Fugir à perfeição, construir casas recônditas, sobre balões
levíssimos de neve e oxigénio, lavrando a vida,
os olhos salinos, unindo o mel, as mãos,
os anéis e o mercúrio,
na frescura alquímica de arrancar às válvulas loucas,
os átrios leves de uma ciência exacta,
desatando a lua e os seus cornos escarlates.
No mar, há rios mudos, poções de vida sob luas negras.
Penso em Alexandria,
onde se desenvolveram as antigas ciências médicas.
Pela água e os humores do cosmos, similia similibus (1).
Escrevo o corpo retórico, anímico e celular
e assino essa luz, onde o insubstituível,
esse dizer poético se afirma,
sobre as colinas lentas e os espelhos múltiplos
— insidiosos licores flutuando algures,
numa pátria imaginária.
Pelas correspondências múltiplas, trabalhava a metáfora,
o poema, uma essência escondida
e a lua descia, perifrástica e contínua, mudando o céu,
o vinho e as estações,
o meu olhar era uma reminiscência louca de perfumes,
— a boca assombrada, as veias ocultas,
os pés queimando na terra.
A vida elaborava a sua mecânica trágica, o corpo
esvaziava-se.
Lia João Curvo Semedo:
— «Os dezassete segredos médicos» do Médico da Casa
Real, reeditado no ano de 1783.
E erguiam-se as cidades, os olhos perpendiculares,
o espírito encerrado pela luz das cisternas.
A luz desdobrava as algas, a chuva e os joelhos,
mais um dia nascia, melodioso
— como uma «polyanthea» (2),
uma estrela decantando o mundo e os seus filtros.
E deleitava-me com os seus «remédios curvianos».
Havia «os Bezoarticos» ou os «contravenenos»
para as« febres malignas» ou as« doenças venenosas»
que tornavam «o sangue vermelho e puro»,
«a língua húmida» e «a urina delgada»
No meu espírito, soltavam-se os átrios negros, ilustrando
Lisboa, no séc. XVIII,
onde eu recriava palácios, cavalos, jardins de azul
e canela, junto aos limoeiros luminosos, entre receitas
que juntavam: «pevides de cidra azeda, uma oitava,
raízes de escorcioneira e seis onças
de açúcar rosado de Alexandria,
folhas de sene de Lapata» e essa bebida estranha:
o «Bezoartico», «subtilmente pulverizado».
Dava-se: «meio quartilho de seis em seis horas
para o doente com febre maligna, com carga de humores».
Quando chegava às «febres vermelhas»,
já pelas minhas mãos, cobertas de papoilas, se escoava
o mel, o tamarindo, as folhas frescas
e as sombras apodreciam lentamente,
pelos olhos perpendiculares que diziam as harpas
e os perfumes;
o corpo, embriagado pelo aroma dos jacintos,
ditava os poema novos que voavam, em volta da cabeça.
Os astros uniam-se, pela sua órbita vazia e o universo
queimava.
O poema soltava as suas válvulas macias.
Uma protociência debilíssima inflamava-se e os vinhedos
floriam, expressando a sua retórica negra.
As convulsões sucediam-se e a ciência prosseguia
os seus sonhos persistentes, num século desconcertante.
Eu era uma reminiscência, onde a salsa descia,
deixando as omoplatas livres, os joelhos tranquilos,
entre «xarope de rosas secas»
(de pouca, ou nenhuma acção farmacológica),
apenas o seu cimento poético a fermentar,
dissolvendo os seios lentos,
as flores impuras e a chuva venenosa.
Para os «humores tartáreos, viscosos e melancólicos»,
nada como «um xarope áureo»
Quando a lua cavalgava os remoinhos e os arco-íris:
«duas onças de cevada» para as «febres ardentes».
ou a «Água Lusitana» que JOÃO CURVO SEMEDO
inventou «contra as sezões».
Entre nós, JOÃO CURVO SEMEDO utilizava
o quinino contra a malária, pela primeira vez,
depois escrevia o seu «Tratado do ouro diaphoretico».
Desse «ouro», do qual já nada restava,
em mim, a poesia germinava, entre a casa
e as espigas, sagrando o corpo, ascético celeiro,
a salsa, a chuva, exorcizando o medo,
a lua em desalinho tornando o sangue vermelho
e os olhos límpidos.
No mês de Maio, o corpo hesitava, atravessado
por «gotas de mel», «leite virginal», «açafrão pesado».
O mundo era mágico e frenético, como o pensamento
médico que se abria, franqueando as suas janelas.
Na geografia do delírio, eu florescia, o olhar incendiado
galgando o interdito, o céu azul,
provando estranhos licores,
no silêncio de expurgar o linho e os venenos,
o olhar rompendo as cisternas, os olhos perpendiculares,
— assim «curando» as minhas «febres ardentes»,
nos pomares de Alexandria.
Maria do Sameiro Barroso |