Philosophie et modernité dans l’oeuvre poétique
d’António Ramos Rosa é uma publicação
resultante da tese académica sobre o poeta português que Jorge Augusto
Maximino defendeu na Universidade de Paris IV-Sorbonne em 2009. Como
Silvina Rodrigues Lopes salienta logo no início do prefácio que escreveu
para esta publicação editada em Paris quatro anos mais tarde, Jorge
Maximino mergulhou no pensamento filosófico da modernidade ocidental para
oferecer uma exegese detalhada da poesia e poética do grande poeta
português que é António Ramos Rosa. Ramos Rosa, a quem alguém chamou já
“poeta cúmplice da filosofia”, prestou também particular atenção a muitos
dos filósofos que Maximino convoca para reflectir acerca do entendimento
que o poeta desoculta na sua obra sobre o ser, o tempo, o espaço, a
modernidade, a língua, o sujeito, a alteridade, o poético, a estética, a
representação, a criação, a origem. Citar aqui alguns desses filósofos
dar-nos-á uma ideia do vasto âmbito teórico do estudo de Maximino.
Maximino traz consigo, entre outros, Kant, Hegel, Husserl, Nietzsche,
Kierkgaard, Weber, Freud, Sartre, Heidegger, Lacan, Bachelard, Deleuze,
Lyotard, Foucault, Merleau-Ponty, Derrida, Ricoeur, Lévinas. E ainda, como
não poderia deixar de ser, o nosso Eduardo Lourenço, um filósofo e um
leitor arguto de poesia – e da poesia de Ramos Rosa muito em particular.
Embora a
extensa bibliografia apresentada pelo autor indique um amplo conhecimento
das análises crítico-literárias existentes sobre o poeta, em Portugal e no
estrangeiro, Maximino está menos preocupado em dialogar com a já vasta
crítica rosiana, de que de resto dá escrupulosamente conta, do que em
construir, a meu ver correctamente, o seu próprio pensamento sobre Ramos
Rosa através das fontes filosóficas da modernidade que lhe são mais
congeniais e que, em seu entender, são de igual modo mais congeniais ao
seu objecto de estudo. Sem, evidentemente, deixar de lado a própria
escrita teórica e crítica de António Ramos Rosa sobre o poético e a arte
em vários volumes de ensaios: Poesia, liberdade livre (1962), título a evocar a
liberté libre de Rimbaud e de
que eu destacaria “A poesia e o humano” e o envolvimento do poeta com o
surrealismo; os dois volumes de A
poesia moderna e a interrogação do real (1979, 1980),
Incisões oblíquas (1987), em que
o poeta se debruça sobre poesia portuguesa contemporânea); e
A parede azul (1991), em que
trata das relações entre a poesia e as artes plásticas (e não esqueçamos,
como Maximino bem salienta, que Ramos Rosa se notabilizou igualmente como
desenhador de grande mérito).
A estrutura
muito cuidada de Philosophie et
modernité dans l’oeuvre poétique d’António Ramos Rosa facilita a
leitura de um livro cujas dimensões e fundamentação científica poderiam
tender a intimidar um público mais alargado.
O livro consta de duas partes, por sua vez divididas em quatro
capítulos, cada uma dessas partes antecedidas de uma introdução
substancial e rematadas por uma breve mas esclarecedora conclusão. Aliás,
cada um dos capítulos fecha sempre com uma brevíssima conclusão, que muito
pedagogicamente ajuda a pôr em ordem as ideias anteriormente absorvidas. O
mesmo se dirá, por maioria de razões, da conclusão que encerra o estudo.
