Aos Colegas da SOPEAM
A cidade tinha a cor, o coração algures.
A vida não estava nos textos, pergaminhos, num livro
equilibrado sobre a cabeça.
Algures, alguma deusa primordial protegia-me e a vida
pulsava, com as suas arestas lentas.
Eu era um sonoro vulcão, a cabeça desequilibrada,
uma haste de cinza rompendo a cabeça e o livro,
as chamas lacunares atravessando-me.
Fazia-me arqueóloga, com os pulsos puros e os cabelos lentos.
A vida não estava nas pedras, nem nos sarcófagos,
mas os mortos nasciam todos os dias,
inundando de neblina os jornais, cobertos de esporos frios,
as musas desequilibradas desequilibrando-me.
A minha vida era assimétrica, as minhas mãos confundidas,
entre filamentos de crisálidas.
Passavam por mim as musas delirantes.
E os mortos estendiam-se na cidade, como castanhas no outono.
A morte não estava nas locomotivas,
e eu aprendia a suturar, nos hospitais assépticos.
A minha vida cobria-se de orquídeas.
A morte escondia o seu seio. Havia gaze, iodo e mercúrio;
os meus olhos, uma genciana aberta de pássaros, neve.
E a vida não estava na arqueologia suturada,
nem nas saturadas invenções.
Mas as ânforas passavam, frenéticas.
Sonhava com Marco Aurélio. Provava o exótico garum.
Lia e suturava.
Cingia a cabeça, devorando as cidades interiores.
A arqueologia regressava, com todo o seu ouro.
A morte e a vida, os êmbolos inertes.
O terror regressava.
Pelos campos cirúrgicos o fogo surgia.
Renasciam as cinzas, no corpo sôfrego para segregar
as ervas e os violinos.
E a cidade tinha a cor, o coração algures.
As musas cirúrgicas passavam.
O Estige sorria, desdobrando canções, árvores frondosas
— os violinos sonhavam,
o mundo era uma canção iluminada, entre neve,
oxigénio, compostos iodados;
a Vida e a Morte, de mãos dadas, descobrindo os sarcófagos,
os Manes, as cidades interiores.
A Vida passava, leve e enigmática, como um teorema nocturno.
As estrelas soltavam-se.
Sabia de cor as violetas, a cor das cidades.
O Estige sorria.
A vida não estava nos textos, pergaminhos.
— A vida florescia, numa morna estação de neve e jornais.
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