que Zappa teve uma percepção
extraordinária acerca da influência que a música
pop teria no mundo e tratou de meter-se com ela
não somente para explorar todas as
possibilidades musicais e tecnológicas como
também para afirmar uma idéia. O Hermeto chamou
para si outra preocupação, mas também com uma
idéia bem definida: apontava no sentido de que
as vozes musicais deviam se misturar e que não
devíamos entender que nossa tradição musical
(não me refiro, claro, unicamente ao universo da
canção popular) estava aquém ou ausente do que
se passava em outras instâncias. O
deslumbramento de que falo acima tem sido um
obstáculo imenso no desenho de uma cultura
brasileira. Falas em preocupação filosófica, mas
acaso não há filosofia em todos os sentidos com
que nos relacionamos com o mundo? Não se pode
dizer que não havia uma filosofia do sentir, de
uma percepção desconcertante – daí sua ruptura –
como a que encontramos em Hermeto. Que Zappa
seja mais abrangente, isto sim, em termos.
Pensemos no caso de um outro brasileiro: Egberto
Gismonti. Logo no início chegou a compor alguns
arremedos de canções sobre versos de Geraldo
Carneiro, em seguida compreendendo que deveria
atuar em outro universo. Parte desse repertório
foi recuperado – em discos posteriores – sem as
letras. Egberto, a exemplo de Jan Garbarek,
tomou a tradição como veículo possível para o
que tinha a afirmar. Mas não rompem tão
vertiginosamente como fazem Hermeto e Zappa. Eu
queria conversar sobre um aspecto que me
interessa muito no Zappa, que é o desenho de
vozes teatrais, a constituição de personagens
etc. Mas antes queria indagar uma coisa a
respeito da relação da música moderna (até onde
se estende essa modernidade) com o fim da
chamada tônica dominante que, de alguma maneira,
tem a ver com o sentido de humor que defendes.
MM
Claro está que existe uma filosofia do sentir,
de uma nova percepção, etc., mas digo que não
sinto em Hermeto uma preocupação intelectual, e
quando digo intelectual, vamos ao termo no que
ele comporta de mais amplo, e sem pudores ou
papas na língua. João Cabral de Melo Neto,
Drummond, são poetas intelectuais, o que não é o
caso de Luiz Melodia, Patativa do Assaré e
tantos outros. Salvador Dalí é um artista
plástico intelectualíssimo, e instintivo, o que
não se pode dizer de Miró, e isso não diminui
sua importância, pelo contrário, em outras
condições ele não seria Miró. É fatal que se
extrapole a questão da música para uma maior
compreensão do que estamos dizendo. Não
desmereço em nada o Hermeto, apenas tenho de
reconhecer que ele não se relaciona com a
cultura de sua época de um modo tão amplo como
Zappa o fez. Entendo que o intelectualismo pode
ter gerado uma série de mal-entendidos, de
oportunismos, e de equívocos absurdos. Mas diria
que mesmo o Arrigo, com todo o seu
deslumbramento, tem um contato mais estreito com
a cosmogonia de Zappa. Hermeto me parece um ser
glorioso, possesso, cheio de um orgulho infinito
por seus instintos poderosos
e inteligentíssimos. E dou minha total razão a
ele. Zappa continuou sendo um instintivo,
e nele, o artista sobreviveu à aquisição de toda
uma cultura que muito bem assimilada, acabou
por lhe fortalecer as vísceras, o que
infelizmente não ocorre com tanta freqüência.
Seria tão mais saudável, se nós, brasileiros,
admitíssemos as nossas inferioridades, se não
criássemos, no lugar delas, complexos, de
superioridade ou de inferioridade, e se
acabássemos de vez com esses discursos
insuportáveis, e proferidos desde sempre, de
Oswald de Andrade a Tom Zé, sempre, sempre com a
mesma tônica errônea, a de querer disfarçar
nossas inevitáveis dívidas culturais. O Arrigo
pertence a uma geração que prestou tributos
excessivos ao que se chama de modernismo
brasileiro, o que foi desastroso. Hermeto, por
outro lado, como diria Tom Zé, “não teve medo de
aprender na rua”, e nem nas escolas, nem nas
embaixadas, digo eu. O Tom Zé fica anos
estudando toda a cultura musical estrangeira em
universidade de música e depois sai vomitando
todas as mínimas que ouviu lá. E por mais que
ele não assuma isso, sinto-o altamente xenófobo,
como xenófobos se tornam, tristemente, tantos de
nós. A música brasileira que mais me fascina é a
dita popular, em melhores termos, aquela situada
no universo da canção, e a dos chorões, a que
tem uma profunda intimidade com o homem da rua,
que ama o samba, o frevo, os botequins, o
cordel, o carnaval, e amaria, se lhe fosse
possível, todas as maravilhas universais que
inaceitavelmente alguns tentam barrar. Como
cantava Noel em “Positivismo (ou Araruta)”: “O
amor vem por princípio, a ordem por base, e o
progresso é que deve vir por fim, esqueceste
esta lei de Augusto Comte, e foste ser feliz
longe de mim”. Foi o que fizeram os Beatles, ao
esquecerem o postulado de teóricos dodecafônicos
que proclamavam a falência do sistema tonal, e
terem criado algumas das mais indeléveis
melodias que a História da Música conheceu.