Se articularmos esta conclusão final com a introdução geral que inicia o
livro, ficaremos de posse das coordenadas teóricas e críticas que orientam
o pensamento deste atento e bem informado leitor de Ramos Rosa ao longo
das duas partes principais do corpo do trabalho: na primeira delas, o
autor debruça-se sobre o pensamento estético-filosófico da modernidade
ocidental, traçando pertinentes relações entre o discurso filosófico e o
discurso poético, com especial ênfase nas problemáticas do tempo, do
sujeito, da alteridade e da morte, dando assim conta do que nesta tradição
se entende por “modernidade”; na segunda, com uma epígrafe de Proust a
presidir-lhe (L’oeuvre d’art est le
seul moyen de nous faire retrouver le temps perdu [100]), Maximino
contextualiza social e politicamente o poeta António Ramos Rosa,
sublinhando o empenhamento explícito dos primeiros poemas contra a
ditadura e salientando o seu envolvimento posterior com as repressões mais
subtis da língua que nos obrigam a falar (e que o poeta des-fala em seus
poemas). Procede, de seguida, com minúcia, a uma análise fenomenológica da
imensa obra poética de Ramos Rosa, desde
O grito claro (1958) até A
rosa intacta (2007). Assim, depois de comentar o primeiro empenhamento
social do poeta (o qual lhe chegou a custar brevemente a liberdade),
Maximino debruça-se sobre o compromisso do poeta com a língua (112), nesse
processo desvelando a experiência estética da temporalidade que, em seu
entender, funda a dimensão ontológica da poesia rosiana.
Percebemos logo
no início da tese (24) que Maximino parte à descoberta do poético em Ramos
Rosa com base na experiência do tempo e da língua, e da relação social e
ontológica entre os dois; mais adiante entendemos também quão importante é
para este estudioso de Ramos Rosa a resistência milenar da poesia à
racionalidade ocidental cimentada por Platão e Aristóteles. Parafraseio da
conclusão do livro de Maximino: a obra poética de Ramos Rosa constitui-se
enquanto ruptura contra o lugar da razão na modernidade e contra o
pensamento lógico-representativo (323). De
facto, Ramos Rosa falou muitas vezes com ironia dos críticos “muito
representativos”, esses que se empenham em decifrar o “sentido” do poema
na sua relação mimética linear com o real. (Como quando os nossos alunos
escrevem nas suas provas de exame, “o que o poeta quis dizer foi…”)
A verdade é
que a poesia lírica, e é dessa que aqui falamos, não é representação, como
bem explica a “lógica da metáfora” de Hart Crane.[1]
Muito menos é a poesia filosofia. E muito menos ainda se deixa a poesia
colonizar pela filosofia. Claro que por “poesia” não quero dizer versos
com metro e rima, e nenhum poeta da nossa modernidade melhor para o
demonstrar do que António Ramos Rosa, com vários livros de magníficos
poemas em prosa no seu currículo (por exemplo,
Quando o inexorável [1983]
Clareiras [1986],
O deus nu[lo] [1988], O
aprendiz secreto [2001]). A verdade é que já os modernistas
portugueses distinguiam “poesia” de “literatura”, uma distinção que nada
tinha a ver com a distinção entre verso e prosa.
A poesia era para Pessoa e Sá-Carneiro a arte
suprema da escrita criativa, a vanguarda artística, a luz da desocultação
do novo, o desassossego da existência. A literatura, por sua vez, era a
re-escrita do existente a uma luz alheia, dela cativa como uma borboleta,
por isso reconfortante. Assim distinguiam os nossos modernistas poetas de
lepidópteros. A literatura, assim entendida, pode reconfortar, acomodando;
ao passo que a poesia, assim entendida, como a de António Ramos Rosa, por
mais “feliz”,
(2)
só traz desassossego. Esse desassossego que nos faz perguntar
constantemente por aquilo que
supostamente é e supostamente tem de ser como é.
Disse
Platão que o espanto (thaumazein)
está na origem da filosofia. Talvez – num primeiro momento. Mas logo a
razão acomodadora do philosophein
se impôs, obrigando a pôr de lado o assombro do que não é explicável. Só a
poesia fala “o pasmo essencial” perante a “eterna novidade do mundo”.
Acabo de aludir
a Pessoa/Caeiro em “O meu olhar é nítido como um girassol”, mas também
Ramos Rosa escreve lapidarmente sobre esse
thaumazein/deslumbramento em
Deambulações Oblíquas
(2001):
Se escrevo é porque nunca vejo mesmo quando vejo e porque o que
sinto mesmo quando me deslumbro é sempre indefinido
mas não escrevo
para chegar a uma conclusão nem para determinar o que é inexprimível
E ainda no mesmo volume:
… o poema é um desvio oblíquo
uma distância que avança para
outra distância
um movimento sem resultado numa
estrela ou num zero
e tudo o que aparece nele é a
diferença incomparável
Entendo este “desvio oblíquo” de
Ramos Rosa como o clinamen
lucreciano que os grandes poetas (e alguns filósofos) nunca
deixaram de abraçar contra o totalitarismo de um centro de autoridade
absoluto e concludente (3).
