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Maria do Sameiro Barroso |
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PEDRO
TAMEN - TRADIÇÃO CLÁSSICA E POESIA URBANA, SOB O LEVE SOPRO DE UMA
GREGA CAMENA (1) |
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Conferência de homenagem a Pedro Tamen na IV Bienal
de Poesia de Silves, Abril de 2010 |
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Ouvis? Ou alguma amável loucura
comigo brinca?
Horácio, Odes III, 4 (2) |
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Vereadora da
Cultura, Pedro Tamen, Maria do Sameiro Barroso e Paulo Moreira, durante
a homenagem a Pedro Tamen, na IV Bienal de Poesia de Silves |
Cântico do eterno, da terra e do presente, assim se me apresenta a obra
deste Poeta, presença que, embora discreta, se destaca na poesia
portuguesa, a partir da segunda metade dos anos 50 (3). Nascido em 1934,
Poeta e tradutor, fez a sua estreia literária em 1956, com o livro
Poema para todos os dias. A sua obra poética conta com 20 livros,
três dos quais incluem os livros anteriores (Poesia 1956-1978 e o
livro inédito Aparelho Circulatório Moraes Editores, 1978,
Tábua das Matérias, Poesia 1965-1991, Tertúlia, 1991 e Retábulo
das Matérias, Gótica, 2001), 4 antologias e uma vastíssima obra de
tradução. O Poeta oferece-nos um mundo pleno de sólidas experiências,
plasmadas em múltiplos registos, que, no entanto, se abrem e articulam
de forma viva, criativa e harmoniosa.
Escreve-se sempre para dar vida, para libertar a vida onde ela estiver
presa, para traçar linhas de fuga. Para isso é necessário que a
linguagem não seja um sistema homogéneo, mas um desequilíbrio,
heterogénea sempre: o estilo vai desbravar nela diferenças de potencial,
entre as quais qualquer coisa pode passar-se, pode um relâmpago surgir
da própria linguagem e fazer-nos ver e pensar aquilo que estava na
sombra das palavras, entidades de cuja existência mal suspeitávamos,
escreveu Gilles Deleuze (4).
Traçadas estas linhas de abertura, a poesia de Pedro Tamen pode ser lida
como uma viagem, ou como uma vertigem que desfila e desafia as
fronteiras opacas ou as marcas transparentes da interiorizada ficção.
Para o Poeta, o mundo é um espelho aberto à fruição dos contrários, ou
um poço forjado na gramática do eu, projectado à abertura do cosmos.
Pedro Tamen é o Poeta que delapida a luz, o espaço, onde
arde a terra, o seu centro, refeito, após o apocalipse mágico onde o
infinito se banha e o finito se anula. O ser poético, o sujeito amante
emerge na fluidez das metáforas que anulam o nada.
Sóbrio, circunspecto e conciso, em registos diversos, dilata
o espaço, a linguagem, convocada entre a órfica pulsão e uma postura
quase frontalmente anti-lírica. Em tríadas compassadas, a sua poesia
percorre os estigmas de cinza ou as marcas fogo, nomeados nas
substâncias elementais, redefinindo o lugar dos afectos, entre os
lugares sagrados, os lugares banais ou os lugares onde as conexões
inter-textuais assomam, tudo elegendo, em núcleos de tensão, onde a
criação se opera.
Perfilados em ritmos, rimas, quadras, redondilhas,
sextilhas, sonetos ou versos livres, a sua poesia abre-se numa polifonia multissémica, onde convivem palavras que aparentemente jogam, enquanto
se distendem, num amplíssimo fôlego, no acto de alcançar o seu limite
extremo, no qual se pulverizam ou reconstroem, desmultiplicando sentidos
inconfinados, entre lúdicos fulgores, telúricos recessos, configurados
entre arquétipos de luz, confrontados já com a inominada catábase dos
abismos.
O Poeta está livre, perante a solidão do mundo. Convoca a
terra e a alegria, por entre a música, o ruído e o silêncio. Procura os
eixos insondados, as formas puras ou a génese nominal do seu movimento
imperfeito.
Neologismos, arcaísmos, palavras de outras línguas,
linguagem sem enfeite nem feitiço que rolam do quotidiano, vivem,
convivem e respiram, na sua nudez secreta, com a estância espessa dos
símbolos e o domínio transfigurador do universo da metáfora.
Num fresco e novo olhar sobre as coisas, consolida, com mestria, a
harmonia que subjaz à tensão do surpreendente. O sujeito poético é um
artífice que transpõe as emoções e as palavras, medindo-se consigo
próprio, esgrimindo, com a sua espada negra ou dourada, o mundo, o ser,
o cosmo, ou o simples registo do quotidiano, seguro de que, tal como
formulou Theodor W. Adorno:
A arte não é mais do que uma palavra a que nada de real já corresponde
(5).
Detentor de um caudal poético imenso, num rio de intenso fulgor, não
procurarei desdobrar todas as suas espirais. Entre os seus núcleos
temáticos, como já indicia o título deste trabalho, deter-me-ei no seu
universo de referências clássicas, procurando explicitar o que se me
afigura mais original e fascinante, na sua voz poética.
Mais do que da própria leitura, procurarei captar algo do seu silêncio, da
sua tensão, do seu sopro, contido no seu espaço interdito ou na intenção
expressa no fluir dialógico das suas metáforas da criação, ciente que,
citando Martin Heidegger:
o ser criado na obra só se deixa manifestamente compreender a partir do
processo da criação. Assim, por imposição das próprias coisas, temos de
aceder a levar em conta a actividade do artista para encontrar a origem
da obra de arte (6).
Sobre a multiplicidade dialógica do Poeta e sobre o seu vasto universo
referencial, é de referir o trabalho notável de Luísa Freire (7).
A minha leitura iniciar-se-á pelo primeiro poema O dia, que indicia
as linhas programáticas e fundadoras que enuncia:
Fresco era o dia,
plantado na chuva,
jovens os relógios
tocando Mozart...
Os carros corriam,
os passos passavam
e os velhos
sentados dormiam no tempo
regressos perdidos
de todas as sombras.
Pássaro poisado na
alma da tarde,
era todo o sol
natural Inverno...
O mar estava perto
nos olhos da gente,
um barco chegava
em cada minuto
e o segredo
bailava nas mãos da criança.
