MNEMÓSINE / Posfácio de A. Ramos Rosa Maria do Sameiro Barroso (poemas) & Martins Correia (pintura) 15-05-2005 www.triplov.org |
O que há de mais característico, singular e surpreendente neste livro, Mnemósine , de Maria do Sameiro Barroso, é a completa continuidade de domínios tão diferentes, complementares ou contrários, como a palavra e a natureza ou o cosmos. O ritmo destes poemas é o movimento incessante e inseparável que conduz e acentua a plena continuidade das relações entre a linguagem e o mundo, entre a palavra e o ser ( seja no plano da natureza, do cosmos ou da condição humana). Dir-se-ia que os poemas constituem uma "escalada" ( para empregar uma palavra deste livro), mas uma escalada cuja verticalidade ascensional é ao mesmo tempo horizontal com um solo ou uma página, numa reunião de contrários simultaneamente como a fidelidade à sequência horizontal característica de uma figuração geométrica de linhas paralelas na página. Mas essa horizontalidade é também a manifestação de que por mais alto que o poema ascenda nunca perde de vista o que nele há de terrestre, ainda que a palavra tenha de " ordenar" o " sentido intacto da noite/ dos abismos./ O caos." O ritmo vibrante e extremante veloz destes versos em que não há lacunas, intervalos ou pausas, é de uma intensidade extraordinariamente vibrante que dir-se-ia impossível qualquer tentativa de suspender esse movimento na sua leitura que teria, necessariamente, de lhes ser paralelamente coincidente. A urgência da palavra incessante de Maria do Sameiro é como se ela vislumbrasse a continuidade das semelhanças de todas as diferenças do mundo real e procurasse unificar tudo numa tumultuosa unidade cósmica, ainda que as difernças das coisas mantivessem a sua vibração específica. Dir-se-ia que ela resolve nas suas imediatas formulações o paradoxo ou o dilema das diferenças constituídas do real na sua semelhança total ou na continuidade das suas relações em que as diferenças que se manifestam são imediatamente transcendidas pela continuidade de uma identidade dinâmica que integra em si ou seja no espaço do Uno, mas na transparência da qual todas essas diferenças, de algum modo, transparecessem numa continuidade em que o descontínuo é como que a diferença de uma semelhança ou a semelhança de uma diferença que não quebrasse a solidariedade das relações dessas diferenças ou de um mundo vertiginoso em que se sente o caos como a ameaça dessa continuidade dinamicamente coerente mas como que perigosamente transbordante. Mas a coerência da linguagem poética é a coerência de uma incoerência. Maria do Sameiro, como autêntico poeta que é, mantém no fluir coerente do poema a vibrante volubilidade de uma incoerência que lhe é inerente e sem a qual o poema poderia constitui-se como um discurso racional ou conceptual. Esta incoerência que é a vibração da imanência poética ( e também da imanência corporal) que se actualiza na tessitura do poema, nunca se sobrepõe à constituição ( incondicional) do poema, mas a coerência, por sua vez, também não neutraliza ou atenua a irradiante pulsionabilidade da incoerência nem se lhe sobrepõe excessivamente e, de modo algum, a " explica" ou a "resolve" na sua actualização formulativa. Todavia, para Maria do Sameiro, como poeta, a progressão do poema, no seu ritmo vertiginoso e quase alucinatório ( mas esta alucinação é de uma percepção de penetrante claridade muito fluida e muito viva) parece ser uma constante fuga ao caos, ou seja à incoerência específica do poema, como se esta ameaçasse permanentemente o próprio poema nas suas sequências formulativas. A " palavra liberta", para este poeta, é uma palavra da coincidência ( " A coincidência entre/ a lua e os pássaros/ transmite-se/ aos nomes que vagueiam/ sonâmbulos ( ... ) onde o tempo/ se perde/ e a memória oscila./ No silêncio que flui."). Quando um poeta diz o que diz com um rigor fluido que dir-se-ia inexcedível, o crítico pode sentir que tudo está dito, e o que ele disser será supérfluo e redundante. Num poema de um maravilhoso esplendor intitulado " PRECIOSA É A LUZ", Maria do Sameiro concentra no poema a deslumbrante plenitude cósmica do "instante total" e maravilhoso com a sua percepção do universo tão magnificamente prospectiva em tão sumptuosos versos como estes: " Nos diademas do mar./ ( ... ) No ouro dos mitos./ Na aura densa e pedregosa/ dos cavalos nocturnos,/ porque preciosa é a luz plena/ de água, a extensão perfeita,/ o rosto que precipita os cumes/ e os montes, a sombra que fabrica/ a infinitude/ e a erva viva, a cal das casas/ os ramos verdejantes ... // Seu hálito é azul." Há talvez em muitos versos deste poeta reminiscências de um Gôngora e de um Saint-John Perse ou se, porventura, Maria do Sameiro não os conhece, as afinidades com estes poetas do esplendor cósmico e erótico são, no entanto, irrefutáveis. O maravilhoso verso final do poema que citámos agora é, na sua pura simplicidade, um diamante poético. António Ramos Rosa |