Eles, Zappa, Fernando Pessoa, Dalí, Miró, Jobim,
e todos os que evitaram a Tônica Dominante da
burrice que ainda nos assola.
FM Confirmo tuas palavras todas, por
verdadeiras e precisas. Um verso como este de
Noel, sem saudosismo algum, é algo que tem feito
enorme falta, tanto à canção brasileira quanto à
poesia livresca. Boa parte de nossos poetas
padece de certa disfagia, e uso o termo já que
muitos se viciaram tanto na deglutição evocada
pela antropofagia. Enfim, é gente com certa
disfunção orgânica, que não sabe se alimentar de
seu próprio tempo. Acho bom que fales na
xenofobia do Tom Zé, mas que não nos esqueçamos
que o que é xenofobia nele e em simpatizantes de
um Patativa do Assaré, equivale à xenofilia de
um Haroldo de Campos e séqüito de epígonos que
ainda perduram entre nós. Mas vamos a essa
relação curiosa que acaso se poderia traçar
entre Frank Zappa e Fernando Pessoa, no que diz
respeito a uma heteronímia, habilmente
construída nos dois, embora declarada ou
percebida apenas no poeta português. Pessoa
desenhou personagens que até se opuseram entre
si, cada um constituindo estilo próprio,
idiossincrasias particulares etc. No caso de
Zappa temos um elenco de personagens que, se
observados em conjunto, constituem todo um
núcleo social, o arcabouço de um estrato caótico
de uma sociedade, a estadunidense.
Em cada um desses personagens – The Duke of
Prunes, Harry the Beast, Flower Punk, The Idiot
Bastard Son, Eletric Aunt Jemina, Mr. Green
Genes, Willie the Pimp, Magdalena, Billy the
Mountain, Bobby Brown, Disco Boy, The Illinois
Enema Bandit, Jewish Princess – vai sendo
articulado o discurso de uma crítica corrosiva
ao way of life estadunidense.
MM
Tudo o que dissemos traz-me inevitavelmente à
lembrança um pouco de “Samba do Criolo Doido”
(risos). E por mais que o tal “samba” universal,
às vezes pareça esculhambar ”o critério”, não há
mais como nos livrarmos dessa cadência num caos
que pode ser até instigante, evitando-se as
xenofobias, xenofilias e afins. Agora, você
tocou num ponto mágico: a heteronímia. Talvez um
dos desdobramentos mais impressionantes dessa
bruxaria do Fernando Pessoa, possa ser
contemplado, em música, nas canções de Chico
Buarque, que também nunca ”assumiu” a heteronímia.
Mas todos sabemos que Chico Buarque são muitos,
e muitas. Sob o “cronista”, o “trovador”, o
“político”, entre outros rótulos, ocultam-se
diversas individualidades que revelam a prática
despersonalizante, a força rítmica, melódica, da
palavra cantada. A poética, então, atinge uma
densidade emotiva incomparável. Mas ali estamos
nos domínios da canção, com toda a gama de
possibilidades e limitações que ela comporta. Já
em Zappa, músico superdotado, esse fenômeno é
apreendido de maneira amplamente diversa.
Gostaria que você comentasse um pouco mais esse
universo de personagens, e como sente, percebe a
atuação deles no discurso musical de Frank Zappa.