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Pedro Tamen
agradece a conferência a Maria do Sameiro Barroso, no final da cerimónia
de homenagem que lhe foi prestada na IV Bienal de Poesia de Silves, a 24
de Abril de 2010 |
Na primeira estrofe, o
binómio infância-velhice configura o tempo, a música e a memória, em
isotopias de juventude, fertilidade e frescura que e presença do mar
amplia:
Os relógios não são
jovens. A juventude é uma característica do ser humano. Os relógios são
velhos ou novos. Esta transposição, quase tão antiga como a própria
arte, é explicitada por Theodor W. Adorno:
A arte gostaria de com
meios humanos realizar o falar do não-humano (8).
Os relógios de Pedro
Tamen são jovens e tocam Mozart, têm, portanto, uma capacidade que só o
contexto metafórico da poesia lhes confere.
A viagem-vertigem
consubstancia-se nos carros, nos passos, a que o uso do imperfeito
confere movimento e a própria acção amplia-se, transformando a estática
dos velhos, também mobilizados a convocar o regresso e a sombra de tudo
o que foi perdido, até que todo o movimento se condensa na forma de um
pássaro, que, por todo o voo que lhe é inerente, se apresenta imóvel
sobre a alma, algo que pertence ao domínio do etéreo que é apresentado
como sendo todo o sol do Inverno, tempo por excelência da imobilidade da
terra, que repousa, para de novo recuperar a sua fertilidade na
Primavera.
Mas, antes disso: o mar
estava perto nos olhos da gente, o que quer dizer que não se desloca,
como os barcos que chegam freneticamente: um barco chegava em cada
minuto, e o mistério do mundo parece assomar, pois: e o segredo bailava
nas mãos da criança.
A presença da criança
aproxima-nos na inocência primordial, a partir da qual tudo acontece.
Esse estado de inocência aproxima-se do nada. Tal como na concepção de
Martin Heidegger:
O projecto poemático
provém do nada, no ponto de vista em que o que nunca aceita a sua oferta
a partir do habitual e do que até então havia. Todavia, nunca vem do
nada, na medida em que o que por ele é lançado é só a determinação
retida no próprio ser-aí histórico (9).
A segunda estrofe
rememora elementos do passado:
Recordo uma paz
sob as gabardinas,
recordo humidade
nas rodas dos carros...
(tão solta no ar
corria a memória
que as folhas tão
verdes marcavam os anos).
A chuva nascia da
terra para o ar
e ria na cara da
gente perpétua
— cada riso dela
era a rua inteira
e era o cão vadio
cheirando esta terra
gerada no vento
pelo grande gesto.
Rua colocada por
amor das formigas,
pequeno brinquedo
achado no bosque,
eras mão aberta
para todos os sons,
para cada assobio
de vapor de água,
para a bela
frescura da brisa salgada.
Ligeiros, os céus
brincavam escondidos
com a tarde
criança presente no ar,
jogavam às pedras
ao pé dos passeios
e corriam juntos
fugindo ao vento...
Passavam pessoas
de faces vermelhas,
de um sonho
pequeno agora acordadas,
seus passos miúdos
de nada sabiam
— nada estava
feito e tinham dez anos.
A branca neblina
sentada no sol
sorria de perto a
tudo o que era
e tudo saltava na
sua presença.
Os elementos do
quotidiano assomam de forma concreta: uma paz sob as gabardinas evoca um
tempo de paz e onde a humidade, elemento ligado à fertilidade, se
desloca para elementos urbanos: as rodas dos carros. A memória contínua:
tão solta no ar, como que movida por isotopias que confluem na frescura
e no verde: as folhas tão verdes marcavam os anos.
E, estranhamente, a chuva
não nasce das nuvens, mas da terra: A chuva nascia da terra para o ar. A
terra é entendida como centro/origem/regresso, lugar para habitar o
mundo, vazio a preencher com a construção do poema.
Também nas concepções de
Martin Heidegger, a terra está no centro da génese poemática:
Na e sobre a terra, o
homem histórico funda o seu habitar no mundo. Na medida em que a obra
instala um mundo, produz a terra. O produzir deve aqui pensar-se em
sentido rigoroso. A obra move a própria terra para o aberto de um mundo
e nela a mantém (10).
A permanência da terra
alarga-se à gente, que como que deixa de pertencer ao tempo que, num
fluir jocoso: ria na cara da gente perpétua. Nos três versos seguintes,
a chuva em ligação com a rua, elemento urbano, no qual a terra permanece
como elemento telúrico, a terra, cheirada por um cão vadio, surge como
que movida pelo grande gesto da criação.
No resto da estrofe, a
terra e os seus seres continuam a ser exaltados: Rua colocada por amor
das formigas. Versos como: pequeno brinquedo achado no bosque, ou
Ligeiros, os céus brincavam escondidos/com a tarde criança presente no
ar,/jogavam às pedras ao pé dos passeios, convergem numa atmosfera
lúdica e jovial, à qual se juntam: pessoas de faces vermelhas,/de um
sonho pequeno agora acordadas.
E, de repente, como que
todos regressam à infância: seus passos miúdos de nada sabiam/— nada
estava feito e tinham dez anos, sob a complacente neblina que, como um
diáfano e branco véu: sorria de perto a tudo o que era/e tudo saltava na
sua presença.
Nas terceira estrofe,
evocando os movimentos fetais e o parto, o tempo, as horas, cada vez
mais rápidas, naturais (escorregavam) e jovens (berço dos ramos)
configuram a génese desta poética, isto é, ao primeiro momento do mundo,
ou, transposto para a criação, o primeiro momento em que surge o poema:
Escorregavam
horas do berço dos ramos
ficando
caladas, respirando fumo...
E, leves,
cheirosas, perpassavam as mãos,
tão estreitas
e fortes do primeiro mundo.
Na quarta e na quinta
estrofe, neste mundo, cada vez mais fresco, vivo e fecundo, selando
uma aproximação natural: manaram os beijos, que marcam o sinal da
aparição da amada. Tudo se prepara: Espreitam os sinos, riram-se as
escadas,/tudo estava pronto e de novo erguido. Como que nos
aproximamos do Éden primordial:
Tão bela que
vinhas como que da infância,
tão pura e tão
simples, tão gesto benigno,
tão nova
palavra rasgada no mar...
Menina dos
anos, dos anos perdidos,
sombra de
outras noites, noiva de outros dias,
perfeita
miragem, pele das próprias mãos,
eis que então
chegavas e eis que eu te via,
e as horas
sorriam, felizes, completas (11).
A presença da amada
faz retomar os anos perdidos, a sombra de outras noites, e a
plenitude anuncia-se: eis que tu chegavas e eis que eu te via,/e as
horas sorriam, felizes, completas.
