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MARIA DO SAMEIRO BARROSO

O FEMININO NA LITERATURA MASCULINA
(A LUZ DAS MANHÃS MISTERIOSAS)

Agosto de 1995. A ilha de Creta. Dois anos antes, havia visitado a Grécia continental; já me tinha apaixonado completamente por esses lugares paradisíacos, repletos de ninfas, de deusas... E, antes, já havia poetas, também apaixonados pela cultura clássica, como HÖLDERLIN ou SCHILLER, que me haviam enfeitiçado.

Pena que os gregos fossem algo (ou mesmo bastante) misóginos, pensava agora, já diante de um pôr-do-sol magnífico, nas areias claras da praia da Aldeia do Meco. Naquele dia de Agosto, a calmaria, pouco comum nestas águas agitadas, tornara a superfície do mar numa cor absolutamente luminosa, cor de vinho — a cor descrita por Homero. Vira uma cor semelhante no Egeu, quando me deliciava com as belezas dessa civilização prodigiosa, cheia de contradições, que criou figuras femininas como ANTÍGONA, MEDEIA, PANDORA, HELENA, a radiosa ou CASSANDRA, a profetisa infeliz.

Em Agosto de 1995, no palácio de Cnossos, revisitava um sonho. Como seriam as mulheres, em Creta, antes de TESEU matar o MINOTAURO, ou melhor, antes de essa esplendorosa cultura minóica — repleta de divindades femininas, quando homens e mulheres saltavam sobre os touros de cornos dourados — ter sido destronada pela civilização micénica? Não sabemos. Não foi ainda decifrada a escrita Linear A. Só sabemos do MINOTAURO, de TESEU, ou de PASÍFAE e do seu desejo perverso.

De Creta, do mundo das mulheres, da civilização minóica, desse mundo do qual temos apenas as imagens que ainda não sabemos ler, pouco sabemos.

Como seria o mundo, quando a mulher era a grande Mãe, a forma feminina da Lua, da Terra, da Natureza, a grande nutridora universal, assim representada desde o Neolítico, antes de a versão dos homens se perpetuar?

«Temos de aceitar esta realidade: os grandes homens dizem mal das mulheres, os grandes filósofos e os mais autorizados saberes consagraram as ideias mais falsas e mais desdenhosas a propósito do feminino.» (1).

Para os gregos, a mulher era um ser claramente inferior, a sua presença causava um certo retraimento nos homens, uma distância que é concebida em termos de superioridade em relação ao mundo feminino: «Tales evita casar-se porque, para um sábio, é sempre cedo demais ou tarde demais» (2).

No dia seguinte, na praia, havia neblina e, ao pôr do sol, havia corredores da luz que se espalhava magnífica, cobrindo o mar de raios de ouro. Deve ter sido desta forma que os gregos criaram as deusas do mar, as nereides. Desta forma, num mar sem espuma.

Em Naxos, também junto a um mar assim, ARIADNE terá sido arrebatada por DIONISO.

Da espuma do mar, dos búzios mais belos terá nascido AFRODITE. Na baía de Atenas terá nascido ATENA, a deusa guerreira, luminosa, padroeira da cidade, a deusa-mulher.

No entanto, nesta cultura que virá a repercutir-se em épocas posteriores, e, na impossibilidade de aceder à educação, a mulher torna-se, cada vez mais, um «sujeito exemplar de conhecimento», «as mulheres encarnam no imaginário uma acessibilidade, uma permeabilidade quase sem resistência em relação à verdade, coerente com a sua vocação sexual de acolher, de tomar em si.», continua GIULIA SISSA (3). Essa atitude consubstanciar-se-á nos cultos femininos, na função social das mulheres como sacerdotisas. Com efeito, as mulheres ligam-se ao lado sensível, ao lado primordial inconsciente: «A alma é um corpo de mulher», este é, afinal, o título desse livro, no qual a autora prossegue, sem entrar em ruptura com o discurso masculino. Ao tentar compreender este, à luz da sua época, procura trazer uma nova luz ao nosso tempo, no qual, tirando as diferenças biológicas, já não restam dúvidas em relação à igualdade das capacidades de cada género.

E, pensando nas suas contradições, regressemos à cultura grega:

ATENA foi a deusa eleita pelos atenienses para ser a sua padroeira, tendo sido preferida a POSÍDON, o deus do mar e dos abalos ctónicos. Talvez porque a alma seja um corpo; «A recordação é o mais seguro terreno do amor», como refere NOVALIS (4). Para este autor, a mulher, personificada na noiva SOPHIE, significava a iniciação, a sabedoria e a ligação ao amor e ao eterno, a fonte de todo o conhecimento.

Outro autor, SCHILLER, prestou homenagem às mulheres; elas, vítimas de discriminação, no quotidiano, suavizam, embelezam e harmonizam a vida, na sociedade dos homens. Para SCHILLER, as mulheres constituem igualmente um elo privilegiado entre o humano e o divino.