FM Acho que nosso samba sincopado seria bem
recebido pelo Zappa. Imaginemos a patética
situação de um kamikaze quando em pleno vôo de
morte falha o motor e não há como atingir o alvo
ou sequer como retornar. Por vezes olho a
maneira como, no Brasil, toda uma faixa
criativa, uma parcela
a priori
sensível de uma cultura, vem reagindo aos
próprios impulsos, como toda uma sociedade
artística se mostra, como estão todos reagindo
em função de mercado, pensando da maneira mais
frívola, enfim: não há mais ação, uma atitude
surpreendente, tudo é ajuste contratual e ajuste
sempre em favor do contratante. A
despersonalização, por sua vez, não é
sinalização de autismo. A afirmação esnobe de um
ego comporta mais isolamento do que a
despersonalização quando esta mergulha no sem
nome para fazer emergir uma compreensão de
aspectos que nos identificam, que nos são
comuns. Evidente que isto está muito presente no
caso do universo poético de um Chico Buarque. A
maneira como ele é “muitos e muitas” é uma coisa
interessante. Observe que, no geral, as pessoas
lêem – não os críticos, não os acumuladores de
teses vazias – Fernando Pessoa como sendo o
mesmo em qualquer heterônimo. Todos somos
influenciados apenas por Pessoa, sobretudo os
que negam tal influência. Claro que a evidência
de uma obra está diretamente ligada ao raio de
sua influência. Contudo, evidência não quer
dizer importância, é certo. Há evidências
frustrantes. Como entender que Francisco Mignone
tenha influenciado bem menos os músicos
brasileiros do que Villa-Lobos? Como entender o
esquecimento em que caiu toda a obra de Abel
Ferreira? Como entender que raramente se fale
entre nós de Camargo Guarnieri? Desta maneira é
que ninguém toca no aspecto da despersonalização
na poética de Chico Buarque, pelo simples fato
de que somos corruptíveis pelo ego, somos uma
cultura de aparências, onde raramente a visão
aprofundada da realidade tem uma compreensão, o
entendimento de uma maneira de ser. Frank Zappa
é uma referência muito cara ao nosso diálogo
justamente por essa ausência de ruptura que se
verifica na cultura brasileira. Quem rompe com o
que em todo um itinerário de nossa criação
artística? Não temos alguém que tenha sido tão
cáustico na crítica ao way of life brasileiro, e
não me venha ninguém dizer que o jeitinho
brasileiro não equivale de alguma maneira ao way
of life estadunidense. Pessoa expôs toda uma
sociedade, entre afirmação, chacota e recusa,
percebeu maneiras distintas de tratar de cada
assunto. É um caso extremo de despersonalização
no sentido de afirmação de algo bem maior, na
arte, do que um gozo de umbigo. Zappa esteve no
mesmo fio, percebeu o quanto era (e a situação
piora) ágrafa a sociedade que se estava
implantando nos Estados Unidos. Ironizava-a, de
todo modo, mas sem perder a conexão com uma
perspectiva visceral da existência humana. Zappa
é uma espécie de último grande romântico ativo.
Neste sentido, Chico Buarque se aproxima dele. É
interessante que seja nome ligado a teatro,
música, romance. Há uma ruptura natural de
gêneros e bem antes de todo esse modismo atual
que não faculta senão o que pode haver de mais
amorfo e danoso em qualquer expressão artística.
MM E já não apenas o nosso samba sincopado,
cairia bem ao Zappa, mas também esse tipo de
pensamento musical exposto de forma tão efetiva,
muito o animaria, creio. Há coisas que acredito
estarem definitivamente sob os domínios da
música, e à minha indagação de suas
percepções nas mudanças do discurso musical de
Frank Zappa, você foi autenticamente musical.
Tivesse jogado com especificidades estruturais e
imensas possibilidades de diálogo estariam
perdidas. Mas noto que você, com bastante ginga,
soube transportar algumas sutilezas discursivas
desse grande artista para esta deliciosa
conversa, e isso é música, no melhor estilo
Frank Zappa, sendo ela agora partilhada por quem
realmente nos acompanha, em sua generosa
magnificência, e não em fastidiosos
deliriozinhos estruturalóides que não convencem
a ninguém. Sinto que essas reflexões, que levam
um piloto kamikaze, Francisco Mignone e Chico
Buarque por american ways e jeitinhos
brasileiros de se evitar abismos do Pessoa, são
também genuínos modos de vivenciarmos aqui, com
certo suingue, um pouquinho da bruxaria de Frank
Zappa. Concordo com o sentido literal e
metafórico de várias afirmações que você acaba
de suingar, porém, mais do que o sentido,
cativa-me a fluida musicalidade de um
pensamento em total sintonia com “Filthy habits”,
“Sleep dirt”, “The ocean is the ultimate
solution”, algumas das obras que acabo de ouvir
– Sleep Dirt! Amo esse álbum –
trouxeram-me também suas palavras, a lembrança
de outro disco, The Grand Wazoo, que toca
nesse ponto antimusical, justamente através de
alguns personagens: “The questions”.