Na estrofe seguinte,
a sétima, a amada é transfigurada em metáforas da natureza e da
criação. Sobre este processo, refere Theodor W. Adorno:
A natureza deve a sua
beleza ao facto de parecer dizer mais do que é. A ideia da arte é
arrancar este mais à sua contingência, torná-lo senhor da sua
aparência, determiná-lo, a ele mesmo como aparência, e também
negá-lo como irreal (12).
A presença do mar,
desde o início do poema, agora toma um novo sentido, evocando a
concha de Boticelli, no quadro “O nascimento de Vénus”:
Teu rosto era
a concha dos quatro oceanos,
teu corpo era
a praia de areia molhada,
teus olhos
erguiam o toldo do céu
e enchiam os
mastros de verdes bandeiras.
Tu eras o
vento, tu eras a força,
dançavam
secretas tuas mãos de aragem...
De notar a
beleza/leveza do verso: dançavam secretas tuas mãos de aragem, e a
associação da presença da amada à palavra, ao canto da aurora (dos
galos) e à tranquilidade da própria respiração que se estabelece, na
oitava estrofe: Agora tu eras a essência dos nomes, /os galos
cantavam, era bom respirar.
Os versos seguintes
denotam uma ligação muito forte à terra, onde os pés assentam,
transfigurados numa metáfora deliciosa: Os prados distantes ficavam
tranquilos,/esperando os teus pés, berlindes pequenos.
Na última estrofe, a
plenitude amorosa afasta os terrores antigos: Nunca mais a noite
mordida no escuro, /nunca mais o dia manchado de cuspo, nunca mais o
véu tapando-me tudo.
E o novo rumo é
traçado: Agora eu sabia que em cada manhã/nasceria o sol atrás dos
teus ombros.
Para Horácio, tão
querido ao Poeta (que cita uma epígrafe latina sua no livro Horácio
e Coriáceo (1981) e na epígrafe latina e abertura do livro Dentro de
momentos (1984), é, através da amada, que também: o canto mitiga os
negros cuidados (13).
Há, neste universo
poético, algo que, de novo me remete para Hesíodo, para a obra
Teogonia, na qual a Terra e o Céu começam por existir, separados
pelo Caos, o espaço vazio, e onde Eros é a força originária,
criadora e animadora do cosmo (14).
O Poeta retoma a
tradição. De acordo com Walter Benjamin:
O carácter único
da obra de arte é idêntico à sua integração no contexto da tradição.
A própria tradição é certamente algo bem vivo, algo de
extraordinariamente mutável (15).
O sonho amoroso/o
sonho criador consubstanciam-se na segunda parte do livro Os Dias,
ditando o tempo, o gesto, a palavra, o real e o irreal
confundindo-se, tal como a doçura dolorosa do amor:
Sonho-te real
em lágrimas de mar,
refaço as
mãos, tuas raízes verdes,
conto e
reconto as horas que passámos.
Repiso os
passos, rasgo a estrada branca,
renasço em
cada gesto que fizemos,
beijo-te outra
vez, ajoelhado...
Enquanto
longos, dolorosos versos
nas veias vão
doendo. (R.M., p. 25)
Os dias passam, no novelo
dos ritmos, percorrendo o insondável, delimitando o espaço, percorrendo
fronteiras, redefinindo o real.
Nesta poesia, a temática
amorosa é luminosa e central. Nela confluem alguns dados da biografia do
autor, em registos, nos quais à procura da amada se alia o elemento
divino: A que deuses te devo, e na procura/revelação do nome, está
subjacente a procura da verdade ontológica (poema do livro Escrito de
Memória (1973):
2
Formado em direito
e solidão,
às escuras te
busco enquanto a chuva brilha.
É verdade que
olhas, é verdade que dizes.
Que todos temos
medo e água pura.
A que deuses te
devo, se te devo,
que espanto é
este, se há razão para ele?
Como te busco,
então, se estás aqui,
ou, se não estás,
porque te quero tida?
Quais os olhos e
qual a noite?
Aquela
em que estiveste
por me dizeres o nome. (R. M., p. 281).
De destacar, a beleza e
profunda cristalinidade dos versos: É verdade que olhas, é verdade que
dizes./Que todos temos medo e água pura.
Há algo muito claro e
natural (água pura), mas também algo sibilino (medo) que remete para a
essência da verdade e do ser. Para Martin Heidegger: A essência da arte
é a Poesia. Mas a essência da Poesia é a instauração da verdade (16).
Nesta paisagem poética,
os deuses surgem de vez em quando. Na poesia ocidental, tal como refere
Roberto Calasso: Os deuses são hóspedes da literatura (17) (...)
manifestam-se de forma intermitente, segundo a expansão e o refluxo
daquela a que Aby Warburg chamou «onda mnénica» (18). Os deuses em
questão são os deuses gregos que, noutros livros de Pedro Tamen surgem
associados à fertilidade, num contexto amoroso, como que primordialmente
feliz, associado a Deméter, a deusa que os gregos celebram nos mistérios
de Elêusis, pois, é graças ao pacto que fez com Hades, o deus do mundo
inferior que raptara a sua filha Perséfena, que a terra reverdece, na
Primavera, quando esta regressa e o mundo retoma o luminoso dia. O livro
Primeiro livro de Lapinova (1960), está, de resto, repleto, de isotopias
de fertilidade:
8
Ouves, meu amor, a
água que brotou
no côncavo da
pedra que a tua mão marcou?
Ouves, meu amor, o
passo do veado
correndo no
caminho que só por nós pisado?
Entendes, meu
amor, a voz que fala agora
do tempo que
esperou, da lenta e só demora?
Já onde nós somos
a nossa paz presente.
Só nós entramos
nela e agora é o que sente.
Alumiam-se as
noites, Deméter aparece,
tu sentas-te a meu
lado e o trigo reverdece. (R. M., p. 140).
A água, o côncavo da
pedra, o passo do veado, a voz que fala agora precedem a epifania da
deusa, que sanciona a união dos seres e do todo. Como diz Martin
Heidegger:
Todas as coisas da terra,
ela própria na sua totalidade, desembocam numa recíproca harmonia (19).
Quanto ao processo
criativo, segundo Luísa Freire: É sabido que Pedro Tamen escreve por
ciclos (ele o afirmou já em várias entrevistas), constituindo cada livro
um corpo poético com uma unidade de sentido, mesmo quando a temática é
variada (...) (20).
No livro O Sangue, a Água
e o Vinho (1958), todo ele atravessado pela noite e o sagrado, há poemas
claramente alusivos à religiosidade cristã, como o da Parte I, O sangue:
8
Uma única morte: agora
em toda a parte, exangue, vem nos ventos,
soa na flauta
abandonada, quebrado renasce pela terra-
Homem sou e sei: no
enterro, longo, a espalhar-se nas ruas,
lá estaria, lá
estarei, lá fui, de noite, desembuçada a carne.
