Procurar imagens
     
Procurar textos
 

 

 

 

 


 

 

Maria do Sameiro Barroso
MEANDROS TRANSLÚCIDOS
Lisboa, Labirinto, 2006



Estes «Meandros Translúcidos» têm, ao nível formal, um curioso aspecto diarístico, naquilo que um diário pode ter de não evidente, de não estritamente confessional, de humana e referenciada interpretação dos dias. São disto exemplo os poemas dedicados e aqueles que partem de lugares concretos.

Esta espécie de diarística sobre a forma de poema dá à obra um reforço daquilo que sugiro no início deste texto: um livro para se viver com ele, para se experimentar como se experimentam pessoas, como se experimentam emoções, como se experimenta o mundo.

Um livro que nos fala tão livremente de como nos devemos entregar à «nudez sem explicação»(1) do que é, do universo, o seu lado poético, o olhar infinito que proporciona, a sua inquebrantável beleza no lado humano de quem o escreve, de quem o recria e disso nada dispensa ou renuncia.

Pompeu Miguel Martins

Fafe, 12 de Fevereiro de 2006

(1) in poema dedicado a António Ramos Rosa

 

A CABEÇA INCENDIADA PELO SONHO

Nunca são despovoadas as noites dos poetas.

No seu canto, há sempre pássaros prometidos,

debicando a doçura,

enquanto as pálpebras descem, os barcos do cansaço;

Sigo as falenas da noite e os astros dobram-se,

na loucura nostálgica de engendrar vísceras, círculos,

versos, escutando a pele, a maresia,

os gérmenes da penumbra.

 

Nas palavras do encanto, anoitecem as sombras

e é tempo de soltar as manchas violentas,

desenhadas a sépia, que dedilham a cor amarela,

trazem cheiros fortes, assinam violetas,

acendendo as dunas,

no esplendor de agarrar as cordas, os nós, os lastros

e iluminar os pássaros, as lâmpadas, a matéria.

 

Há pouco, a cabeça incendiada pelo sonho tecia

as dádivas, o ardor, as teias límpidas,

as cerejas clamavam, na sua língua saborosa,

os cedros gotejavam,

 

e as nuvens cartografadas respiravam o estrépito,

a luz, entre atmosferas túmidas, claras espirais

que teciam texturas leves, em novos lemes,

 

...............................................................semeados,

 

..........................................................................entre astrolábios de cinza.

ROSAS TRAZIDAS DO HADES

O amor é feito de lacunas incessantes que ferem, embebedam,

quando a aurora desperta,

no ardor delicado de uma frágil Primavera.

Nos cadinhos da luz, na turbulência das fontes,

o seu ardor precipita-se.

 

Outrora, a aurora movia os seus carros, conduzidos

por Hélio.

Sobre marcas doridas, soavam acordes.

Na luz das primeiras lágrimas, só a lírica se compadecia

do ser.

Nas terras verdes da Frígia, Orfeu cantava,

pois nunca dizem adeus os seres que se amam,

se as chamas clamam, mais rubras, nos celeiros ardentes.

Mas as barcas de Caronte velavam,

e a morte, com a sua foice, insinuava requebros,

tormentos.

 

O mundo era então uma ferida aberta, uma ferida

sangrante, e Orfeu cantava, nos mosaicos

que representavam centauros, velhos Silenos,

folhas de acanto.

 

O mundo era então um livro órfico, onde as Dríades,

irmãs de Eurídice, choravam o abraço perdido,

o ardor encontrado,

enquanto Orfeu tangia, na lira doce, o canto,

a morada imortal,

 

...........................................sobre rosas trazidas do Hades.

MEANDROS TRANSLÚCIDOS

As rosas são um tinteiro fresco sobre os muros da noite,

atravessam o sono e os incêndios

abrem-se pelas esferas complexas, onde os peixes

silenciosos vagueiam, abrindo a luz do meu nome.

 

Na terra húmida, há sombras assimétricas.

Nelas, revejo os celeiros, as colheitas, as torrentes,

onde o azul se abandona.

Há um clamor nupcial, uma turbulência adormecida,

entre plátanos dourados;

um odor de jasmim moldando a areia misteriosa:

um perfil de veludo, lavrando o ardor, a inquietude,

um octeto de cordas (uma peça de Brahms)

acompanhando o meu sonho de corais nocturnos.

 

A respiração vive então o seu próprio silêncio inquietante,

os seus meandros translúcidos,

nas arestas pulsáteis que irradiam as artérias vivas,

enquanto um sopro de luz inunda os dedos antigos

de vertebrados fósseis.

O silêncio, esse, renova-se, esquecido, na vertigem branca

dos turbilhões do sono.

 

As árvores expandem-se, voltam a ser verdes,

entre um violoncelo, um perfume, lembrando orquídeas,

as vagas negras do mar, o leito silencioso dos peixes:

a espuma celebra essências,

láudano e nenúfares, sombra e cicatrizes,

e a água flutua, na rosa dos nomes,

transformando a líquida fusão que me invade,

quando digo as turquesas, o mar de espelhos límpidos,

 

...............................na noite luminosa,

 

.......................................onde sou o silêncio de todas as coisas.

Maria do Sameiro Barroso é licenciada em Filologia Germânica e em Medicina e Cirurgia, pela Universidade Clássica de Lisboa. Exerce a sua actividade profissional como médica, Especialista em Medicina Geral e Familiar.

Em 1987 iniciou a sua actividade literária, tendo publicado livros de poesia e colaborado em antologias e revistas literárias. A partir de 2001, a sua actividade estendeu-se à tradução e ensaio, tendo publicado, em revistas literárias e académicas.

Em 2002 iniciou a sua actividade de investigadora, na área da História da Medicina, tendo apresentado e publicado trabalhos, nesta área.