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MARIA DO SAMEIRO BARROSO
SOBRE OS RIOS DO ESTIGE¨ (1)
« Flui cego o soluçar do Lete. » (2)
Marina Zwetajewa-Efron
 

Em 1780, Schiller, com 23 anos, é estudante de Medicina na Academia Militar de Karlsschule, em Stuttgart. Durante os seus estudos, escreve uma dissertação sobre a diferença entre a febre inflamatória e a febre gangrenosa «De discrimine febrium inflammatoriarum et putridarum». No entanto, despontava já o seu talento poético, dramático e filosófico (3). Como trabalho de licenciatura escreve um trabalho de carácter antropológico Versuch über den Zusammenhang der thierischen Natur des Menschens mit seiner geistigen (Ensaio sobre a relação entre a natureza animal do homem com o seu espírito). Nesse mesmo ano a escreve a peça que, de imediato, o celebrizará: Die Räuber ( Os Salteadores ) . O poema, Hektors Abschied (A despedida de Heitor ) foi escrito a 17 de Dezembro desse ano, então sem título, tendo sido incluído na peça .

Mais tarde, foi intitulado Abschied Andromachas und Hektors (A despedida de Andrómaca e de Heitor) e incluído em Die Gesænge aus dem Schauspiel die Räuber von Friedrich Schiller ( Os Cânticos da peça Os Salteadores de Friedrich Schiller ) , com música composta por Rudolf Zumsteeg, em Mannheim, em 1782 (4).

Nos anos de 1781e 1782, Schiller exerce a sua profissão como médico militar em Stuttgart, mas, em breve abandona a Medicina.

Tendo sido proibido de se deslocar, para assistir à estreia da peça Die Räuber (Os Salteadores), Schiller foge com o compositor Andreas Streicher (5).

Mais tarde lamentará ter-se dispersado nos seus estudos, estudando, primeiro Direito, depois Medicina. Não se tendo dedicado ao estudo da língua grega, não lhe foi possível ler os poetas gregos na língua original. Assim, tem que recorrer a traduções, que lê, com entusiasmo, junto de Charlotte von Lengefeld (6), que mais tarde desposará (7).

Neste poema, Schiller segue o episódio narrado no Canto VI da Ilíada : a despedida de Andrómaca e Heitor:

«(...) Caro esposo!

Para as mansões do Orco vais agora,

Nas entranhas da terra, e aqui me deixas

No tristíssimo luto da viuvez.

Dessa criança, a quem infortunosos

A vida demos, eu e tu Heitor,

Que morreste, de ser arrimo cessas;

Nem ele te prestará nenhum serviço.

No caso de escapar da crua guerra,

Não lhe serão exíguos os trabalhos.»

( Ilíada, vv. 647-654) (8)

Para Andrómaca, Heitor é: «Pai, mãe, irmãos e meu florente esposo» ( Ilíada , vv. 482-489) (9). A relação conjugal entre Andrómaca e Heitor é equilibrada, harmoniosa e de fidelidade mútua. Da ternura com que Heitor trata Andrómaca, tomamos, como exemplo o seguinte passo:

«Dito isto, pôs nos braços da esposa

o filhinho; ela recebeu-o no sei perfumado,

entre risos e lágrimas; condoeu-se o marido ao vê-la,

acariciou-a, e dirigiu-lhe estas palavras, chamando-a pelo nome:

«louca, não te aflijas assim no teu coração!

Ninguém me lançará ao Hades contra as ordens do destino!

garanto-te que nunca homem algum, bom ou mau,

escapou ao seu destino, desde que nasceu!»

( Ilíada, v. 430) (10).

As tarefas que competem a cada sexo são bem definidas: à mulher, fiar e cuidar da casa; ao homem, está reservada a guerra, cujo desfecho determina o destino da cidade, tal como Heitor refere:

«Vai para casa tratar dos teus trabalhos,

o tear e a roca, e dá ordens às tuas aias

de fazer o seu serviço; a guerra diz respeito aos homens,

a quantos nasceram em Ílion, e a mim mais que a nenhum!»

( Ilíada, vv. 490-493) (11)

A relação entre Andrómaca e Heitor é emblemática, sendo considerada um modelo de amor, carinho, afecto, durante o período homérico. A sociedade em que se inserem é patriarcal. No entanto, mesmo neste contexto, o homem tem o dever de proteger a mulher. Heitor fá-lo, de forma exemplar (12).