Tão próximo e passado,
tão hoje, tão mudado daqui a poucos dias,
raiz de muitos braços
a perfurar o estrume. Cheiro,
recordo o pó, as patas
agitadas, cavalos importados
em barcos, em galés,
vinham de Roma vivos. Cheiro
o sangue mas os gritos
não cabem. Mas os gritos não cabem
numa única morte.
(R. M. p. 87).
Desde o primeiro
livro, há também referências a outros deuses e outras religiões que
o Poeta percorre, quer sejam portadoras de rituais cruéis, como a do
poema que o pacífico pescador de múrex é confrontado com sacrifícios
fenícios ao deus Baal (actualmente postos em causa por novas
descobertas arqueológicas), ou com a violência inerente à própria
vida, no (Poema para todos os dias, III Todos os dias, 20 (R. M., p.
57), quer os paradigmas religiosos tragam o consolo, porque estão
associados aos elementos da natureza, ou porque, muito simplesmente,
segundo José Jiménez: a religião é sempre portadora de uma promessa
de felicidade, de identidade e de realização humanas (21). E, mesmo
nos contextos de crueldade, segundo Miecea Eliade: O ritual refaz a
criação (22).
No terceiro verso:
Homem sou e sei, ecoa a conhecida citação, atribuída a Terêncio: Sou
homem; e nada do que é humano me é estranho (Homo sum; humani nil a
me alienum puto) (Heautontimorumenos, 163 d.C.).
E, num contexto
puramente clássico, surge um pequeno poema (na III Parte, O vinho):
5
Alguém domador
de cavalos,
Aquiles de pés
velozes.
Na franca
insuspeitada
balança
inabarcável
quem sabe os
pés que pesam? (R. M., p. 112).
Numa espantosa
capacidade de síntese, o Poeta coloca, lado a lado, alguém que não
nomeia, Heitor, o melhor dos guerreiros troianos, que é também o
pai, esposo e oficiante religioso. Heitor é o descendente de Príamo,
o velho rei que ainda reina mas é a ao jovem Heitor que compete
defender, num combate perdido, a já condenada cidade, Tróia,
domadora de cavalos.
Aquiles é o herói
homérico, o herói grego por excelência, que sabe, de antemão, que a
cidade será destruída depois de derrotar Heitor. Sabe que a sua
própria morte se seguirá, mas, perante Tétis, sua mãe, optara entre
uma vida curta, mas coroada de glória. André Bonnard define da
seguinte forma os dois heróis: Aquiles ama a vida o bastante para
preferir a intensidade dela à duração (23). No que respeita a
Heitor: A sua coragem é a mais alta coragem, a única que, segundo
Sócrates, merece esse nome, porque, não ignorando o medo, o supera
(24). O guerreiro e o cidadão defrontam-se, numa luta sem tréguas.
Heitor sabe que vai ser morto e a cidade destruída, mas não pode
fazer mais que cumprir o seu destino (25).
E que pés pesam
afinal, na inabarcável balança? Os pés velozes do maior dos
guerreiros da Antiguidade, ou os pés de Heitor, o melhor guerreiro
de Tróia, domadora de cavalos, mas cujos pés, derrotados, às portas
Ceias, foram arrastados vezes sem conta, no cadáver amarrado ao
carro de guerra do colérico Aquiles. Onde pesará a cândida
humanidade do cidadão, marido e pai, a quem a história roubou o
nome?
E, no nosso tempo,
quem pesará mais, na balança ética da valorização actual, os
guerreiros de Homero ou os camponeses de Hesíodo? Lemos facilmente,
nestas referências, os heróis destruidores da guerra do Iraque e os
camponeses e os habitantes urbanos sem nome, despojados da sua
própria identidade.
De resto, já no
título do poema O dia, bem como o título do livro Poema para todos
os dias, havia algo que não podia deixar de convocar Hesíodo, o
Poeta grego que, no século VIII a. C., escreveu os Erga, conjunto de
poemas que escreveu no final da sua vida, nos quais nos oferece uma
pintura viva da vida campesina, opondo aos heróis homéricos, o
esforço e a grandeza dos que trabalham a terra. Também tem o seu
heroísmo e valor a luta tenaz e silenciosa daqueles que cavam,
lavram e plantam, lutando com a adversidade e com os elementos (26).
Do livro Horácio e
Curiáceo (1981) no qual paira a explicação inicial de Tito Lívio,
segundo a qual, na mítica formação da história de Roma, embora
iguais em idade e em força, ninguém sabia a que povo os tês irmãos
pertenciam, marca uma impossibilidade de identificação da origem dos
guerreiros e agressores (R. M., p. 441).
A epígrafe de
abertura de Horário, talvez o seu excerto mais conhecido, no qual o
Poeta enaltece a aurea mediocritas, parece querer contrabalançar,
através da sabedoria de vida, as consequências destruidoras,
provocadas pela cobiça e pela sordidez do ser humano. Neste livro,
lemos um dos mais surpreendentes poemas do Autor:
(Cesariana)
Está um
Volswagen branco matrícula HG-63-24
e por detrás
passou um Renault 12 azul.
Atravessa
agora a Maria Antónia com um saco
de plástico
dos Estabelecimentos Mar-do-Sul.
Agora é uma
camioneta de rações de gado
e um senhor
careca de duffel-coat e pasta.
E se porém ou
nisto me degrado,
explode aqui,
no espaço de um quadrado,
a absurda
inocência de Jocasta. (R. M., p. 477).
Neste poema, parecem
ecoar ainda rumos que Horácio traçou, mas agora, no que se refere à
transfiguração da linguagem:
Não penses por
acaso que hão-de morrer as palavras
que eu,
nascido junto do Áufido ao longe ressonante,
por artes
nunca dantes conhecidas
com minha lira canto. (27)
Num registo
diferente, em relação aos poemas que citei ou analisei até agora,
mas que também utiliza com abundância, o Poeta coloca-nos perante
uma cena de rua. Começa com a matrícula de um carro branco e vai
descrevendo outros elementos que se cruzam: outro carro azul, uma
mulher anónima que tem nome: Maria Antónia com um saco/de plástico
dos Estabelecimentos Mar-do-Sul. E mais duas insólitas presenças:
Agora é uma camioneta de rações de gado/e um senhor careca de
duffel-coat e pasta.