E paralelamente me vem uma singelíssima frase
proferida por Chico Buarque numa entrevista: “O
crítico, critica apenas a letra. A música, ele
não consegue criticar.” Essas palavrinhas, sem a
mínima intenção de provocar embates
metafísicos, denunciam, em sua singeleza, todo o
peso de um ”jeitinho de viver”
que inviabiliza qualquer troca de experiências
em música e poesia, você não acha?
FM Corre-se aí o risco de inviabilizar uma
sensibilidade crítica para perceber o que se
passa com a canção, não mais separando letra e
música. Entendo a procedência da observação do
Chico Buarque e esta se aplica a uma
circunstância. Por mais que se adaptem romances
para o cinema ou que se ponham música em poemas,
cinema não é romance nem canção é poesia.
Trata-se de outra linguagem e os mídias deveriam
ajudar na compreensão dessas fusões de novas
linguagens, abrindo espaço para críticos que
tenham a compreensão desse universo sempre em
movimento. Em qualquer parte se pode observar
certa obsolescência na crítica que se pratica no
tocante à criação artística. No caso da música,
é comum a presença de uns críticos judiciosos
que são guardiões supremos de seus preconceitos
em relação a dois aspectos: a obsessão pelo novo
a qualquer custo e o desprezo por tudo aquilo
que venha a ferir uma tradição dada como
cristalizada, intocável. Duas faces da mesma
moeda, sim. Eu reforçaria o que disse Chico
Buarque com uma frase do Zappa: “Aos diabos com
todos os jornalistas de caneta na mão”. Também
os jornalistas têm que tratar de viver. E
sobretudo não podem ser uma gente frustrada, que
trate a arte como projeção ou vingança em
relação ao que jamais conseguiriam ser. Tua
observação a respeito do meu improviso
jazzístico em torno do samba sincopado é uma
delícia, Mário, porque estava mesmo a pensar em
um disco do Zappa: Make a jazz noise here
(1988), onde uma ironia cortante afiança que não
há arte além da vida. O que há de invenção em
Zappa conjuga-se vertiginosamente com o que há
de provocação. Ouvi-lo apenas é uma
fragmentação, pois havia toda uma presença
cênica a partilhar a trama estética. Não à toa,
compôs peças desconcertantes dentro do âmbito
burlesco, como 200 Motels (1970), ou peças para
orquestra como Lumpy Gravy (1968) e Joe’s Garage
(1979), que ele próprio chamava de atos
musicais, e não se pode esquecer o impacto
provocado pela apresentação do Mothers of
Invention no Fillmore East em 1971, aquela “oral
history”, segundo Zappa, em que soube somar
todas as influências (Varèse, teatro do absurdo,
blues, sua crítica mordaz ao flower power etc.),
ao mesmo tempo em que criava uma cena teatral
absolutamente atípica, músicos funcionando como
personagens ativos, rejeição a toda manifestação
psicodélica que caracterizava a época, sim,
Zappa era um contestador ciente dos riscos de
ser confundido, em certo âmbito, com um
reacionário, porque percebia muito bem o
dirigismo dessa onda de liberdade que evocava a
América. Nos anos 70 enfrentou dificuldades
enormes, rejeições de gravadoras, aventuras
frustradas na criação de selo particular,
contratos não descumpridos etc. Ao contrário de
um Carlos Santana, músico de importância
indiscutível nessa mesma ambientação, Zappa
jamais se deixou seduzir pelo estrelato de fim
de carreira como tem sido o caso deplorável do
mexicano. Arte é atitude, sim. Zappa disse isto
com todos os acordes e rejeição a acordos.