Onde a filosofia deseja arrumar, ordenar, conformar, confortar, concluir,
fixar, totalizar, em suma, onde a filosofia deseja
saber, a poesia abraça aquilo
que é, para Ramos Rosa, “não-saber”, e a que o poeta chama a “ignorância
acesa” ou “a ignorância viva” (Livro da ignorância [1988], 22, 33), e rasga fundas clareiras de
liberdade e desassossego em um “saber” que é pessoanamente “sabor” (O
volante verde, 19) e se realiza tão-só na materialidade “de beijos” (O
livro da ignorância, 33, 25). Dois anos antes, em
Clareiras (1986) tinha o poeta já escrito: “Sei a fundura do
não-saber: embrieguez perfeita” (11). Por alguma razão se refugiava
Hölderlin em Kant, que é como quem diz na filosofia, essa tirana (dizia o
poeta), sempre que não conseguia tolerar o seu próprio
desassossego-de-ser, que lhe vinha da inquietante poesia e que acabou por
levá-lo à loucura.
Ramos Rosa teve
destino menos trágico. Soube aceitar a materialidade do “imperecível” no
“efémero” (Clareiras, 9) e descobrir a positividade do “desvio” ou
“interrupção” que “pode gerar um mundo” (Volante
verde [1986], 48). É a redescoberta, na imaginação do poeta, da
“coincidência perfeita” de “Estou vivo e escrevo sol” (1966). Maximino
fala de “harmonia” e “equilíbrio” na poesia de Ramos Rosa (166) e, de
facto, a “coincidência perfeita” é uma feliz imagem de ôntica harmonia que
se encontra também em Clareiras,
um volume de poemas em prosa, onde repetidamente se canta o tranquilo
espanto do poeta perante a reencontrada experiência inefável do ser total:
“Estou completo como uma onda do mar, como uma árvore, como um muro
branco” (13). A escrita dá aqui testemunho de uma completude redonda, que
torna o ser-poético indistinto do puro existir na materialidade das suas
imagens: “Sou tudo aquilo em
que estou. Folhagem e água, ar, pedras, o sono verde da terra, as cores,
os muros, as árvores e as casas adormecidas, rugosas, tudo, o todo
inteiro, aqui, na coincidência feliz de ser, ebriamente límpido,
misteriosamente idêntico” (13). Esta plenitude perfeita (“escrevo na
coincidência e na amplitude do aberto”, 8) vem a ter a sua mais bela
expressão em Volante verde,
o volume, saído no mesmo ano que
Clareiras e que, a meu ver, se
propõe realizar o programa erótico-poético proposto por Caeiro na célebre
fórmula epicurista do radical desejo da terra: “Se eu pudesse trincar a
terra toda/E sentir-lhe um paladar”.
Onde a
filosofia se faz de conceitos, que respondem ou resolvem e encerram, a
poesia faz-se de imagens, que interrogam, perturbam e abrem mundos. “Os
poetas podem compreender o mundo sem conceitos”, disse o grande poeta
brasileiro Manoel de Barros (O livro
das ignorãças, 1993), e Ramos Rosa escreve em
Clareiras: “Escrevo, não para
confirmar, mas para descobrir, para iniciar”, 27). E, mais próximo ainda
da materialidade do ser-poeta, assim define Ramos Rosa o poeta em
Volante verde (1986): “Ele
prepara os incertos lugares. Escreve / o que escreveria um réptil pulsando
sobre as pedras” (54). Em Quando o
inexorável (1983), um poema em prosa a que oportunamente alude
Maximino na sua conclusão final (325), a imagem do poema torna-se mais
animal ainda, ou, dir-se-ia tamvez agora, pós-humana: “Há uma linguagem
originária que é a da própria ignorância animal, a linguagem mais
equívoca, tão sinuosa e esquiva como uma serpente” (35). Ao longo do seu
trabalho, Maximino detém-se com evidente deleite nas imagens que se impõem
ao poeta, algumas dando origem aos seus títulos mais célebres – o grito, o
sol, o deserto, a água, a palavra, a clareira, o cavalo, o clamor, a
folha, a lâmpada, o vinho, a pedra, o pássaro, a amêndoa, a árvore. Ou o
pessoano volante, que em Ramos Rosa é, como já vimos, ecológica e