A propósito desta
temática, Walter Benjamin analisou a transformação da linguagem
poética, a partir de Baudelaire que introduziu na poesia vocabulário
que anteriormente estava, à partida, excluído da linguagem poética:
Baudelaire
ultrapassou, tanto o jacobinismo linguístico de Victor Hugo como as
liberdades bucólicas de Sainte-Beuve. As suas imagens são originais
devido ao carácter baixo dos objectos de comparação. Observa os
processos banais para aproximar deles o poético. (28)
Do que quer que se
passe, neste poema, o que mais importa é o remate de forma ainda
mais desconcertante: E se porém ou nisto me degrado, /explode aqui,
no espaço de um quadrado,/a absurda inocência de Jocasta.
Mais uma vez, o Poeta
surpreende pela habilíssima capacidade de transformar uns versos
que, devo confessar, à partida me causaram um enorme desagrado, em
algo que, a partir da introdução, no espaço de um quadrado, da
absurda inocência de Jocasta, adquirem um límpido e inequívoco
sentido.
Na realidade, na peça
de Sófocles, nunca foi claro como é que Jocasta nunca suspeitou que
Édipo podia ser seu filho, uma vez que, tal como é referido na peça,
apresentava estranhas parecenças com Laio. Quando Édipo a interroga
sobre o aspecto físico de Laio, Jocasta responde: Era alto, na
floração das primeiras cãs; não diferia muito do teu aspecto
(29).
A partir desta
resposta, torna-se difícil compreender, como foi possível ter
pactuado com toda a situação, sem nunca ter suspeitado do crime em
que estava envolvida.
Quem não se lembrará
da frase que de Theodor W. Adorno que fez correr rios de tinta: Nach
Auschwitz ein Gedicht zu schreiben, ist barbarisch (Depois de
Auschwitz, é bárbaro escrever um poema.), tema sempre actual, que
reuniu escritores das duas Alemanhas divididas, em Frankfurt, em
1988 (30).
E, a propósito de
crimes quem não pensará, no fundo de si, a partir deste insólito
poema, nos crimes aos quais assistimos, absurdamente alheios e
impotentes?
Os poetas continuaram
a escrever durante e depois de Auschwitz, como foi o caso de Nelly
Sachs e Paul Celan, entre outros, ou mesmo o caso dos presos que
escreveram poesia, nos mais diversos suportes e confessaram que
escrever os tinha ajudado a sobreviver. Mas Paul Celan foi criticado
por ter produzido arte a partir dos horrores vividos nos campos de
concentração, no poema Todesfuge (31). A questão não é escrever.
Mas, num mundo cada vez mais desumanizado, a escrita e a arte foram
e possivelmente continuam a ser questionadas.
Alguns gritaram a sua
pulsionalidade, como foi o caso de Wolfdietrich Schnurr:
A lírica é erótica.
Assim a considera a vida. Por isso a defende. E deve então calar-se,
após um triunfo da morte de tal forma global?
(Lyrik ist sinnlich.
Also meint sie das Leben. Also verteidigt sie es. Und da soll sie,
nach einem derart globalen Todessieg, schweigen?) (32).
E, em Der Meridian (O
Meridiano) discurso que proferiu, quando recebeu o Prémio Büchner,
em 1960, Paul Celan, afirmou: A arte regressa (Die Kunst kommt
wieder) (33).
Mas a arte e a poesia
sofreram alterações profundas, nas quais toda a dialéctica
poetológica tem que ser reequacionada. Assim, se, por um lado, Paul
Celan afirma:
E a poesia seria
assim o lugar, onde todos os tropos e metáforas querem ser levadas
ao absurdo (Und das Gedicht wäre somit der Ort, wo alle Tropen und
Metaphern ad absurdum geführt werden wollen.) (34).
Ou Elargissez
l’Art! (35)
A esta atitude,
contrapõe:
Alargar a arte? Não. Mas
vai com a arte ao mais apertado do teu estreito. E liberta-te. (Die
Kunst erweitern? Nein. Sondern geh mit der Kunst in deine allereigenste
Enge. Und setze dich frei.) (35).
Pedro Tamen parece ter
trilhado estes caminhos estreitos, estes becos, nesse quadrado, onde se
desenrola a cena que descreve, acompanhando este cenário, onde a arte
cada vez mais se abre ao inconfinado.
Para Michel Foucault: A
literatura faz assim parte daquele grande sistema de coacção do
discurso; todavia, ela ocupa aí um lugar especial: obstinada a procurar
o quotidiano por debaixo dele próprio, a ultrapassar limites, a levantar
brutal ou insidiosamente segredos, a deslocar regras e códigos, a fazer
dizer o inconfessável, ela terá tendência a pôr-se fora da lei, ou pelo
menos a tomar a seu cargo o escândalo, a transgressão ou a revolta. Mais
do que qualquer outra forma de linguagem, é ela que continua a ser o
discurso da “infâmia”: cabe-lhe dizer o indizível –o pior, o mais
secreto, o mais intolerável, o vergonhoso (36).
O título deste singular
poema de Pedro Tamen, (Cesariana) não pode deixar de remeter para essa
excisão problemática.
Sobre o universo
clássico, referirei ainda a obra Dentro de Momentos (1984) (R.M.,
p.507), pela dialéctica entre a fugacidade das palavras e o seu
aprisionamento, em versos, utilizando a voz de Horácio, novamente, como
epígrafe inicial.
Neste livro de poemas
muito curtos, destaco outro poema, desconcertante, no que concerne o
tratamento de temas clássicos:
6
Orfeu ao balcão
avia bicas
sem poder olhar
Eurídice na caixa.
Transposto para o nosso
tempo, o mito de Orfeu é recriado na impossibilidade de olhar/na
impossibilidade de amar. Não há mistério nestas personagens. Foi por
olhar Eurídice, que Orfeu, com a sua lira, conseguira resgatar ao mundo
dos mortos, que a perdeu, pela segunda vez, definitivamente.
Como diz Paul Veyne,
aquilo que se opõe ao tempo, tal como se opõe à eternidade, é a nossa
actualidade (37).
Umberto Eco, distingue
dois tipos de postura em relação à arte:
A arte contemporânea
tinha-nos habituado a reconhecer duas categorias de artistas: de um
lado, os que vão procurando novas formas, entregando-se a um ideal quase
pitagórico de harmonia matemática, inventando configurações apoiadas em
relações secretas e que, para chegarem à poesia, passam pela geometria,
euclideana ou não; do outro, os artistas que reconhecem a fecundidade do
acaso e da desordem (38).
É na segunda categoria
que incluiria o Autor deste poema, embora noutros se possa incluir na
categoria anterior.
Na realidade, segundo
José Jimenez: As vidas humanas não podem abrir-se ao encontro dos
múltiplos sentidos que lhes servem de suporte simbólico na pura
instantaneidade, senão no (re)conhecimento dos tempos (passados/futuros)
e espaços (épocas, cenários culturais) diversos (39).