MM As observações de Frank Zappa (“Aos diabos
com todos os jornalistas de caneta na mão”) e de
Chico Buarque (“O crítico critica a letra, a
música ele não consegue criticar”), ao que
percebo, são totalmente consonantes e de acordo
com o que você pensa, porque elas não ofendem a
liberdade crítica, e sim a falta dela, na
maioria dos que escrevem sobre arte. E um
universo sempre em movimento, pressupõe
mobilidade do pensamento para a sua apreensão, o
que não é o caso, por exemplo, de um Décio
Pignatari que, ao se deparar com uma canção que
“não tem nada de novo, mas é extremamente bela”
como “O Cantador”, de Dori Caymmi, aproveita-se
da situação para brincar de aplicações baratas
de alguns dogmas mais do que questionáveis de
Ezra Pound. No caso, ele diz que o resultado
obtido na composição se deu pela utilização de
“signos velhos”, e temos aí uma das audições
mais débeis possíveis de uma canção. Reconhecer
a extrema beleza de algo que não tem nada de
novo é para mim um contrasenso. Uma canção é que
nem pessoa, ela está viva, e se você encontra
alguém num bar, conversa, toma uma cerveja com
essa pessoa, é impossível dizer que não existe
ali nada de novo, o que seria tentar provar a
inexistência do encontro. E o mesmo se dá em
música. E que ninguém venha afirmar que nesses
domínios o ensaísta, o crítico tem razão ao
afirmar que o belo não precisa ter nada de novo
para ser belo. Isso é impossível. Aos diabos com
essa prática estruturalista que impede a
percepção da vida, e que aniquila a si mesma
numa simples colocação como essa do Décio
Pignatari. Que se separe música de letra, que se
junte, que se faça tudo o que pode e deve ser
feito, mas impossível não lembrar a esta altura
em que toda uma prática de aproximação com a
música, com a pintura, que foi maravilhosamente
desenvolvida por Baudelaire, Oscar Wilde, seja
arremessada a um cesto de lixo, como sendo
matéria fétida, “comentários impressionistas”
diriam o Décio e seus pupilos. A grande música
verbal de Baudelaire, seja sobre o “Tannhauser”
de Wagner, seja sobre aquelas telas num salão de
exposições parisiense; a doçura e o sarcasmo de
Wilde regando “As Flores do Mal”, de Baudelaire,
ou justificando, e com muita antecedência, a
imoralidade esplêndida de um Fernando Pessoa, em
“A Decadência da Mentira”; isto sim é fazer
crítica. E fazer arte. Você fala que as mídias
deveriam abrir espaço para críticos mais aptos a
compreenderem um universo em mudança constante.
Mas tal universo pressupõe uma mobilidade de
pensamento impensável em gente que toma como
padrões, esses escribas que defendem a tradição
cristalizada e o novo pelo novo, sem sequer se
darem conta de que o que hoje se chama de
“Invenção”, não é nada além do que a mais
cristalizada das tradições recentes. Hoje o
mundo gira muito, muito rápido. É preciso, antes
de tudo, comunicar esta realidade a quem se mete
a escrever sobre arte. Infelizmente a realidade
é dura demais para ser deglutida sem altas doses
de humor. Zappa teve de atacar, e com toda a
razão, os dementes da contracultura que liam
Carlos Castañeda, aliás, o grande Carlos
Castañeda, e a lição mais notória que nos deram
de suas incursões pelas propostas transcendentes
desse pensador gigante, felizmente resgatado por
Fellini, era sair mundo afora a catar cogumelo
em bosta de burro. E com isso afastavam o
magnífico “Tales of Power” de certos círculos,
na mesma medida em que acadêmicos assustavam
hippies com Karl Marx, esse outro crítico
essencial. E não obstante todas essas
parlapatices ripongas, as décadas de 60 e 70 nos
legaram coisas da maior substancialidade. Hoje,
no terceiro milênio, adolescentes brasileiros
com alguma informação cultural, estão ouvindo
Led Zeppelin, Pink Floyd, Beatles, Milton, Lô
Borges, Djavan. Saudosismo? E muitos pais desses
adolescentes torcem o nariz à simples menção de
qualquer coisa que lembre psicodelismo, década
de 70. Zappa é também fruto dessa época, por
mais saudavelmente rebelde que tenha sido com
seu tempo, romântico, como ele. De um romantismo
ingênuo que, comportando heranças surrealistas
muitas vezes hiperdiluídas, conspirava no
entanto pelo nosso direito de sonhar. Que
entendam o que digo como nostalgia, tudo bem,
mas uma nostalgia que reivindica em cada célula,
em cada átomo, a nossa atávica necessidade de
sonhar. Talvez a atitude mais surrealista do
século XX, daquelas que Breton e Dalí, juntos,
não conceberiam, seja essa: Frank Zappa
candidato à presidência dos Estados Unidos. Essa
simples imagem: é ou não é Arte de Invenção?
