Constituo-me entre fragmentos. —
Não quero abrir mais do que um espaço entre a névoa,
para devorar o fogo e gritar uma nova estridência.
Observo as árvores, ainda sem folhas,
os plátanos e as suas sementes, uma palmeira,
brumas violáceas.
Ontem escutei, ao piano, Grigory Sokolov, o universo
fendido, entre rosas e gerânios, pensei num verso
de Rilke:
— « Ich möchte einst im Frühling sterben»*
e no meu diário apressei os búzios e os aromas.
Nas suas folhas nadavam as pétalas e os lírios
devassados, entre barcos magoados, recônditas feridas.
Havia sangue, linfa, estames negros e cordões
de veludo.
Porque a primavera exuberante sangrava e eu bebia
a música e as essências do mundo;
os dias floresciam, dilatados entre diálogos
ininterruptos, como se os vulcões perdurassem,
porque sagradas eram as folhas, as ervas,
e a terra tinha a forma de um útero,
a primavera trazia, nas suas raízes, a flor
dos relâmpagos, cobrindo-se de líquido seminal,
e os dias nasciam do seu odre melodioso, envoltos
na penumbra,
a noite rasgando os seus mistérios vagarosos,
trazendo as mãos incendiadas, o coração coagulado,
os olhos cobertos de rosas obscuras, iluminadas,
irradiando as pulsões nocturnas,
de regresso ao espaço primordial,
.....................................de onde nasci, pela primeira vez.
(Poema inédito)
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Maria do Sameiro Barroso é licenciada em Filologia Germânica e em Medicina e Cirurgia, pela Universidade Clássica de Lisboa. Exerce a sua actividade profissional como médica, Especialista em Medicina Geral e Familiar.
Em 1987 iniciou a sua actividade literária, tendo publicado livros de poesia e colaborado em antologias e revistas literárias. A partir de 2001, a sua actividade estendeu-se à tradução e ensaio, tendo publicado, em revistas literárias e académicas.
Em 2002 iniciou a sua actividade de investigadora, na área da História da Medicina, tendo apresentado e publicado trabalhos, nesta área. |