Nos vitrais obscuros, o poema é inseparável do corpo, súbita cicatriz,
marca obstinada, vocábulo do ser, grinalda errante, único porto a
habitar a solidão interdita. Sei-o agora, revendo a história de uma
solidão partilhada. Há meses, na Exposição do ouro tradicional de Viana
do Castelo, vi uns brincos compridos, adornados com flores de ouro e
pequena turquesas, exactamente iguais a uns brincos que a minha tia
Assunção usava, quando saía, com os seus olhos verdes, irradiantes de
juventude. Com os brincos, sóbria e elegante, trazia a marca de origem
da sua pertença minhota.
Um par de brincos, duas irmãs. Ela e a minha mãe eram inseparáveis. Por
vezes, a vida é assim, uma alma dupla, uma toalha de estrelas, uma noite
de grilos, uma canção a duo.
Quando era criança, o meu pai, tinha que nos deixar por longos períodos.
Então, a minha mãe chamara para junto de si a sua irmã mais nova, que
chorara copiosamente no dia em que a minha mãe casara, inconsolável pela
inevitável separação. O meu pai fora carinhoso com ela, confessou-me a
minha mãe, há pouco tempo, quando, durante uma das minhas estadias em
Braga, revisitávamos os recantos preciosos da minha infância perdida.
Por vezes, a vida ignora a as hidras dolorosas, as lagunas insones,
convoca buganvílias, girassóis, e, na sua alegria inocente, ergue-se,
com os gladíolos, as açucenas e alarga-se às margens sempre brancas de
irisadas margaridas.
Os dias passavam, nessa magia calma, nessa torrente obscura ou nessa
fronte incendiada. Junto ao poço, coberto de heras, encimado por um
limoeiro frondoso, no fundo do quintal, perturbava-me a profundidade das
águas, mas logo me distraía a baba de algum caracol indolente que se
passava.
O tempo suspendia sobre mim, os seus relógios secretos, imprimia sobre
mim, os seus ritmos de luz, as suas paragens de sombra. A lua, por
vezes, surpreendia-me, não era de prata, mas um corpo aurífero, envolto
num enorme círculo de subtil neblina de ouro.
Nos aromas de névoa, nada escrevia. Pensava nos laços tenros do amor que
derruba fronteiras e dissolve os limites precisos da escuridão adiada.
Quando chegava o meu pai, regressando de paragens distantes: Moçambique,
Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Ilha da Madeira e, finalmente,
Lisboa e Braga. A alegria, há tanto tempo preparada, era indescritível.
As crianças, eu e o meu irmão, sentiamo-nos uns príncipes, mimados com
prendas, trazidas de um país longínquo. Chegava sempre muito moreno,
envergando calças claras, uma camisa branca, trazendo os olhos
protegidos com óculos escuros.
Depois deliciava-nos com as suas histórias de macacos, cobras, leões,
crocodilos, hipopótamos. Falava das picadas, das cubatas, da terra
vermelha, das girafas, das acácias, dos cheiros intensos, da floração
exótica. Acompanhávamo-lo, entusiasmados, no seu périplo, felizes de o
termos, agora por largos meses, junto a nós.
Falava das cidades, das baías onde o mar se espraiava, das esplanadas
coloridas, do whisky, do gindungo, do caju, do camarão.
Esta e outras palavras que usava, passaram a fazer parte do nosso
vocabulário: o cacimbo, o mata-bicho, o machibombo, o mitombo, as
biquatas.
Por essa altura, eu queria ter um macaco, para encenar a minha selva. Ia
crescendo em mim o poema, o cheiro da terra, a flor desmedida, a futura
cicatriz, obstinada e sóbria, com as suas brechas de sangue pulsando no
seu ouro submerso.
Naquele tempo, percebo-o agora, a vida era um trevo, um amuleto
precioso, uma ponte imaculada, um augúrio de boa sorte.
No jardim, eu e o meu pai colhíamos rosas, laranjas, morangos, enquanto
a minha mãe colhia legumes e o jardineiro tratava das árvores, plantava
flores e aparava as sebes. Os dias corriam lestos, lentos, nas tardes de
sol, sob o céu acetinado.
