Acabei de esquecer no CDP (Centro de Detenção Provisória) de Vila Independência, em São Paulo, SP, um livrinho que amo: "Caos, Criatividade e o Retorno do Sagrado". Pior é que está esgotado. Livro de cabeceira que me ajuda mais a refletir sobre tanto que tenho feito do que muitos livros de arte, discos. Reflexões acerca da Teoria do Caos, por três figuras deliciosas. Um matemático, um físico, um biólogo. Já liguei pro CDP e ninguém diz Ter encontrado o livro. Se não encontro vira obsessão. Sei disso porque são triálogos do cacete. E embora nada de essencial tenha se perdido, o livro físico justifica essas essências que começam por delinear muito do incogitável, inconcebível ainda. Dizia Borges que só existem os Paraísos Perdidos mesmo. Então, namoradas que nos deixaram, discos, países, e nesse caso, livros perdidos, que bobear viram sonhos. Então, estou meio sozinho, e na ausência caótica passo a imaginar se é saudável, penso que é, amarmos obras que são... nossas??? Algumas falando de solidão, e curiosamente feitas a partir de vivências de grande plenitude, felicidade mesmo, e que resultam, tristes, embora de uma tristeza vigorosa, de um rigor lírico incomum, como no caso, "Divino Só", gravada no álbum "Bela Humana Raça", e "Ingatiaia", gravada no cd "Samba de Alvrakélia". É tanta solidão que toca em todo mundo, aliás, acaba por tocar em todo canto do planeta, e eu, tendo de trabalhar nas ruas, encontro gente, de todo tipo, e ainda que tendo de fazer visitas a Centros de Detenção Provisória, cultivo a felicidade das ruas e do contato amplo, com muita, muita gente, e sou tão feliz por isso, pelo vivo das ruas, que dedico a toda a trama conjurada para o esquecimento do meu livrinho, a letra de "Divino Só":
DIVINO SÓ
Canto silêncios há eternos sóis
Lanço ao abismo meus dominós
Pinto no alto de um céu irmão
Vermelhidão belinda
Invento o fogo de infernos reis
Benzo a bonança e cem mil vulcões
Dragões e corvos na minha mão
Gira Terra me esquece
Ao torpor das canas
Tomba sol me enaltece
Ao pingar das chamas
Desce musa me adoce
Ao tremor das plumas
Grilos ouçam minha prece
Ao vibrar na mutação
Sou tão deus quando sozinho
E adeus e adeus vou indo
Descongela cerejeira e vem
Dizer amém pro dia
Sou tão deus e sou caminho
E adeus e adeus vou indo
Desencanta a feira inteira e zen
Dizer ah! vem poesia
Míngua lua me enlouquece
Ao terror das Índias
Pomba-Gira me agradece
Ao cismar das linhas
Brilha estrela me enternece
Ao verdor das pulgas
Vênus ouça minha prece
Ao errar na translação
Sou tão deus quando sozinho
E adeus e adeus vou indo
Descongela cerejeira e vem
Dizer amém pro dia
Sou tão deus e sou caminho
E adeus e adeus vou indo
Desencanta a feira inteira e zen
Dizer ah! vem poesia
Crio rosários de infindos nós
Extrema benção extrema unção
Anjos e porcos na minha mão
(Mário Montaut- cd "Bela Humana Raça")
sim, dedico a toda a trama desse esquecimento, sejam pastéis de feira, cervejas, moças flertadas, melodias pedindo para serem quase adivinhadas nos acordes brotando da mais densa alegria, e palavras soltas, conversas intensas sobre os mais banais e eternos temas, em lugares do anonimato que nos brinda, fertiliza com a generosidade das vivências que nos dão, ali no âmago de solidões hiperpovoadas, canções como esta outra:
INGATIAIA
Voando a imensidão de Ingatiaia
Eterna ao sol é cio de pio em pio
De vez em quando o império é vã mortalha
E o canto dela flui por aí...
Voando a solidão de Ingatiaia
Compõe canção que o mundo não ouviu
De vez em quando vê Maracangalha
E o canto dela flui por aí...
Vai cantando, vai subindo
E voando assim
Vai cantando, vai florindo
E voando assim
Vai cantando, vai subindo
E voando assim
Vai cantando, vai tinindo
E voando assim
Voando a sagração de Ingatiaia
É pena que o castelo não a viu
De vez em quando bica a muralha
E o canto dela flui por aí...
(Mário Montaut- cd "Samba de Alvrakélia")
Salve Caymmi de Maracangalha, que assanha a ave que voa por Ingatiaia, e todos os labirintos de São Paulo, onde certamente, num cantinho, haverá de estar meu livro "Caos, Criatividade e o Retorno do Sagrado", que legitima, inclusive, a possibilidade de se amar o que se faz, sabendo não fazermos nada sozinhos. E quem puder que leia a obra que jamais esquecerei, e ouça as duas músicas que dedico a todos os seres em comunhão de solidões eróticas, ardentes, partilháveis. Com um beijo do Mário a todos.