Mais do que o destino do próprio pai ou da mãe, Heitor preocupa-se com o destino da sua esposa, que ficará completamente indefesa, como presa de guerra, após a queda de Tróia:

«Em que Ílion sacra o Príamo, seu rei,

Que vibra a rija lança, e o povo teucro

perecerão: mas não tanto me não pena

A dor futura dos Troianos todos,

A dor futura de Hécuba, a do rei, e a desventura

De meus irmãos que, tantos e tão bravos,

No pó tem de exalar o alento extremo,

Quanto peno por ti, quando imagino

Que nos braços brutais de algum dos Gregos

Serás arrebatada, em vão chorosa,

perdido o doce bem da liberdade!»

( Ilíada, vv.648-659) (13).

Alguns autores, estudando as relações homem-mulher, na Antiguidade e, repensando esta cena, habitualmente considerada uma manifestação típica da sensibilidade feminina, acentuam que a atitude de Heitor é igualmente terna, não havendo diferenciação na expressão de emoções, nos dois sexos: «O poeta homérico não conhece qualquer diferença na expressão dos sentimentos, por parte do homem e da mulher.» (14). Schiller acentua a tonalidade trágica e poética desta cena.

Ampliando a tristeza, que toma conta de Andrómaca, ao despedir-se do marido, que sabe não voltar a ver, o próprio Cocito chora: «O Cocito, atravessando os desertos, chora/ O teu amor termina no Lete.».

Tudo acabará , Heitor, a casa real de Príamo, a cidade de Tróia. Ao que Heitor responde: «Toda a minha ânsia, todo o meu pensamento /Na torrente tranquila do Letes quero afundar/ Mas não o meu amor.(...) Não morre no Lete o amor de Heitor».

O amor surge, mais uma vez, eterno, e juntamente com a com a arte, como uma forma de elevar o homem à glória dos deuses (15), tal como Schiller expressa no poema Der Triumf der Liebe (O triunfo do amor) (16).

Para Homero, os deuses são homens que se excedem. Tanto a forma, como toda a ambiência que os envolve é humana. No entanto, as diferenças entre os deuses e os homens são grandes, esses que vivem , mas não conhecem a morte.

Nas suas veias não corre o sangue, mas o íchor, ao qual vão buscar a força e a eternidade. Alimentam-se de néctar e ambrósia, o que lhes confere a eterna juventude. A existência dos deuses, é na sua aparência, semelhante à dos homens. Tudo neles é faustoso, magnificente e maravilhoso. São seres que vivem sem peso «die leichthin Lebenden» , ou os « rheîa zoontes», a que se refere o Poeta. Os deuses também possuem, no entanto, sentimentos humanos: também se zangam, se enfurecem, lutam, urdem intrigas, são sensíveis à dor e têm sentimentos de vingança (17).

Para Schiller, os deuses clássicos também se aproximam dos homens: «Os Gregos representavam os seus deuses simplesmente como homens ilustres e aproximavam os seus homens dos deuses. Eram filhos de uma família.» (18).

Os heróis são também homens que se excedem e assim se aproximam dos deuses. Os deuses materializam a essência do belo, da verdade e da justiça, como refere nas Cartas sobre a Educação Estética : «Também a beleza, quer-me parecer, tem de assentar sobre fundamentos eternos, tal como a verdade e o direito» (19).

Na Ilíada, Aquiles e Heitor são os melhores guerreiros. Contudo, são grandes as diferenças entre ambos. Ao contrário de Aquiles que, talhado para a guerra e para a sua violência inerente, apenas nela encontra a realização total do seu talento, Heitor é um Heitor é um homem de paz; ele é o homem, o cidadão, o guardião da cidade.

É ele que preside aos sacrifícios em honra dos deuses, tal como refere Andrómaca, neste poema. É ele que defende a cidade. É é sobre ele que recai todo o peso da guerra (20). É ele que tenta impedir o trágico desfecho para Tróia, anunciando a disponibilidade de Páris para lutar com Heitor, no livro VII. Mas os seus esforços não são coroados de êxito: Páris não encara, com agrado, o campo de batalha. Aquiles, para quem a violência é o elemento natural, é invencível, embora saiba que perecerá também, após a guerra, em consequência da opção que fez ( Ilíada, vv. 497-504).