Neste poema, Orfeu pode
ver-se também na perspectiva do anti-herói, protagonizado por Woyzeck de
Georg Büchner pois a vida de Orfeu é rotineira, apagada e banal, tal
como a de Woyzeck (40).
Orlando Neves, que
traduziu a peça, escreveu, na introdução: Em 1834, data do começo de
Woyzeck, foi como se Deus tivesse criado os camponeses e os artesãos no
quinto dia e os príncipes e os nobres no sexto (41).
Há ecos do mito das cinco
idades da obra Trabalhos e Dias de Hesíodo. A partir da idade de ouro, a
humanidade vai percorrendo vai percorrendo as várias idades até chegar à
quinta raça:
Quem dera que eu
não vivesse no meio dos homens
da quinta raça,
que morresse antes, ou vivesse depois!
Agora é a raça de
ferro. Não cessam, de dia,
de ter trabalhos e
aflições, nem, de noite, de serem consumidos ,
pelos duros
cuidados que lhes oferecem os deuses. (42)
A existência do homem não
é fácil. Mas, no tempo dos deuses olímpicos, a vida também não era assim
tão fácil para os próprios deuses. Para Walter Otto:
A existência dos
deuses desenrola-se em princípio num horizonte a que a morte é estranha.
Os olímpicos não vivem, no entanto, numa eternidade imóvel, mergulhados
numa luz límpida. É na dimensão de uma continuidade «efémera» que se
renova dia após dia que eles desfrutam o seu afastamento da negra
morte... (43)
Uma concepção muito
próxima deste conceito, está presente no poema de Pedro Tamen:
55
O tempo nasce com
o nascer do sol.
Todos os dias
nasce o tempo (R.M, p. 516).
É como se tivéssemos de
conquistar os dias à eternidade. E não será?
Ainda neste livro, Apolo
é apresentado de forma radiosa, aos dias mais longos do ano, no Verão,
tempo de pujança da natureza:
30
Agora é Verão:
cresceu Apolo
e volta a casa
tarde (R. M., p. 512 ).
No livro Delfos, Opus 12,
cujo título de conotação musical, parece, desde logo estar em
consonância com o Apolo, deus da poesia e da música, reporta-se aos seus
lugares sagrados. A ilha de Delos, onde nasceu e o vale de Delfos são
evocados, recriando os vários aspectos da sua complexidade simbólica e
mitológica. A indicação da visita a Delfos e as notas que o Autor
fornece servem de suporte exegético à leitura (R.M., p. 541).
Segundo Walter F. Otto:
Os deuses mantêm as suas singularidades porque permanecem as tensões
entre eles (44). Estas tensões são aludidas de várias formas, a partir
do poema 1. Numa intensa expressividade dramática, é expressa a oposição
de Hera ao nascimento do deus, filho de Zeus e de Latona, no verso: Por
sobre a terra intensa/nula criança chora (R. M., p. 521.
António Ramos Rosa, num
ensaio publicado em 1986, salientou dois aspectos: a dramaticidade deste
Poeta e a dimensão interior que cria (e amplia), na sua ligação ao
sagrado:
Vejo na poesia de Pedro
Tamen uma das mais sérias tentativas para dar à actividade poética
aquele sentido do sagrado, sem o qual não se pode atingir a verdadeira
dimensão interior. Violentamente dramático, quase sempre, este poeta
restabelece a circulação entre o humano e o elementar infundindo à
linguagem poética uma energia e expressividade que superam a mera
agressividade do bizarro, tantas vezes esterilmente ofensiva em alguns
poetas surrealistas.(45)
O tempo adquire uma
dimensão intemporal no poema 8. Tal como em Delos, a morte é abolida:
Quando souberes
agora que é atrás da linha
dos montes núbeis
que se ergue o sol,
do mesmo passo
sabes que esses montes
refazem a palmeira
inicial, na rocha replantada,
figurando o lugar
de nome repetido
de nenhum parto
outro, ausente morte:
vasta bacia para a
eternidade (R. M., p. 528).
À luta de Latona,
junta-se a luta entre Apolo e Geia, a deusa mais antiga, representada
como deusa-serpente, que dominava esse lugar, que Apolo passou a ocupar
depois de matar a serpente Piton:
5
O que foi o último
a nascer
onde nunca ninguém
morreu
nem mais que a sua
irmã surgiu à luz,
ele que, vindo da
palmeira, encheu de flores
a rocha agreste
que Hera permitiu
— olhou aqui a
hórrida Serpente
que a deusa
despeitada lhe deu em desafio.
E ao matá-la tomou
a voz da terra
cuja verdade
engana (R. M., p. 525).
Os deuses gregos foram
substituindo as divindades arcaicas anteriores, embora a voz da terra
permaneça una, neste cenário em que os deuses, segundo Walter F. Otto:
São o mundo, e o mundo é multiforme. Não obstante, o homem conhece a
unidade do divino (46).
No poema 3, a planície,
onde outrora havia corridas de carros, dos quais é testemunha a
belíssima escultura do auriga de Delfos, retoma o espaço primordial onde
a vegetação se instala e cresce como: Púbis, sagrada e verde. Esta
imagem é de um erotismo subtil que atravessa o poema, em outras
isotopias como as coxas do Parnaso, o umbigo róseo, e, às premissas de
fertilidade enunciadas, junta-se a necessidade premente de trabalhar a
terra, nos versos: Terreno defendido e proibido/verde velho/que um
homem, mão erguida/quer lavrar (R. M., p. 523).
Os deuses gregos surgem
ligados a factos e fenómenos naturais. Para Walter F. Otto, nos deuses
gregos O divino não tem superioridade sobre os factos naturais como um
poder soberano: manifestam-se nas formas do natural como sua essência e
ser (47).
O poema 7, poema central
do livro, define as qualidades do deus, que se situa no ônfalo. Em
Delfos existe uma pedra que simboliza o centro do mundo:
Seio, centro, nó:
lugar
da ligação e em
que o contrário
une. Tal como
aquele
que aqui te
conquistou.
Guardador de
rebanhos, amigo das ovelhas
mas dos lobos.
Senhor e escravo.
É ele o
curandeiro, mas também
o que da morte
zunia as doces flechas.
Amador de mulheres
que não o queriam
e dos jovens
mortos por acaso.
O tocador de lira,
o que aceitou a flauta.
Conquista o seu
desejo e dele
a negação. Claro e
turvo.
O que gerou
enganos
nas linhas rectas
em que escreveu
oblíquo.