Ao domingo íamos à missa, de preferência ao Sameiro, de cuja Nossa
Senhora, o meu pai, embora fosse de poucas rezas, era bastante devoto.
Trazia sempre ao peito, uma medalha da Nossa Senhora que agora guardo,
com emoção. Fora ele que me dera o nome, pois, tendo eu nascido muito
débil, o meu pai, pedira à Senhora do Céu, que fosse minha madrinha e me
concedesse a sua protecção.
No verão, íamos até Afife, Carreço, apanhar sol, ouvir o mar. Corríamos
pelas praias, enfeitiçados pelos seus vastos areais e pelos seus
penedos, penteados por longos fios de sargaço. Algo assustados pela
imponente vastidão dos mares do Norte, eu e o meu irmão brincávamos nas
poças de água, apanhávamos seixos, conchas róseas, delicadas, que
juntávamos, com as nossas frágeis mãos de criança.
Na água, nos seus textos de luz, procurava talvez os peixes, as medusas,
os desertos submersos, os anzóis perdidos, na estrela pura das suas
âncoras afundadas. Depois, íamos até Viana do Castelo, onde a minha mãe
gostava de comprar bordados e nos perdíamos, na mancha verde das suas
tardes de azul e filigrana.
Nos caminhos, rodeados de amoreiras silvestres, havia carros de bois,
lembrando os trajes tradicionais, o rosa, o vermelho, o negro e o verde,
as cores intensas, fixadas nos quadros de Sónia e Robert Délauny.
O Minho sempre foi para mim uma metáfora verde, onde os quadros musicais
flúem, ao som de concertinas, cavaquinhos, acordeões. Desenhá-lo,
escrevê-lo, sempre foi para mim tornar visível o pensamento dos seus
ventrículos de musgo, contraindo, nas águas, sua torrente de safira e
rubis.
Por vezes, nas vagens da memória, a melancolia das suas florestas
nocturnas instala-se e, sob os telhados de névoa, o coração estende-se,
na refracção dos sonhos, em busca das âncoras de seda, das tatuagens do
amor, da carícia juvenil.
Hoje, trago ainda as mãos vazias de chegar ao universo e os olhos cheios
de infinito, quando perscruto esse, que é o umbigo do meu mundo, nas
suas crateras incandescentes, abertas, por dentro das arcas luminosas e
arejadas das minhas recordações.
Um dia, quando as laranjeiras floriam e as abelhas zumbiam, no jardim,
onde os gatos e as lagartixas passeavam e os melros cantavam, a minha
tia casou. Foi um casamento atribulado que não fez separar imediatamente
as duas irmãs. A minha tia, cujo marido também se ausentava por longos
períodos, permaneceu ainda algum tempo, junto da minha mãe. Depois,
seguiu a sua vida, tendo ir morar um pouco acima, na mesma rua.
Quando saía, ainda usava os seus brincos compridos, ornados de flores e
pequenas turquesas. A minha mãe costumava usar uns brincos mais sóbrios,
em forma de flor, em coroa radiada.
Nesse tempo, adorava adornar-me com brincos de princesa, pulseiras de
flores, rodeada de libélulas aquáticas. Sobre tábuas escurecidas,
fabricava idiomas, sonhava com pérolas, galos degolados, em vésperas de
festa. Em países distantes, voltejavam princesas, rodeadas de turbantes,
trajes macios, morcegos, colibris, mercadores de venenos.
Nesse tempo, os rios desaguavam em Maio, os touros viajavam com o sol,
os harpejos fluíam, em suas artérias rubras, o sol festejava o seu lume
e as cerejeiras floriam de uma só vez.
Nos caramanchões de Verão, por entre as frestas de sol, pensava nos
pássaros, nas redomas de cristal, na perenidade dos afectos e nas duas
irmãs, quase gémeas, que continuavam a dar-se, como dois brincos
inseparáveis, iguais, exactamente iguais a um par de brincos, na vitrina
de ouro moderno, que vi no Museu Nacional de Arqueologia. |