Aquiles é também um daqueles que a Fortuna elegeu. No poema Das Glück (A Fortuna) (21), Schiller, que lera Píndaro, em 1792 (a II Olímpica, a IV Pítica e a IX Pítica) numa tradução de Humboldt (22) retoma a ideia que os que triunfam são aqueles que os deuses favorecem e que, por isso, são dignos de ser cantados (23):

«Bem-aventurado aquele a quem os deuses magnânimos

Já antes do nascimento amaram,

Aquele a quem, na infância, Vénus, nos seus braços, embalou,

A quem Febo aos olhos e aos lábios deu sorte

E o estigma do poder, Zeus, na sua fronte estampou!

Um destino sublime, um destino divino, coube-lhe em sorte.

Antes mesmo de iniciar a disputa , coroadas já estão as suas fontes.» (24)

Heitor teve menos sorte. No mesmo poema Schiler refere-se-lhe nos seguintes termos:

«Pela altar sagrado lutou Heitor, mas o piedoso pereceu

Diante do afortunado, pois os deuses não lhe foram propício.» (25)

...

Heitor de bom grado acederia ao desejo da esposa, mas os seus deveres para com a pátria obrigam-no a ir ao encontro de Aquiles, o que significa ir ao encontro da morte. Heitor sabe que o seu sacrifício é inútil, porque Tróia está condenada, mas não pode deixar de a defender a pátria.

Por ela perecerá, com toda a sua dignidade e grandeza, deixando Andrómaca na mão dos conquistadores, expressando com tristeza todo o seu dilema trágico e tendo ficado como um símbolo de coragem patriótica.

Toda a vivência da Ilíada decorre da guerra e da violência organizada, na qual o homem justifica a sua existência matando os outros (26). Nela se combinam duas emoções contraditórias do homem: por um lado, a sua aversão à violência e ao derramamento de sangue e, por outro lado a excitação causada pelo exercício da mesma. A guerra exerce um fascínio terrível para aqueles que nela se envolvem.

A Ilíada retrata a guerra não na sua monstruosidade sangrenta, mas na sua beleza terrível, mostrando a volúpia de matar, a vertigem de sangue que toma conta dos que combatem, pois é disso que vivem. Os homens demonstram a sua coragem quando matam e, com dessa forma afirmam a sua superioridade sobre os outros. A sua violência e coragem transforma-os em heróis.

O sofrimento dos vencidos é exposto com júbilo e exaltação de quem mata. O próprio Heitor, talvez o mais civilizado de todos os guerreiros, refere-se com júbilo e alegria aos seus feitos (à sua matança) levada a cabo no campo de batalha, no Canto VII (vv. 275-81).

É na guerra que os heróis encontram a sua razão de ser e conquistam a sua glória. Esta violência assume, no entanto, ao consumar-se, proporções devastadoras.

A queda da cidade de Tróia e, com ela a morte de Heitor, constitui uma perda irreparável. Toda a glória que Aquiles consegue alcançar, não compensa, de forma alguma a perda desse ser humano, talvez o melhor e o mais completo de toda a Ilíada (27).

A Ilíada aceita a violência como uma característica inerente à condição humana. Três milénios mais tarde, o ser humano mantém-se inalterável (28).

A temática clássica é uma constante que atravessará quase toda o obra lírica de Schiller. Recriando os deuses do mundo antigo, Schiller faz uma tentativa de reconstrução do passado mítico.

Hektors Abschied ( A Despedida de Heitor ) precede a «febre» clássica que

assolará Schiller e cujo poema mais representativo é Die Götter Grieschenlandes (Os deuses da Grécia), escrito em 1788 (29), no qual Schiller recria esse mundo que considera perdido para sempre, mesmo quando evocado e recriado através da poesia e da arte (30).

A perda do mundo clássico é irreparável, tal como a queda de Tróia ou a morte de Heitor. Este mundo continua, no entanto, a ser uma fonte de beleza e um lugar de utopia (31).

Na 12.ª Cena do IV Acto da peça Wallensteins Tod (A morte de Wallenstein) , que Norber Oellers menciona como percursora do poema Nänie (Nénia) (32). Thekla, a heroína, lamenta a perda do noivo, Max Piccolimini, que morrera no campo de batalha, para cumprir o seu destino, tal como Aquiles:

«Eis que chega o Destino frio e cru,

Agarra a figura terna do Amigo

E lança-o debaixo dos cascos dos cavalos -

- Esta é a sorte que cabe ao Belo, na Terra!» (33).