Traduzimos um excerto do poema «Würde der Frauen» (A dignidade das mulheres):

A DIGNIDADE DAS MULHERES

Honrai as mulheres! Elas entrançam e tecem

Rosas sublimes na vida terrena,

Entrançam do amor o venturoso laço

E, através do véu casto das Graças,

Vigilantes, alimentam o fogo eterno

De sentimentos mais belos, com mão sagrada.

(...)

Na mais modesta cabana materna

Foram deixadas, com modos mais decorosos,

As filhas fiéis da natureza piedosa.

(...)

Mas, com modos mais brandos e persuasivos,

As mulheres conduzem o ceptro dos costumes,

Acalmam a discórdia que, raivosa, se inflama,

Às forças hostis que se odeiam

ensinam a maneira de ser harmoniosa,

E reúnem o que no eterno se derrama» (5).

Entre nós, para TEIXEIRA DE PASCOAES, a figura feminina confunde-se com na luz das manhãs misteriosas:

«(...)

Perfil de luz! Imagem religiosa!

Ó dor e amor! Ó sol e luar dorido!

Corpo, que é alma escrava e dolorosa,

Alma, que é corpo livre e redimido.

 

Mulher perfeita em sonho e realidade,

Aparição divina da Saudade...

Ó Eva, toda em flor e deslumbrada!» (6)

WALT WHITMAN exaltou assim a forma feminina:

«Esta é a forma feminina.

Um esplendor divino emana dela, da cabeça aos pés,

Atrai com uma atracção inegável e violenta.» (7).

Terminamos com HERBERTO HELDER, com um excerto do seu poema, extraído do Livro Lugar:

«E digo: elas cantam a minha vida.

essas mulheres estranguladas por uma beleza

incomparável.

Cantam a alegria de tudo, minha alegria

por dentro da grande dor masculina.

Essas mulheres tornam feliz e extensa

a morte da terra.

Elas cantam a eternidade.

Cantam o sangue de uma terra exaltada.» (8)

MARIA DO SAMEIRO BARROSO
(Publicado na Revista Palavra em Mutação, nº 4, 2003
 
Notas

(1) GIULIA SISSA, A Alma é um Corpo de Mulher (título original L’Ame est un Corps de Femme), Editorial Notícias, Lisboa, 2001, pg. 21.

(2) Ibidem..

(3) GIULIA SISSA, A Alma..., pg. 19.

(4) «Die Erinnerung ist der sicherste Grund der Liebe.» (Fragmentos de Novalis, Assírio & Alvim, Selecção, tradução e desenhos de RUI CHAFES, Lisboa, 1992, pg. 15).

(5) WÜRDE DER FRAUEN

«Ehret die Frauen! Sie flechten und weben

Himmliche Rosen ins irdische Leben,

Flechten der Liebe beglückendes Band,

Und, in der Grazie züchtigem Schleier,

Nähren sie wachsam das ewige Feuer

Schöner Gefühle mit heiliger Hand.

(...)

In der Mutter bescheidener Hütte

Sind sie geblieben mit schamhafter Sitte,

Treue Töchter der frommen Natur.

(...)

Aber mit sanft überredender Bitte

Führen die Frauen den Zepter der Sitte,

Löschen die Zwietracht, die tobend entglüht,

Lehren die Kräfte, die feindlich sich hassen,

Sich in der lieblichen Form zu umfassen,

Und vereinen, was ewig sich flieht.»

(FRIEDRICH SCHILLER, Sämtliche Gedichte, Insel Verlag, Frankfurt, 1991, pg. 256-258).

(6) Excerto do poema «À minha Musa», de TEIXEIRA DE PASCOAES (Senhora da Noite, Assírio & Alvim, Lisboa, 1986, pg. 19).

(7) «This is the female form,

A divine nimbus exhales from it from head to foot,

It attracts with fierce undeniable attraction.»

(WALT WHITMAN, Folhas de Erva (título original: Leaves of Grass, 1855), vol. I, tradução completa incluindo os anexos e poemas póstumos de MARIA DE LOURDES GUIMARÃES, Relógio d’Água, Lisboa, 2002, pg. 182).

(8) Apud HERBERTO HELDER, Ou o Poema Contínuo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001, pg. 23.

Maria do Sameiro Barroso é licenciada em Filologia Germânica e em Medicina e Cirurgia, pela Universidade Clássica de Lisboa. Exerce a sua actividade profissional como médica, Especialista em Medicina Geral e Familiar.

Em 1987 iniciou a sua actividade literária, tendo publicado livros de poesia e colaborado em antologias e revistas literárias. A partir de 2001, a sua actividade estendeu-se à tradução e ensaio, tendo publicado, em revistas literárias e académicas.

Em 2002 iniciou a sua actividade de investigadora, na área da História da Medicina, tendo apresentado e publicado trabalhos, nesta área.