FM Tuas observações são muito oportunas neste
sentido em que vamos perdendo o miolo por
fascinação pela casca. Há uma grande tradição de
língua inglesa que inclui tanto cummings quanto
Wallace Stevens, tanto Ginsberg quanto Dylan
Thomas, tanto Edgar O’Hara quanto Robert Graves.
E no Brasil encalhamos com os olhos estupefatos
diante do que chamas de “dogmas mais do que
questionáveis” de Mr. Pound, ingenuamente
sujeitados pelos caprichos das cartilhas,
carentes de vida própria. Tanta debilidade
existencial me irrita, Mário. Nosso diálogo
naturalmente requer uma mesa mais ampla, mais
tempo (todo o infinito) para seguir viagem por
desdobramentos inesgotáveis. Gostaria, no
entanto, de repisar algo. Lembremos que o
Bernardo Soares (Livro do Desassossego) era tido
pelo Fernando Pessoa como uma mutilação de si
mesmo, condição que ele não dispensava aos
demais heterônimos. Veja bem que a escrita do
Bernardo Soares reflete uma fragmentação em
estado limite. Evidente que a matriz da
mutilação/fragmentação era o próprio Pessoa.
Caberia indagar de que maneira estes aspectos se
mostram tanto em Zappa quanto em Chico Buarque.
Como a dissociação de personalidade age em cada
um. É naturalmente assunto que não se esgota
aqui, apenas sugere uma reflexão acerca, leitura
distinta entre si inclusive, centelhas que
estimulam a pensar que a criação artística não
poderia mesmo se limitar a mero jogo de
palavras, ainda que saturado de sentidos, como
equivocamente se entende em nossa tradição
beletrista, essa linha que atravessa todo o
século XX praticamente sem livrar-se do
parnasianismo. Como observar a si próprio no
pleno ato da escrita? Quem o faz? Pessoa, Zappa,
Buarque? Como se cria hoje? De que maneira um
poeta, um letrista de canção, um dramaturgo, um
roteirista de cinema, não consegue romper com
certo casulo existencial, uma alegoria do ego, e
perceber certa transfiguração que será ponte
indispensável para que se relacione consigo
mesmo e com seu tempo, ir e vir, circulação
livre, mão no leme e aceitação da deriva? De
outra maneira não haverá o que inventar.
MM Floriano, você acaba de perguntar: “como
observar a si próprio no ato da escrita”? E
também retoma o Fernando Pessoa referindo-se ao
Bernardo Soares como “uma mutilação de si”. Em
outra passagem desta conversa, você afirma que Zappa teria
sido ”o último romântico ativo”. Justamente
quando todos lamuriam, alardeiam suas
conversações com o próprio umbigo (como
tristemente o fez Lenine, em “Falange Canibal”),
essas pseudo contestações nos deixam entrever um
drama ainda maior, o de quem não entra mais em
contato consigo, e conseqüentemente perde a
essência de todo o real, que só pode ser
apreendido pelo indivíduo, e não por membros de
comunidades artísticas, religiosas, políticas.
Todos os criadores acerca dos quais falamos
possuem a marca da profunda individualidade, em
vias de interdição quase absoluta no universo
contemporâneo. Lembro o Denys Arcand (Invasões
Bárbaras) nas páginas amarelas da última
Veja. Ele acha que estamos adentrando uma
Idade Média moderna, onde teremos um acervo
incomensurável a ser redescoberto daqui a
sabe-se lá quantas gerações. Embora acredite que
isso possa ser ao menos parcialmente revertido,
tenho a íntima convicção de que não ocorrerá um
processo civilizatório real, sem o resgate dessa
imensa turma que trouxemos para esta conversa.
Nossa grande aventura é o Redescobrimento do
Indivíduo. Talvez alguns astronautas tenham
deveras posto os pés na lua, mas os influxos
lunares que mais nos inspiram continuam nas
noites de candomblé e no Clair de Lune,
na resistência ingênua de simples cidadãos que
ainda crêem ter sido a conquista da lua, uma
fraude da mídia. Certos mitos da ignorância são
tão saudáveis como a sabedoria de um Zappa, de
um Pessoa, que tentaram, e ainda tentam, através
de nós, a construção de todas as pontes
necessárias, no ser humano, no Cosmos. É
imprescindível que o homem cante, que o homem
fale, contra toda a massa amorfa de cínicos
intelectuais calados em cima dos Muros da Grande
Estupidez. E não há mísseis que bastem para
tantas Muralhas da Burrice. Ouço agora, “The
ocean is the ultimate solution”. E concordo com
o Zappa, uma de nossas últimas melhores
tentativas.
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