A beleza constitui o objecto central do pensamento de Schiller, durante esta década da sua vida (34), que aperfeiçoa na sua convivência com o filósofo Emmanuel Kant. Schiller, então « discípulo e crítico simultâneo de Kant, defende uma ideia de formação imanente, uma Bildung empenhada em entender e configurar a beleza como expoente máximo de uma totalidade orgânica, em equilíbrio precário mas não abdicando de uma dupla exigência sensível e inteligível» (35).

No tratado Über die ästhetische Erziehung des Menschen (Sobre a Educação Estética do Ser Humano: «Com a beleza, penetramos no mundo das ideias, mas note-se, sem nunca deixamos o mundo sensível.» (36).

No mundo sensível, persiste a morte, a precariedade da vida, junto ao Lete, a fonte do esquecimento, onde coexiste também a fonte da memória, Mnemósine (37).

Entre a vida e a morte (a memória e o esquecimento), «fui cego» o destino do homem. Mas, um só parece ser a razão da morte, a fonte da vida, pois as águas do Estige também são regeneradoras. É nelas que Tétis mergulha Aquiles, com a finalidade de o tornar imortal (38).

Por vezes também é necessário louvar as forças ctónicas ou as divindades obscuras. Na Elegia dedicada a Marina Zwetajewa-Efron, Rainer Marie Rilke (1875-1962), referindo-se aos deuses egípcios, após a viagem que efectuou ao país do Nilo, em 1911 (39), escreve:

Também os deuses do mundo inferior querem ser louvados, Marina.

Tão inocentes são esses deuses, aguardam louvores como meninos de escola.

Louvemos, ó Amiga, sejamos pródigos no louvor.

Nada nos pertence. (40)

Tal como Schiller, também Georg Heym (1887-1912), a morte liga o bem e o mal, é o lugar para o amor eterno, consubstancia o próprio lugar da pátria

Deixa-te de lágrimas. Ficaremos junto

Aos mortos na terra das sombras

E dormiremos eternamente nas profundezas,

Nas cidades ocultas dos demónios.

(...)

Ficaremos para sempre lado a lado

Na floresta umbrosa lá no fundo.

(...)

A morte é branda. E essa ninguém a deu,

Dá-nos a pátria. E leva-nos, suavemente

No seu manto, ao túmulo escuro,

Onde tantos repousam já tranquilamente. (41).

No intervalo entre a I e a II Guerras Mundiais, em 1944, Jean Giraudoux (1882-1944), diplomata e escritor, escreve uma peça teatral de título desconcertante: La guerre de Troie n'aura pas lieu (42). Partindo da Guerra de Tróia e utilizando as personagens e as premissas de Homero, Jean Giraudoux analisa e questiona o homem, nas suas relações com a guerra.

Quando, remetendo-nos para Homero, Andrómaca pergunta a Heitor se este se sente um deus, em combate, este responde (43), descrevendo a guerra, na sua arrepiante volúpia, concluindo:

«Jamais l'homme n'a plus respecté la vie sur son passage.».

Eros e Tânatos continuam a consubstanciar as vivências humanas, nas suas componentes vitais ou nas suas pulsões destrutivas.

E, de Homero, chegam também os ecos da relação carinhosa entre Heitor e Andrómaca: «Ah! Hector rentre dans la gloire chez as femme adorée!» (44).

Não só de guerra, mas também de amor se constróem os heróis, no nosso tempo, no tempo de Homero, no mundo, em que vivemos e amamos, suspensos, sobre os Rios do Estige.

Publicado no Boletim de Estudos Clássicos, Associação Portuguesa de Estudos Clássicos, Nº 39 , Coimbra, Junho de 2002, pgs. 95-112.
Salvo referência em contrário, as traduções do alemão são de nossa autoria.

Maria do Sameiro Barroso é licenciada em Filologia Germânica e em Medicina e Cirurgia, pela Universidade Clássica de Lisboa. Exerce a sua actividade profissional como médica, Especialista em Medicina Geral e Familiar.

Em 1987 iniciou a sua actividade literária, tendo publicado livros de poesia e colaborado em antologias e revistas literárias. A partir de 2001, a sua actividade estendeu-se à tradução e ensaio, tendo publicado, em revistas literárias e académicas.

Em 2002 iniciou a sua actividade de investigadora, na área da História da Medicina, tendo apresentado e publicado trabalhos, nesta área.