alegremente verde. E aquelas outras imagens que, como resulta da análise
de Maximino (152), são falsos conceitos, como o silêncio (que é
“desenhado” em Volante verde,
24), o branco (que é um “livro” e um “animal” em
Quando o inexorável [1983], 29,
39), o inexorável (que “a voz paciente e sôfrega ardente e impaciente”
“atravessa” [49]), o intacto (que é de “sabor aceso e espesso” em
O livro da ignorância [1988]
(25) ou a palavra (que não diz “a alegria do vento” mas é tão material e
concreta como a árvore ou a pétala ou a lâmpada [Volante
verde, 31, 27]). Em Clareiras,
as “pobres palavras tornam-se ardentes, unificadas, vivas evidências de
uma nudez enigmática” (8) e “correm … querem nascer entre os cabelos e o
mar, como lâmpadas verdes, como latidos nupciais” (41). As palavras do
livro com esse título (As palavras,
2001) são desejo de corpos-de-ser: “ramagem” ou “pétalas” ou “cavalos de
desejo” (13) e
“caminham com a agilidade inaugural do sémen da língua” (14).
A poesia não é senão a constante
reinvenção do antes-do-pensado, como Heidegger aprende com Hölderlin.
Percorrendo com Maximino todos os caminhos da filosofia ocidental,
chegamos inevitavelmente a esta conclusão com base igualmente na poesia de
António Ramos Rosa: a poesia não é filosofia – e continua a resistir-lhe e
a não deixar-se colonizar por ela.
Há muito tempo venho dizendo também
que a língua da poesia é sempre a mesma, e é sempre estrangeira. E eis que
Ramos Rosa me corrobora magnificamente em
Deambulações Oblíquas:
Um poema é sempre escrito numa língua estrangeira com os
contornos duros das consoantes com a clara música das vogais Por
isso devemos lê-lo ao nível dos seus sons e apreendê-lo para além do
seu sentido como se ele fosse um fluente felino verde ou com a cor do
fogo O que de vislumbre em vislumbre iremos compreendendo será a
ágil indolência de sucessivas aberturas em que veremos as labaredas de
um outro sentido tão selvagem e tão preciosamente puro que anulará o
sentido das palavras É assim que lemos não as palavras já formadas
mas o seu nascimento vibrante que nas sílabas circula ao nível físico
do seu fluir oceânico
António
Ramos Rosa morreu em Setembro passado. Na altura, escrevi um pequeno texto
para o JL, que começava assim: “Morreu
o homem. O poeta não morre nunca. O leitor que Ramos Rosa, poeta, sempre
disse ser, perdura na leitura que dele continuamos a fazer. Não disse
Pessoa que o poema é sempre escrito no dia seguinte? E quem finalmente o
escreve senão nós, seus leitores?” A poesia de Ramos Rosa é um insistente
convite à sua leitura, como neste quase-soneto de
As palavras (55):
Múltiplos
parecem os caminhos do poema
mas o seu
percurso talvez seja só um
e será
preciso inventá-lo ou descobri-lo
através do
silêncio liso da página
Quem sabe
onde nos conduz a ténue linha
que
começamos a traçar entre a ingenuidade e a dúvida
mas talvez
pressintamos a integridade branca
de um
indivisível corpo que nos foge adiante
Às vezes
como uma lâmpada fragrante
uma palavra
exala um aroma de lua
ou uma
frase cintila como uma constelação frágil
Mas o
desejo do poema é encontrar a clareira nua
em que o
inexprimível seja o puro tremor
da sua
inextinguível sede e água que nele se adivinha
Neste
livro que tive hoje o gosto de aqui apresentar, Jorge Maximino, leitor de
Ramos Rosa, descobre palavras para dar voz a mais um magnífico “dia
seguinte” dos poemas deste poeta. Faço votos para que uma edição em língua
portuguesa, porventura em versão menos academicamente pesada, abra aos
seus leitores muitos outros “dias seguintes” para Ramos Rosa. Resta-me o
grado dever de agradecer a Jorge Maximino ter-me convidado a reler este
grande poeta pela sua mão.
|