Lugar de alto e
baixo,
largo e estreito,
negro e branco,
lugar e não lugar,
a perdição achada
(R. M., p. 527).
As características do
deus possuem, como nos deuses ctónicos que os precederam,
características bipolares. Apolo é o deus da luz, mas também é o Lóxias,
herdeiro das profecias obscuras. O seu oráculo é o mais importante de
todo o mundo grego e assim se prolonga no mundo romano. Nenhuma decisão
política é tomada, sem que o oráculo, pela voz da pitonisa, seja
consultado.
Apolo é também o deus da
medicina, mas foi ele que enviou as setas que provocaram a peste aos
exércitos gregos, no início da Ilíada. Apolo é o deus que, apesar da sua
beleza, não conquista as suas (nem os seus) amantes, que morrem ou se
transformam em plantas quando dele fogem. Conquista o seu desejo e
dele/a negação., como afirma o Poeta. E, na obscuridade das respostas
proféticas, pode precipitar os homens na sua própria perdição.
Apolo é o deus da poesia
e da música, o inventor da lira, mas que convive com os tocadores de
flauta, os pastores e é o deus da loucura profética, inspira a chamada
mediunidade apolínea cujo objectivo é o de conhecer o futuro, bem como
os segredos ocultos do presente (48).
Com as Musas, suas irmãs,
partilha as instâncias da luz e da beleza:
15
Elas contam o
mundo com os seus corpos.
Não dançam bem
apenas, enchendo de alegria
os Imortais:
dançam o bem, ou este
é a mesma dança.
Indestrinçável
do que a beleza é,
além
da que os homens
conseguem (R.M., p. 536).
Talvez Apolo, ou algo
equivalente nos parâmetros da actualidade, continue a actuar.
Maritain, na sua obra Creative Intuition in Art and
Poetry, afirmou:
«Por poesia entendo...
essa intercomunicação entre a essência interior das coisas e a essência
interior da criatura humana que é uma espécie de adivinhação.». (49)
E, entre as criaturas e
as essências, fica a poesia de Pedro Tamen, como o rasto vivo que o amor
nos deixa:
Alga de luz,
submisso assunto
é este amor de
face repousada
que dorme toda a
noite
e acorda vivo.
(1990) (R. M., p.
696).
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(1) Horácio, Odes, II. O verso
pertence à última estrofe: A Parca que não me mente a mim me deu/uma
pequena propriedade, e o leve sopro/de uma grega Camena,
permitindo-me/que o malévolo povo desprezasse (vv. 37-40, (Q.
Horatius Flaccus, Opera, E. C. Wickham e H. W. Garrot (ed.),
Oxford Classical texts, 1912), tradução de Pedro Braga Falcão,
Livros Cotovia, Lisboa, 2008, p. 163. (As Camenas ou ninfas dos montes,
eram divindades romanas assimiladas às Musas gregas).
(2) Horácio, Odes, (Q. Horatius
Flaccus, Opera, E. C. Wickham e H. W. Garrot (ed.), Oxford
Classical texts, 1912), tradução de Pedro Braga Falcão, Livros
Cotovia, Lisboa, 2008, p. 163. (As Camenas ou ninfas dos montes, eram
divindades romanas assimiladas às Musas gregas). p. 188.
(3) Sobre este assunto, ver Fernando J. B.
Martinho, Tendências Dominantes da Poesia Portuguesa da Década de 50,
Lisboa, Edições Colibri, 1996, p. 421.
(4) Gilles
Deleuze, «Signes et évèvements, entretien avec Gilles Deleuze» in
Magazine Litteraire n.º 257, 1988; retomada em Pourparlers,
Minuit, Paris, 1990, in Edmundo Cordeiro, prefácio e
tradução a Gilles Deleuze, O mistério de Ariana,
Lisboa, Vega, 2ª edição, 2005, p. 7.
(5) Martin
Heidegger, A Origem da Obra de Arte (Der Ursprung des
Kunstwerks, Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1977),
tradução de Maria da Conceição Costa, Edições 70, Lisboa,
2008, p. 11.
(6) Martin Heidegger, A Origem da
Obra de Arte, p. 46.
(7) Sobre este assunto ver Luísa
Freire, Pedro Tamen: a tenção em tensão, Livros Horizonte,
Lisboa, 1999, pp. 13-55.
(8) Theodor
W. Adorno, Teoria estética (Aestetische Theorie,
Suhrkampf- Verlage, Frankfurt am Main, 1970), tradução de
Artur Morão, Edições 70, Lisboa, 2008, p. 124.
(9) Martin Heidegger, A Origem da
Obra de Arte, p. 61.
(10) Martin Heidegger, A Origem da
Obra de Arte, p. 36.
(11) Pedro Tamen, Retábulo das
Matérias (1956-2001), Gótica, Lisboa, 2001, pp. 11-13.
(12) Theodor W. Adorno, Teoria
estética (Aestetische Theorie, Suhrkampf- Verlage, Frankfurt
am Main, 1970), tradução de Artur Morão, Edições
70, Lisboa, 2008, p. 125.
(13) Horácio, Odes IV.11, vv. 35-36,
p. 290.
(14) Werner Jaeger, Paideia, p.
74.
(15) Walter Benjamin, A modernidade
(Gesammelte Schriften, Suhrkampf Verlag Frankfurt am Man
1972, 1974 e 1977), edição e tradução de João barrento,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p. 214.
(16) Martin Heidegger, A Origem da
Obra de Arte, p.60.
(17) Roberto Calasso, A Literatura
e os deuses (La Letteratura e Gli Dei, Adelphi Edizioni
S. P. A. Milano 2001), tradução de Clara Rowland, Gótica,
Lisboa, 2003, p. 11.
(18) Roberto Calasso, A Literatura
e os deuses, p. 31.
(19) Martin Heidegger, A Origem da
Obra de Arte, p. 37.
(20) Luísa Freire, Pedro Tamen: a
tenção em tensão, p. 29.
(21) José Jiménez, A vida como
acaso, tradução de Manuela Agostinho, Vega, Lisboa, 1997, p. 74.
(22) Sobre este assunto, ver: Mircea
Eliade, Tratado de História das Religiões ( Traité
d’Histoire des Religions, Éditions Payot, 1949), tradução de
João Machado, Edições Asa, Lisboa, 1994 (2º- edição), p. 430.
(23) André Bonnard, Civilização
Grega Da Ilíada ao Pártenon (Civilizsation Grecque de
l’Iliade au Parthenon) III volumes, I, tradução de
José Saramago, Lisboa, Editorial Estúdios Cor, 1966, p. 62.
