Cinismo a gente acreditar que pode ver, ouvir, a "obra em si"; se é que ela existe. Nas ditas obras-primas vivenciamos toda inteligência e sensibilidade nelas projetadas pelas décadas, pelos séculos e suas multidões; e não raro, o valor projetado ultrapassa em demasia quaisquer outros valores. Quem ouve a "Quinta Sinfonia", de Beethoven, ou "Foi Um Rio Que Passou Em Minha Vida", de Paulinho da Viola? Ninguém.
O imaginário, que misteriosamente se funde ao real, e que também é o real, se torna maravilha intransponível, e milagre desfrutável. Mais, muito mais que a obra, tadinha dela! Crer numa transcendência humana que leve às essências da arte, é leviandade dos pouco vivos. As obras geniais o são por serem célebres. Gênio é sempre um consenso que brilha. Fenômeno Coletivo. O resto são meras hipóteses da Beleza. Mas como ainda há quem busque a Beleza na Fonte, sugiro aos responsáveis pelo Prêmio Visa, que atentem para estes versos de Fernando Pessoa:
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia.
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
E que, relativizando a dimensão dos rios, percebam o absurdo de inserirem canções quase domínio-público num festival de inéditas.
(Mário Montaut- que não se inscreveu no Prêmio Visa)
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MÁRIO MONTAUT é brasileiro, paulistano, de ascendência italiana, espanhola, indígena, moura, francesa e outras. Desenvolve uma sequência de composições que vêm à luz, já em dois trabalhos: "Bela Humana Raça", Dabliú, 1999, e "Mário Montaut: Samba De Alvrakélia", a sair nos próximos dias pelo selo MBBmusic. São muitos anos de vivências artísticas, num panorama que inclui Dorival Caymmi, René Magritte, Manoel De Barros, João Cabral De Melo Neto, Borges, Chico, Caetano, Gil, Dalí, Fellini, Buñuel, Webern, Cartola, Breton, Blavatsky e muitos amores mais, indispensáveis à sua criação, que abarca, além das canções, poemas, textos, roteiros e outras coisas interessantes. Mário Montaut é basicamente um parceiro de todos os seus contemporâneos e ascendentes, humanos ou não, saibam eles ou não. Índios, Negros, Europeus, Sem-terra, Brisas, Baleias, Maremotos, Chuvas, Livros, Discos, Beijos e Trovões Em Todas As Roseiras. Atualmente grava um disco de parcerias suas com o poeta Floriano Martins, onde a talentosíssima intérprete Ana Lee canta grande parte do repertório. Mário Montaut é um pouco de tudo isso. E muito mais, com certeza, pode ser descoberto em seus discos lançados, em suas tantas canções já gravadas, poemas, textos, e múltiplos achados. |