(24) André Bonnard, Civilização
Grega Da Ilíada ao Pártenon, p. 64.
(25)
Sobre este assunto, ver Bernard Knox, The Iliade,
Translator's Preface in. Translated by Robert
Fagles. Introduction and notes by Bernard Knox
, Penguin Books, New York , 1990, p. 33.
(26)
Werner Jaeger, Paideia: los ideales de la cultura griega
(Paideia, Die Formung des grieschischen Menschen, D. R.,
1967), tradução de Joaquín Xirau (Livros I e II) e
Wenceslao Roces (livros III e IV), Fondo de Cultura Economica,
Madrid, 1993, p. 67.
(27) Horácio, Odes, IV. 9.
vv. 1-4, p. 285.
(28) Walter Benjamin, A
modernidade, p. 100.
(29) Sófocles, Rei Édipo,
introdução, tradução do grego e notas de Maria do Céu Fialho,
Edições 70, Lisboa, 1991, /45, p. 104,
(30)
A.A. V.V., Petra Kiedaich (Org.), Lyrik nach Auschwitz?Adorno
und die Dichter, Philipp Reclam jun. Sttugart, 2001, pp.
5-9.
(31)
Paul Celan. Gedichte. In zwei Bänden,
Erster Band, Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1975, pp.
41-42; Ver a tradução deste poema em Sete Rosas Mais Tarde.
Antologia Poética, Selecção, tradução e introdução de João
Barrento e Y. K. Centeno, edição bilingue, 2.ª ed., Cotovia,
Lisboa, pp. 52-57 e Paul Celan, Todesfuge, tradução e
comentários de Maria do Sameiro Barroso e Ivo Miguel Barroso, in
Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão
Telles, volume V, Direito Público e Vária, Estudos organizados
pelos Professores Doutores António Menezes Cordeiro / Luís
Menezes Leitão / Januário Da Costa Gomes, Almedina, Coimbra,
2003, pp. 411-423-
(32)
Wolfdietrich Schnurre, Dreizehn Thesen gegen die Behauptung ,
daß es barbarisch sei, nach Auschwitz zu schreiben ?, apud
A.A. V.V., Petra Kiedaich (Org.), Lyrik nach Auschwitz?Adorno
und die Dichter, p. 125.
(33)
Paul Cean, Büchner-Rede (Einband unter
Verwendung des Facsimiles eines Entwurfs), Der Meridian,
End fassung, -Entwürfe, Materiallen, Org. Bernhard
Böschenteinund Heino Schmull unter Mitarbeit von Michael
Schwarzkopf und Christiane Wittkop, Suhrkamp Verlag, 1999, 2,
p.2.
(34) Und das
Gedicht wäre somit der Ort, wo alle Tropen und Metaphern ad
absurdum geführt werden wollen,
Paul Celan, Büchner-Rede, Der Meridian, 39 b, p. 10.
(35) Paul Celan, Büchner-Rede, Der
Meridian, 32 b, p. 10.
(36)
Paul Celan, Büchner-Rede, Der Meridian,42 d, p.p. 10-11.
(37)
Michel Foucault, O que é um autor? (Qu’est-ce qu’un
auteur?), prefácio: José A. Bragança de Miranda, tradução:
António Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro, 7ª edição,
Nova Vega, Lisboa, 2009, p. 127.
(38)
Gilles Deleuze, O mistério de Ariana, p. 70.
(39)
Umberto Eco, A definição da Arte (La definizione
dell’Arte, U. Mursia & C.,1968, 1972), tradução de José
Mendes Ferreira, Edições 70, Lisboa, 2008, p. 217.
(40)
José Jimenez, A vida como acaso, p. 49.
(41)
Sobre esta peça. profundamente moderna, adaptada à ópera por
Alben Berg, com o título Wozzek, que ficou inacabada por morte
de Büchner aos vinte e três anos, por tifo, nos seus escritos,
apresentou o seu conceito de arte realista, ligada à sociedade.
Woyzeck é um soldado, oprimido por todos. Não tem nada de herói.
Para os oprimidos, perante um quadro de violência, não têm outra
reposta senão a violência (A.A. V.V., História da Literatura
Alemã 1 (Deutsche Literaturgeschichte, von den Anfängen
bis zurGegenwart), Edições Cosmos, Lisboa, 1993, p. 354).
(42)
Orlando Neves, Introdução, Georg Büchner, Woyzzeck,
tradução, introduçãio e notas de Orlando Neves, Teatro Início,
Lisboa, 1967.
(43)
Hesíodo, Trabalhos e Dias, vv. 174-178, in Maria
Helena da Rocha Pereira, Helade, 5ª. edição. Coimbra,
1990, p. 85.
(44)
Giulia Sissa, Marcel Detiene, Os deuses da Grécia (La
Vie Quotidiènne des Dieux Grecs), tradução de Manuela
Madureira, Editorial Presença, Lisboa, 1991, p. 56.
(45)
Walter F. Otto (Die Götter Grieschenlands,
G. Schltye-Bulmke, Frabkfurt. Trad. castellana de
R. Berger e A. Murguia: Los dioses de grecia; Eudeba, Buenos
Aires, 1973, 2ª. ed. 1976 (1ª. ed. 1929), apud José
Jimenez, A vida como acaso, p. 68.
(46)
António Ramos Rosa, Pedro Tamen ou a unidade viva num
presente inaugural, apud Poesia Liberdade livre, Prefácio de
Fernando J. B. Martinho, Ulmeiro, Lisboa, 1968, p. 128.
(47)
Walter F. Otto, apud José Jimenez, A vida como acaso,
p. 68.
(48)
Walter F. Otto (Die Götter Grieschenlands,
G. Schltye-Bulmke, Frabkfurt. Trad. castellana de
R. Berger e A. Murguia: Los dioses de grecia; Eudeba, Buenos
Aires, 1973, 2ª. ed. 1976 (1ª. ed. 1929), apud José
Jimenez, A vida como acaso, p. 66. E.R. DODDS, Os
Gregos e o Irracional, Gradiva, Lisboa, 1988, pg. 80.
(49)
Maritain, Creative Intuition in Art and
Poetry, apud Umberto Eco, A definição da Arte, p.
111.
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Maria do Sameiro Barroso.
Médica e escritora, é licenciada em Filologia Germânica, em Medicina e
Cirurgia pela Universidade de Lisboa e Doutoranda da Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tem publicado
livros de poesia, traduções e ensaios. Dedica-se à investigação da
Medicina Antiga e à História da Mulher e ao estudo da Literatura Alemã.
Integra os actuais corpos directivos do Pen Club Português.
Ver mais informação em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_do_Sameiro_Barroso |
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